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O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul 1917-1920 | Carlos Fernando de Quadros (R)
O discurso de Lenin na fábrica Putilov em maio de 1917. Izaak Brodsky, 1929 | óleo sobre tela, Museu Histórico do Estado, Moscou. Reprodução: Hora do Povo |
Com “O horizonte vermelho. O impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920” o historiador Frederico Bartz realiza importante contribuição a diferentes campos de investigação: a história do movimento operário, a história das ideias políticas, bem como a própria seara da história do Rio Grande do Sul. Não obstante, como o próprio autor atenta, o recorte regional deva ser matizado, pois, como o seu objeto impõe, há íntimas conexões entre a história gaúcha e a de outras regiões brasileiras e mesmo de paragens internacionais. Essa é uma distinção de cariz didático, pois um dos méritos do livro é justamente entender tais determinações em um todo articulado. Um momento histórico propício para isso é justamente a conjuntura estudada por Bartz, a do final dos anos 1910.
O momento era de intensas lutas sociais, com o protagonismo da classe operária nos centros urbanos, e de redefinições organizativas e ideológicas. Em tal processo, teve papel fundamental o impacto da Revolução Russa, vitoriosa em 1917. Esse impacto foi objeto de variadas expressões historiográficas, recenseadas por Bartz. É partindo de tal procedimento que seu estudo se distingue de uma divisão interpretativa dominante sobre o período, a qual ultrapassa o campo da produção historiográfica, remontando às próprias divisões políticas gestadas pouco após o processo em tela. Trata-se de duas leituras dicotômicas da adesão anarquista no Brasil ao exemplo russo: em suma, há quem creia que isso se deu por um “engano” dos militantes libertários de então, que desconheciam particularidades das medidas dos bolcheviques, cada vez mais opostas ao ideário ácrata; de outro lado, defende-se que a origem anarquista de parte relevante dos primeiros entusiastas da Revolução Russa se devia a debilidades organizativas do movimento operário de então. A adesão ao comunismo – que se gestou como ideologia no bojo da vitória de outubro –, especialmente com a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, foi uma modernização política do proletariado brasileiro, que teria alcançado “a verdadeira consciência de classe”. Frederico Bartz critica os limites que ambas as perspectivas acarretam: ao contrário de uma tendência atenta a fatos ocorridos “em outro lugar”, de outra que valoriza ocorridos futuros, “em outro tempo”, ele propõe explicar os impactos da Revolução Russa “[…] a partir das tradições que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento” (p. 30).
Contribui para essa mudança na compreensão do processo o esforço do autor em estudá-lo no espaço do Rio Grande do Sul. Para tanto, atentou especialmente a um corpo documental que compreende jornais e revistas (não apenas gaúchos), panfletos, processos-crime e correspondências. Referências bibliográficas as mais variadas, reforçando o argumento referente à articulação de diferentes espaços. Para além da destacada produção gaúcha referente ao movimento operário, o autor também se apropria de clássicos da historiografia nacional e estrangeira, evidenciando a complexidade do fenômeno.
“O horizonte vermelho” é dividido em seis capítulos, todos intitulados a partir de frases extraídas da documentação consultada. O primeiro, “O círculo que se expande indefinidamente”, trata-se de uma contextualização da Revolução Russa de referência aos processos por ventura aludidos pelos militantes gaúchos estudados. Uma leitura dispensável, portanto, aos leitores familiarizados com o tema.
Em “Hosanna, Hosanna, filha da justiça que vem para nós em nome da liberdade”, o autor estabelece as bases de sua intepretação em torno de uma tradição de militância como terreno no qual as imagens dos ocorridos no Leste podiam vicejar de diferentes formas. Para tanto, foi condição sine qua non apresentar a configuração do movimento operário gaúcho a partir de suas organizações e órgãos de imprensa estabelecidos em 1917, remontando ao período de Proclamação da República. A rivalidade entre socialistas e anarquistas tem destaque aqui, especialmente no que toca às disputas em torno da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), sem deixar de discutir centros gaúchos importantes para além da capital. São levantadas as primeiras referências à Revolução Russa no espaço gaúcho e interpretadas a partir das diferenças entre mencioná-las em um comício ou em um texto de intervenção em um jornal, por exemplo. Bartz não omite o caráter indiciário das fontes em discussão, que explora seja na forma de sua circulação, seja no que há de revelador na linguagem e terminologias utilizadas. Expõe, assim, as divergências e similitudes nas primeiras apropriações da Revolução Russa pela militância gaúcha no ardente momento da greve de 1917.
No terceiro capítulo, “A humanidade é um turbilhão e o mundo um crepitar de chamas”, partindo de um maior manancial de documentos, o historiador atenta a um processo de efervescência de lutas operárias no Sul, o que conforma novas leituras do referencial russo. Fundamentalmente, o que ocorria na Rússia era tomado pelos militantes estudados enquanto uma manifestação da revolução mundial da qual os ocorridos gaúchos também eram parte. No exemplo russo, portanto, mais do que uma expectativa, havia uma marcha concreta em expansão, o que é demonstrado pelas publicações de notícias de outros episódios estrangeiros na imprensa estudada (Hungria e Alemanha). Ainda na toada de enfocar as manifestações jornalísticas, o autor relaciona as respostas da militância à apreciação da imprensa burguesa em torno da Revolução Russa. Denunciavam os interesses de classes de veículos como o Correio do Povo. Era uma denúncia que implicava na continuada defesa da experiência russa a partir de argumentos que visavam também legitimar o seu próprio projeto de revolução. Não era apenas o referido cariz burguês que era acusado, mas também as bases do noticiário, como “boatos infundados” e “fontes duvidosas” (p. 121). Por fim, Bartz se dedica à análise dos textos que expressam a “necessidade de analisar a nova situação” (p. 125), escritos que identifica como de opinião editorial, distintos pelo seu caráter “mais doutrinário e teórico do que propriamente informativo” (p. 126). É meritória a explicitação sutil e direta dos critérios de escolha do corpus inquirido. Identifica-se aí uma variedade de impressões, com predomínio das “[…] que ligaram a revolução às lutas políticas e econômicas dos trabalhadores organizados” (p. 136). Resulta-se da análise exposta uma demonstração da fraqueza de uma das hipóteses correntes sobre o fenômeno estudado (o apoio dos anarquistas brasileiros à Revolução Russa como fruto de equívoco).
Um momento destacável em “O horizonte vermelho” encontra-se no quarto capítulo, “Parecerá absurdo que um libertário que tem por lema a paz exclame: Salve a Revolução!”. A exposição aqui adquire caráter distinto, iluminando elementos já abordados, com a aproximação biográfica de militantes com diferentes inserções no processo. A variedade de apropriações que trazem da Revolução Russa é um elemento relevante à compreensão da pluralidade própria à experiência operária no período analisado e no Rio Grande do Sul: “[…] a aproximação com os ideais da revolução foi um processo diferente para diferentes sujeitos, que tinham histórias e tradições diversas” (p. 175). É assim que Bartz se volta para as figuras de Friedrich Kniestedt, Zenon de Almeida, Abílio de Nequete e Carlos Cavaco, sendo eles dois anarquistas, um livre-pensador e um socialista, respectivamente. Foram variadas as suas experiências militantes, para além de questões próprias às trajetórias de vida em geral, fato notório na importante apropriação étnica de Almeida e Nequete. Também foram diversificadas as formas com que travaram contato com as notícias da Revolução Russa e como as ressignificaram de acordo com a sua atuação e inserção política, configurando distintos caminhos no complexo processo que se desenrolava.
Em “A vossa fraqueza é filha da vossa divisão – uni-vos pois! E não haverá força alguma que possa vos enfrentar”, é observada a peculiaridade dos primeiros grupos comunistas gaúchos, a sua inserção no movimento operário local, bem como a sua relação com as organizações assemelhadas do centro do país – o que, por si só, implicou em se concentrar na rede de difusão de informações entre diferentes regiões, objeto histórico importante. Também se avalia como esses grupos participam em um novo tipo de ação política, indício das transformações de vulto em processo. No que toca às particularidades sul-riograndenses, o autor lembra que as associações operárias de cariz comunista surgem mais rapidamente em relação a outras regiões do Brasil, sendo este “o aspecto mais visível do impacto da Revolução Russa”. Bartz retoma experiências efêmeras citadas antes em seu livro, tendo em vista a devida fidelidade factual. Sua atenção às organizações de tipo novo reside no quanto elas expressam alterações em objetivos programáticos, bem em sua inserção nas lutas concretas do período. A variedade regional dos grupos comunistas originais demandou à pesquisa uma atenção dividida entre diferentes centros gaúchos. A relação dos primeiros comunistas do Rio Grande do Sul com seus congêneres de São Paulo e Rio de Janeiro é exposta a partir da narrativa de um episódio pouco lembrado pela historiografia brasileira como um todo: a insurreição de 1919. A experiência, de caráter revolucionário, é abordada especialmente no que toca os novos elementos nela atuantes, como o novo tipo de laços políticos que se estabeleciam e as novas leituras com que militantes como Abílio de Nequete travavam contato.
O último capítulo da obra tem por título “Não se pode descrever o que se passou na cabeça de boa parte de nossos velhos amigos – num piscar de olhos tornaram-se nossos inimigos”. Ele versa sobre um aspecto fundamental do objeto: o refluxo do movimento operário após o agitado triênio inaugurado em 1917 e a crise interna no bojo desse refluxo, manifesta pela radical cisão entre anarquistas e bolchevistas. A recepção do processo russo e de suas notícias estava no centro do conflito. No caso gaúcho, demonstra Bartz, é precoce o imbróglio, sendo “[…] provavelmente um dos primeiros estremecimentos do movimento operário brasileiro causados por este motivo” (pp. 226-227). Um processo mais complexo, contudo, do que as aparências podem sugerir. O autor contempla as experiências e tradições de classe locais, escapando de armadilhas próprias às memórias dos envolvidos, as quais discute com o devido cuidado analítico (pp. 238-239). Outro aspecto fundamental do momento de refluxo das atividades do movimento operário é identificado pelo historiador no esforço repressivo em curso especialmente a partir de 1919. Isso é comprovado por documentos policiais e noticiário da grande imprensa, nos quais localiza o empenho em não apenas desmerecer a experiência russa, mas especialmente criminalizar as associações operárias, que se manifestavam em um crescendo, tanto no vulto de suas atividades quanto na radicalização de sua linguagem. Por fim, apresenta-se o estudo das disputas internas do movimento operário gaúcho a partir das lutas desenvolvidas no seio das organizações locais, processo que o autor interpreta a partir da hipótese das sequelas da repressão há pouco citada, bem como das discordâncias em torno da atuação nas instâncias internas a esses trabalhadores. Essa explicação – não resta dúvida – reforça a constante matização de outras que atribuem as cizânias entre anarquistas e os recém constituídos comunistas apenas aos debates internacionais.
É relevante a leitura de “O horizonte vermelho” para todas e todos que se interessem não só pela história do movimento operário, mas também pela história política e das ideias no período abordado. O autor soube reutilizar em diferentes momentos de seu estudo as mesmas fontes, o que em nada tornou maçante a sua narrativa, pois interrogava-as de acordo com diferentes aspectos do complexo processo investigado, conseguindo, portanto, extrair distintas informações de um mesmo documento ao sabor da determinação à qual atenta. Elabora-se, assim, uma relevante explicação em torno de um momento decisivo na conformação de um importante ator da cena histórica brasileira que se desenvolvia.
Carlos Quadros – Doutorando em História Econômica e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Substituto do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Campus Itaquaquecetuba. E-mail: carlosfquadros@gmail.com.
BARTZ, Frederico. O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920. Porto Alegre: Sulina, 2017. 319 p. Resenha de: QUADROS Carlos Fernando de. Um capítulo na história da esquerda brasileira: o impacto da Revolução Russa no Movimento Operário Gaúcho. Projeto História. São Paulo, v.70, p.340-345, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].
O livro didático de geografia e os desafios da docência para a aprendizagem | Maria Ivaine Tonini
1 INTRODUÇÃO
A obra é organizada predominantemente por professores vinculados ou que já possuíram vínculo com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como Ivaini Maria Tonini, Lígia Beatriz Goulart, Roselane Zordan Costella e Rosa Elisabete Militz Wypyczynski Martins, além de Manoel Martins de Santana Filho, professor na Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Como o próprio título indica, o conteúdo do livro não pretende apresentar receitas prontas para o trabalho com livros didáticos, mas nos leva a refletir sobre o papel desse recurso didático na prática docente em Geografia, de forma a contribuir no processo de ensino-aprendizagem. A obra é dividida em três blocos, cujos artigos são descritos a seguir. Leia Mais
Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis – NUNES (RTA)
NUNES, Mônica Rebeca Ferrari (Org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015. Resenha de: CUBA, Rosana da Silva. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.457-462, maio/abr., 2016.
O último Estado da Arte sobre a temática da(s) juventude(s) na produção da pós-graduação brasileira, nas áreas de Educação, Ciências Sociais e Serviço Social foi publicado em 2009 e coordenado por Marília Sposito. Na época, a autora celebra o aumento das pesquisas sobre as juventudes, mas ressalta a necessidade de abarcar os jovens em suas múltiplas inserções: para além dos seus itinerários formativos escolares é possível empreender investigações numa perspectiva mais transversal e compreender como se dão as sociabilidades juvenis na rua, em suas intersecções e atuações em grupos religiosos e família, enfim, abarcar os diversos aspectos que compõem a vida cotidiana juvenil. Neste sentido, o livro organizado por Mônica Rebecca Ferrari Nunes, intitulado “Cena Cosplay: comunicação, consumo, memórias nas culturas juvenis” contribui para enriquecer o mosaico das pesquisas sobre jovens ao conjugar, em diferentes espaços e tempos, as categorias empíricas para uma compreensão dos jovens e a sua inserção no espaço urbano nas grandes cidades do sudeste do Brasil.
Mônica Rebecca Ferrari Nunes é docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), na cidade de São Paulo. Sua área de atuação envolve as áreas de comunicação, nas interfaces de produção midiática, cultura do consumo, processos de memória e cenas da cultura contemporânea.
O livro, segundo a autora, é uma proposta de cartografia, ainda que incompleta, sobre a prática cosplay entendida na tríade prática comunicativa, cultura e consumo. O livro é resultado de trabalho desenvolvido em grupo de estudos (Grupo de Pesquisa, Comunicação, Consumo e Entretenimento) da ESPM e vinculado ao CNPQ, e é organizado em seis partes: Cosplayers e poetas; Percepção, cognição e pertencimento; Moda e estilo urbano; Matérias sonoras; Games e colecionismo; Flânerie. Os textos que compõem a obra são de pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa e situados em diversos percursos acadêmicos, desde mestrandos a pós-doutores, imbuídos de um olhar comum: entender as relações dos jovens do Sudeste do Brasil com o cosplay, suas escolhas pelas representações, a relação com o consumo e a memória que se deseja construir.
A primeira parte é composta por dois trabalhos, de autoria da organizadora – Mônica Rebecca Ferrari Nunes – e de Marco Antônio Bin. Os dois textos versam sobre a compreensão da cena cosplay e da poesia marginal como formas de resistência ao cotidiano, materializadas em performances, sejam elas constituídas pelo prazer de encenar e pela captura dos ídolos para se fazerem ver e ouvir – caso dos cosplayers – ou pela ruptura com as mídias tradicionais e busca de uma visibilidade coletiva – caso dos poetas marginais. Os dois textos denotam para a necessidade de uma compreensão do cosplay juvenil como uma manifestação processual e cultural híbrida, entrelaçando formas de sociabilidades e constituição de identidades e fugindo de um olhar maniqueísta, segundo o qual os jovens cosplayers seriam meros consumidores e/ou reprodutores de ídolos midiáticos.
A segunda parte apresenta dois trabalhos que buscam se debruçar sobre as escolhas dos jovens que desejam e optam por serem cosplayers e a consciência que têm de si mesmos e de seus corpos. Ana Maria Guimarães Jorge e Gabriel Theodoro Soares assinalam o quanto o cosplay deve ser como interpretado não só como prática social, mas também como manifestação social, na medida em que o processo de constituição das identidades na contemporaneidade é marcado pela liquidez (Bauman, 2004). Assim o cosplay é uma possibilidade de constituir grupos para compartilhar vivências e, ainda, escolher representar um personagem que corresponda a determinados valores e significados com os quais há afinidade. Os dois textos constatam a relação entre o cosplay e a busca por um sentido à vida, numa espécie de jogo que propicia um tipo de fuga à vida cotidiana e promove o encontro consigo mesmo e com os seus pares. Essa fuga, contudo, não seria simplesmente fugir à ordem social vivida, mas a construção de outro espaço-tempo com uma ordem própria e condições de pertencimento.
A terceira parte compõe-se de dois textos que tratam sobre moda e sobre como o estilo cosplay influencia e se expande para outros campos. O texto de Tatiana Amendola Sanches aponta vários exemplos de apropriação, por parte de grandes marcas, de estratégias similares aos cosplayers, com modelos vestidos de determinados personagens. Michiko Okano, por sua vez, apresenta as características da “Lolita”, prática que é definida pelos participantes muito mais como um estilo de vida do que como uma subcultura ou cosplayers, seja no Japão ou no Brasil. São analisadas as particularidades e o que há de comum em Lolitas nos dois países e salienta-se que há processos ambíguos que conjugam espetacularização, contestação e a procura de lugar e identificação em uma sociedade que se mostra hostil. As autoras destacam a articulação de consumo e ludicidade que parece constituir-se numa resistência ao mundo adulto e moderno desencantado.
A quarta parte, intitulada Matérias sonoras traz as contribuições de Luiz Fukushiro e Heloísa de Araújo Duarte Valente, em texto que discute a presença da música no universo cosplay: muitos dos cosplayers, ao se apresentarem, adquirem, não apenas as vestimentas, mas, também, as vozes dos seus personagens. Além das vozes, a música constitui-se num elemento chave dos eventos cosplay, e, embora o mercado, de forma geral, não aceite o j-pop (uma apropriação japonesa do pop do Ocidente), ele é abarcado pelos cosplayers. Vera da Cunha Pasqualin, no texto seguinte, destaca o quanto é importante atentar-se para as onomatopéias maciçamente presentes nos mangás e tão importantes quanto as imagens para a compreensão do texto. A autora também analisa as performances de “vocaloides”: pessoas que utilizam um programa para computadores denominado Vocaloid, com vozes gravadas e que podem ser recombinadas, para se apresentarem e cantarem em uma língua que não conseguiriam falar, por exemplo.
A penúltima parte é formada pelos textos de Davi Naraya Basto de Sá e Wagner Alexandre Silva, em torno da temática dos games e do colecionismo. Sá analisa o quanto os games redefinem a memória da mitologia, atualizando estereótipos em um processo constante de reedição. O autor também faz referência à constituição identitária daqueles cosplayers que escolhem determinados personagens: as pessoas são aquilo que desejam consumir. Silva irá mostrar como o colecionismo ligado aos cosplayers difere, em certa medida, da tradição das coleções já estudada pelo filósofo Benjamin. A aquisição dos objetos ocorre também por seus usos e aproximações com determinado personagem, pavimentando a relação de transição de cosplayer a colecionador, relação esta que pode tornar-se mais estreita quando se aumentam os cosplayers que se deseja assumir.
A sexta parte, Flânerie, propõe um passeio por fotografias feitas pelos pesquisadores ao longo de suas pesquisas.
O livro pode ser comparado, imageticamente, a um caleidoscópio que fornece combinações diversificadas à luz do cosplay. Além de proporcionar um aprofundamento ao universo cosplay juvenil presente na região Sudeste do Brasil, contribui para pensar também nas metodologias para se estudar as juventudes. A organizadora cita, por exemplo, a experiência de ter entrevistado duas pessoas que fazem cosplayers via Facebook. Ainda, apresenta uma alternativa à Antropologia, área na qual não tem formação, combinando uma flanêrie e um “engajamento narrativo” com origem em Benjamin e, posteriormente, McLaren.
Por fim, a obra também contribui para debater o consumo na contemporaneidade e o quanto é preciso calibrar o olhar ao debruçar-se sobre a semiosfera cosplay: em tempos modernos – ou pós-modernos – já não é possível compreender as culturas juvenis e a sua relação com o consumo buscando uma motivação linear e unívoca. Temos sujeitos de habitus (Bourdieu) híbridos e, portanto, com identidades que se mesclam e metamorfoseiam, confundindo olhares mais aligeirados.
Referências
NUNES, Mônica Rebecca Ferrari (org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015.
SPOSITO, Marilia Pontes (coord.) Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), volume 1. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.
Rosana da Silva Cuba – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil. E-mail: rosana.cuba32@gmail.com
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Golpe midiático-civil-militar | Juremir Machado da Silva
O ano de 2014 foi marcado por uma efeméride: os cinquenta anos do golpe que depôs o presidente João Goulart. O simbolismo da data foi responsável por uma série de eventos e publicações que debateram e refletiram a história recente do Brasil. Paralelamente aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar crimes contra os Direitos Humanos no Brasil, em um lapso temporal que perpassava a Ditadura Militar, muitos outros foram produzidos para refletir o período. Entre as obras que vieram à lume está “1964: Golpe midiático-civil-militar”, de Juremir Machado da Silva, que, em menos de um ano, está na sua quinta edição.
Formado em jornalismo e história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e com mestrado e doutorado em sociologia da cultura pela Universidade René Descartes, em Paris, Juremir Machado da Silva tem uma produção de caráter interdisciplinar e alguns trabalhos caracteristicamente na área da História, como “Jango, vida e morte no exílio”, publicado em 2013. Em sua mais recente pesquisa o autor se propõe analisar o papel da mídia, mais particularmente o papel da imprensa, no contexto do 31 de março de 1964. Trata-se de uma obra que, ao analisar a atuação da mídia no golpe militar, abre uma seara de oportunidades para que novos estudos possam se debruçar sobre o tema. Leia Mais
Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas | Carlos Gadea
A temática de relações raciais, no Brasil e em outros contextos, como nos Estados Unidos, está, há muito tempo, na ordem do dia. As situações de conflito permeadas pelo racismo – tal como os casos de violência policial contra os negros – fazem emergir, nesses países, um sem número de discussões sobre a questão racial em suas diversas manifestações, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais.
A consciência do conflito e da discriminação por diversos atores sociais, tal como os ativistas dos movimentos negros e parte expressiva da Academia, tem ensejado, também, no Brasil e alhures, reflexões sobre o enfrentamento político do racismo em suas dimensões de identidade social e pertencimento cultural, expressas em noções como “raça”, “negritude” e “africanidade”. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas, do uruguaio Carlos Gadea, sociólogo e professor da UNISINOS, tem como proposta precípua justamente analisar as configurações e os vínculos entre identidades étnicas e sociais traduzidos nas vivências contemporâneas das relações raciais, no Brasil e nos Estados Unidos.
A hipótese central é a de que, nesses países, o “espaço da negritude”, que para o autor consiste em uma espécie de lugar social atravessado por identificações raciais, performances subjetivas e interesses práticos dos grupos implicados em relações raciais, estaria passando por sensíveis modificações nas últimas décadas.
Gadea parte de uma indagação geral inquietante: na atualidade, o “espaço da negritude” apenas teria sentido no âmbito de uma negritude ancorada na africanidade, através da ideia de ancestralidade, de memória histórica ou de um marcador como a cor da pele? A percepção da heterogeneidade crescente dos espaços da negritude, em contextos urbanos de diferenciação social e individualização se desdobra em perguntas adicionais: só se pode compreender o que representa o “negro”, ou as identidades raciais, a partir do racismo? Quais são as características das relações raciais na contemporaneidade, em diferentes contextos?
O livro é fruto de uma pesquisa de pós-doutorado realizada pelo sociólogo na Universidade de Miami, em 2012. Nessa experiência em solo norte-americano foram levadas a cabo as pesquisas e observações que serão o mote inicial para a percepção atualizada e comparativa sobre as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, presentes no Capítulo 1, intitulado “Contextos e situações do espaço da negritude”. Miami, uma cidade profundamente multicultural, encerra, em sua complexidade própria, diversos espaços da negritude, formados por populações negras oriundas do Alabama, Geórgia, Jamaica, República Dominicana, Haiti. A cidade é o local onde, em 2012, ocorreu o controverso assassinato do jovem afroamericano Travyon Martin por George Zimmerman, um policial branco e “latino”. A reação de protesto da população negra de Miami, ainda que tenha mobilizado uma memória de violência e discriminação e justaposto os negros de forma geral contra um inimigo institucional comum, parecia não estabelecer como evidente em si mesma uma ligação entre os signos da negritude e uma percepção racializada dos conflitos e da sociedade. Esse aparente paradoxo entre ideias de cor/raça e identidade étnica é explorado pelo autor através da análise das contradições e ambiguidades envolvendo a inserção das comunidades haitianas e dominicanas da capital da Flórida na relação mais genérica com a comunidade negra – ou afro-americana – da cidade.
Uma sexta-feira por mês os haitianos de Miami realizam um encontro cultural no chamado “Little Haiti Cultural Center”, no bairro homônimo. As frequentes idas do sociólogo a esse evento resultaram na impressão de que o Haiti culturalmente representado era contemporâneo, diaspórico e imprevisível. Os haitianos não formam, evidentemente, uma comunidade homogênea; rejeitam, ademais, uma identificação automática com os “afroamericanos”, criando e atualizando sua identidade em termos de uma comunidade nacional imaginada. Nesse sentido, o espaço da negritude entre os haitianos não afirmaria a evidência de uma pertença ao discurso da memória coletiva ou da africanidade; o “pertencimento”, na realidade, reveste-se de ambiguidades para essa comunidade: por um lado, são “negros” no sistema de classificação racial dos EUA, e por essa razão são discriminados também; por outro, essas pessoas “falam” politicamente como membros da diáspora haitiana, tal como se materializou no decorrer dos protestos pela morte de Travyon Martin.
Entre os dominicanos da mesma cidade há ainda outras problemáticas identitárias. Eles seriam particularmente “indecisos”, ambíguos, frente às categorias raciais hegemônicas – “brancos”, “negros”, “latinos”. De um ponto de vista social e do fenótipo eles são “negros”, mas culturalmente se identificam como “hispânicos” – ou “latinos”. Uma característica dos dominicanos seria o fato de se constituírem socialmente como “individualidades”, e não propriamente como uma “comunidade” lastreada em uma experiência cultural comum. Não apenas não residem em um mesmo bairro quanto também não consideram terem sido deslocados compulsoriamente para os EUA – fosse por escravidão (como os afro-americanos) ou problemas econômicos em seu país de origem (latinos de forma geral). Deste modo, não vivenciam os mesmos laços de solidariedade “racial” com os negros norte-americanos nem ativam a memória de um passado escravista para construir sua identidade étnica.
Há, além disso, um traço a diferenciá-los e singularizá-los: o uso da língua espanhola. Tais particularidades servem de mote para o autor fazer uma crítica contundente ao Atlântico Negro (2001), de Paul Gilroy, livro que praticamente ignorou as histórias negras de língua espanhola e portuguesa – o Brasil, nesse caso. Gilroy parece pensar o Atlântico Negro tendo como matriz empírica e epistemológica a realidade das relações raciais nos Estados Unidos. Ora, a vivência cotidiana dos dominicanos negros, idiossincrática pela linguagem/idioma, é encenada também a partir de uma espécie de cultura nacional imaginada, “latina”, questionando assim os pressupostos sociológicos, culturais e empíricos que são mobilizados para pensar a experiência negra nos Estados Unidos como uma matriz homogeneizada em princípios como “consciência racial”, “memória da escravidão” ou “africanidade”.
Na sequência, ao final da primeira parte do livro, Gadea se debruça sobre um contexto brasileiro específico: o dos jovens negros de Porto Alegre (RS). O autor foi ao Parque da Redenção, lugar de grande movimentação cultural e de pessoas na capital gaúcha. O parque também é ocupado por jovens negros, que são em sua maioria oriundos dos bairros periféricos da cidade. Aí eles perfazem uma saída de seu contexto – estigmatizado – de origem, estabelecendo uma existência dual nos diversos espaços em que sua negritude é tornada visível. Essa “saída” seria expressão de processos de individualização e diferenciação social – próprios de culturas urbanas – vivenciados por esses jovens, que engendram assim “jogos de reversão” de adscrições socioraciais, desconstruindo essas identificações em nome de atitudes de autodeterminação. Tal experiência encontra o que é afirmado – e questionado – ao longo do livro: a negritude desses jovens não parece ter na “pertença racial” um lastro empírico evidente, nem na “ancestralidade” ou “africanidade” um eixo automático de identificação. O espaço da negritude, para esses sujeitos sociais, é produto de negociações e disputas simbólicas e semânticas, posto que sua presença no Parque da Redenção problematizaria os nexos entre o “corpo negro” e os processos de subalternidade.
Em uma tarde de domingo o dito sociólogo foi conversar com os jovens. Ao questioná-los sobre sua negritude, notou que esta era percebida – e constituída – menos por uma ligação com um “mundo afro-brasileiro” imaginado do que pela consciência da diferença que emerge do racismo em situações de tensão e conflito no cotidiano citadino – como ser barrado em uma festa, colocado na parede pela polícia, etc. Esse espaço na negritude é, portanto, relacional, ou seja, não existe uma negritude preexistente ao jogo das relações sociais/raciais. Não se trata de negar que esses jovens não tenham uma “consciência de si” enquanto negros, mas que os signos sociais da negritude existem “entre parênteses”, em “estado de suspensão”, vindo à tona nas situações de crise e conflito.
O segundo – e último – capítulo, “O reverso da negritude e o avesso da africanidade”, consiste em uma ampla reflexão teórica, ancorada nas percepções mais empíricas e situacionais do capítulo anterior. Prosseguindo em seu exame acerca das mudanças no espaço da negritude na contemporaneidade, o autor busca fortalecer o argumento de que, do ponto de vista da etnicidade, as lógicas das relações sociais, na atualidade, pari passu à racialização, colocam em jogo determinados processos de individualização e diferenciação social, problematizando nexos política e sociologicamente consagrados entre negritude e africanidade. Uma fina matriz sociológica simmeliana aqui está presente, na medida em que se afirma que o alargamento e a diversificação do campo de experiência e das interações sociais dos indivíduos negros reforçaria, paradoxalmente, sua vivência e identificação propriamente individual. Isso implicaria em repensar, por exemplo, a ideia de “gueto”, do ponto de vista dos supostos elos entre ideais comunitários e de pertença racial – tal como visto pela Escola de Chicago para o caso norteamericano. Se o gueto é espaço e metáfora de determinadas relações raciais e formas de negritude – ao menos nos Estados Unidos –, ele, todavia, não representaria as novas dinâmicas individuais e sociais pelas quais se constroem e se atualizam os espaços da negritude, material e simbolicamente falando. As experiências dos negros haitianos e dominicanos de Miami e dos jovens negros porto-alegrenses seriam testemunho dessas novas configurações.
Os sentidos da negritude são questionados: se ela representou, política e intelectualmente – para o Movimento Negro brasileiro, nos anos 1970 –, uma “tomada de consciência de ser negro”, como pode ser entendida na atualidade? De que forma coloca em xeque as estruturas epistemológicas que o Ocidente moderno criou para definir a humanidade em termos de hierarquia racial? O autor então investe sobre a noção-chave de “africanidade”:
A africanidade é um espaço de elaboração discursiva e política que pretende sintetizar a pertença coletiva de um grupo humano a uma comunidade presumivelmente fundamentada em determinadas especificidades históricas e culturais referenciadas no continente africano (p. 87; grifo do autor).
A africanidade, nessa definição, tem uma dimensão tanto pedagógica quanto de uma técnica de subjetivação, para a população negra, visando ao reconhecimento enquanto etnicidade particular e cultura comum, lastreada na ideia de uma ancestralidade. A consciência sobre essa africanidade seria condição para o autorreconhecimento enquanto “sujeito negro”. A perspectiva “afrocêntrica” presente nessa noção de africanidade é criticada pelo autor, pois esse “lugar” epistemológico não comportaria a compreensão das atitudes e comportamentos, por exemplo, dos jovens negros urbanos, não abarcando, necessariamente, as dinâmicas da vida social dos negros brasileiros em sua complexidade e multiplicidade.
A esposada leitura de autores como Stuart Hall e Michel Foucault impossibilita pensar o sujeito como dado a priori, anterior às relações sociais e discursivas que o produzem e o atualizam constantemente. Gadea diz ser necessário pensar em outras variáveis dos conflitos racismo e do antirracismo. Uma dessas variáveis estaria presente na ideia de “códigos de urbanidade”, o que implica em analisar as relações entre as cidades e as etnicidades que as habitam, nos espaços simbólicos e de sociabilidade nos quais a negritude é permanentemente dispersada e reconfigurada. A vivência dessa urbanidade diversificaria as experiências e as possibilidades de afiliação grupal dos jovens negros – o principal grupo social a que o autor se refere, no contexto brasileiro. A negritude, e aqui está uma reflexão importante, estaria para além da ideia de africanidade, e também da própria noção de comunidade. Desta forma, as referidas mudanças no “espaço da negritude” seriam atravessadas por uma marcante dualidade: “[…] por um lado, o que se pode entender como uma aproximação crescente de múltiplos contextos sociais de referência e, pelo outro, uma diferenciação social geradora de uma experiência da individualidade e da negritude muito particular.” (p. 112).
As pertenças aos grupos estão se diversificando e transformando também as experiências individuais dos “jovens negros”, na medida em que a individualização e a diferenciação social – Simmel (1977 [1908]) – levariam ao enfraquecimento dos laços entre os indivíduos mais imediatos e possibilitariam a construção de outros [laços] com indivíduos socialmente mais distantes. Tal processo é visto aqui de forma positiva, pois essa diversificação tenderia a enriquecer o caldo sociocultural no qual se dão as relações raciais – e no qual se criam novas formas de combater o racismo e pensar o antirracismo.
O livro de Carlos Gadea trabalha com um amplo espectro de questões, eixos temáticos e perspectivas teóricas. Percorre vários campos do conhecimento, especialmente a sociologia dedicada às relações raciais. Com esta sociologia se estabelece um bom diálogo, especialmente com autores da vertente pós-colonial, como Paul Gilroy (2001), Stuart Hall (2000; 2003), Sérgio Costa (2006) e Lívio Sansone (2004). Da obra de Costa pode-se dizer que se compartilha de uma perspectiva comparativa e transnacional de entender a questão racial no Brasil contemporâneo; com Sansone há uma tentativa de compreensão da negritude brasileira em um leque analítico mais plural e multifacetado, para além de discursos calcados exclusivamente na ideia de etnicidade.
Uma das contribuições mais relevantes da obra está em analisar a maneira como os ditos processos de individualização e diferenciação social no Brasil atual, próprios de contextos urbanos, dão novas configurações a discursos sobre identidade, modificando a morfologia das relações raciais e os entendimentos e desafios em torno do racismo e antirracismo em “espaços da negritude” constantemente transformados. As reflexões de Gadea sobre as ligações entre urbanidade e negritude fornecem interessantes possibilidades teóricas e campos de estudo para os cientistas sociais, seja no Brasil ou em outras sociedades.
É preciso dizer, contudo, que o trabalho poderia ser mais bem fundamentado empiricamente, especialmente em relação aos “jovens negros urbanos” da periferia de Porto Alegre. Não fica clara a opção em se ater apenas a esse grupo. Na realidade, pouco se fica sabendo sobre eles: os “jovens negros”, que fundamentam uma série de percepções sobre relações raciais no Brasil, são em número de seis. Quem são eles? De que periferia portoalegrense eles provém? Ainda que as percepções sociológicas se mostrem de fato muito pertinentes, uma “amostragem” tão reduzida é própria para se falar sobre uma complexidade que está na base dos argumentos centrais do livro? Tal ponto, ainda que fragilize, não desqualifica a abordagem teórica mais geral de Negritude e pós-africanidade, que traz um conjunto de questionamentos fundamentais para se refletir sobre os “espaços da negritude”, no Brasil e em outros contextos, a partir de olhares complexos e plurais.
Referências
COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34, 2001.
HALL, Suart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador/Rio de Janeiro: Edufba/Pallas, 2007.
SIMMEL, Georg. Sociología. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1977 [1908].
Rafael Petry Trapp – Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Faperj. E-mail: rafaelpetrytrapp@gmail.com
GADEA, Carlos. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2013. Resenha de: TRAPP, Rafael Petry. Espaço(s) da negritude. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.17, p.539-545, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]
Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação – RAVICH (ES)
RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Trad. de Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulina, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Sara Badra de; MENEGÃO, Rita de Cássia Silva. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 no.119 Campinas abr./jun. 2012
Em seu livro Vida e morte do grande sistema escolar americano, Diane Ravitch expõe de forma acessível e detalhada a evolução das reformas de mercado no sistema escolar dos Estados Unidos nas últimas décadas, criticando seus pressupostos ideológicos e denunciando seus resultados, que contribuíram para agravar a crise da educação pública americana.
Como acadêmica e propositora de políticas inserida no aparelho de Estado, a autora analisa as reformas que ela antes endossara com entusiasmo, e que agora passa a criticar diante das evidências de seus resultados. Ravitch é pesquisadora-doutora da Universidade de Nova Iorque. Em 1991, ela aceitou o convite do então secretário Lamar Alexander para ser sua conselheira e secretária-adjunta no Departamento de Educação dos Estados Unidos. Também esteve envolvida como conselheira nos governos Bill Clinton e George W. Bush e participou ativamente de movimentos pelas referências curriculares, responsabilização e escolha escolar.
A primeira edição do livro lançada no Brasil contém agradecimentos da autora, apresentação escrita por José Clovis de Azevedo e mais onze capítulos seguidos das notas com bibliografia e do índice. No primeiro capítulo, “O que eu aprendi sobre a reforma escolar”, Ravitch analisa sua trajetória profissional, os cargos políticos exercidos, os trabalhos acadêmicos desenvolvidos e as soluções outrora defendidas, e como ela foi retirando seu apoio das populares soluções baseadas na lógica do mercado.
No segundo capítulo, “Sequestrado! Como o movimento pelas referências curriculares se transformou no movimento de testagem”, ela expõe como a responsabilização baseada em teste tornou-se o principal motor da reforma escolar, substituindo o movimento pelas referências curriculares. Em “A transformação do Distrito 2”, é descrita a experiência desse distrito, que foi eleito símbolo nacional de como ampliar a escala da reforma, tornando-se uma fórmula a ser transposta para outros sistemas. Os capítulos seguintes, “Lições de San Diego” e “A lógica de mercado em Nova Iorque”, descrevem detalhadamente as experiências que foram influenciadas pelo Distrito 2, explicitando o caráter empresarial das reformas de responsabilização e das políticas organizacionais aplicadas no distrito de San Diego e na cidade de Nova Iorque.
O capítulo seis, “NCLB: testar e punir”, expõe as características e determinações principais da lei federal que selou a era da responsabilização baseada em dados, assumindo um papel de interferência nas escolas locais como nunca antes na história do federalismo americano. Em “Escolha escolar: a história de uma ideia” fica claro que, desde 1980, a questão da “escolha”1 escolar povoa a arena de discussões e propostas para a educação, materializando-se sobretudo nos vouchers e nas populares escolas administradas por concessão.2 No capítulo oito, “O problema com a responsabilização”, Ravitch condensa as críticas, sempre sinalizadas ao longo do livro, às reformas de mercado, mostrando um conjunto de pesquisas e evidências contrárias à responsabilização baseada em teste.
Em “O que a Sra. Ratliff faria?”, a autora recorre à lembrança de sua antiga e inspiradora professora para expor como a lógica da atual reforma desvaloriza o que ela considera ser um bom professor e passa a girar em torno de uma noção específica de “professor eficiente”, explicando como isso afeta nas políticas de gerenciamento dessa força de trabalho. O capítulo dez, “O clube dos bilionários”, explica o funcionamento da poderosa rede de filantropia privada que apoia a reforma, conferindo-lhe enorme fôlego e limitando o alcance das vozes e movimentos de resistência.
Por fim, no último capítulo, “Lições aprendidas”, Ravitch exalta sua posição de defensora da escola pública, conclui que as atuais reformas colocam a educação pública em perigo e sinaliza o que ela acredita que seja uma educação de qualidade e o caminho que se deve percorrer para alcançá-la, deixando claro que não existem “panacéias” ou fórmulas mágicas quando se trata de educação.
A autora adota uma postura sincera e corajosa ao rever suas posições e admitir que as soluções de mercado não estão alcançando as melhorias esperadas no desempenho dos alunos. Os EUA permanecem estagnados em avaliações nacionais (Naep) e internacionais (Pisa).3 Para além dos números, a crítica mais fundamental de Ravitch é que essas soluções de mercado estão erodindo os valores públicos e a própria educação pública, que ela advoga como uma instituição essencial para a democracia e para a constituição de uma nação economicamente forte e repleta de oportunidades.
Ela manteve sua posição em defesa da escola pública e das referências curriculares. Permanece endossando que o sistema educacional defina claramente seus objetivos, através de um currículo rico e coerente que englobe uma formação abrangente, além das habilidades básicas, que têm sido o alvo restrito dos testes atuais. No início do livro, ela analisa como as novas reformas se distanciaram dessa preocupação fundamental com o currículo e passaram a acreditar que mudanças na gestão e na estrutura do sistema seriam prontamente a solução para os problemas da educação. Os princípios empresariais de gestão e contratação de profissionais, escolha, recompensas e punições para incentivar a força de trabalho, decisões e metas baseadas em um bom sistema de dados, passam a ser soluções por si mesmas, negligenciando as dimensões pedagógica e política da educação.
A questão da reforma escolar tem sido politicamente popular nos Estados Unidos desde os anos de 1980. Em 1983, o relatório A Nation at Risk (Anar)4 foi emblemático, pois mostrou em tom direto e incendiário o fracasso do sistema educacional em cumprir seu papel como instituição acadêmica a serviço do desenvolvimento do país. Ao sinalizar a necessidade urgente de mudança, o Anar influenciou o início do movimento pela reforma baseada em referências curriculares. No entanto, devido às controvérsias acaloradas que surgiram em torno do currículo nacional de história, esse movimento ruiu em 1994, sendo substituído por esforços de reforma cujo foco não era mais o que os estudantes deveriam aprender.
O foco das atuais reformas restringe-se à responsabilização baseada em teste, ignorando preocupações essenciais sobre qual educação se espera e como fazer para melhorar as escolas públicas que enfrentam dificuldades. Ao invés de lidar com esses problemas espinhosos, parece mais fácil entregar a administração das escolas à iniciativa privada, sob o argumento de que ela fará melhor do que a administração pública engessada e ineficaz. A criação das escolas administradas por concessão, iniciada nos anos de 1990, representa especialmente essa crença.
Além dessa forma de privatização, os princípios empresariais são injetados no aparelho do Estado, que passa a utilizar um sistema de dados – os testes de múltipla escolha de habilidades básicas dos estudantes – como base para decisões de responsabilização, que envolvem recompensas e punições para escolas e seus profissionais, conforme atinjam as metas de desempenho. A elevação das pontuações dos testes passa a ser o objetivo educacional, representando a medida da eficiência de professores e escolas.
Esquivando-se da questão da produção da desigualdade na sociedade, os reformadores acreditam que professores eficientes sejam capazes de resolver o problema da disparidade de desempenho entre estudantes de diferentes grupos sociais. Equipes constantes de professores eficientes poderiam ser formadas se os administradores pudessem demitir à vontade os ineficientes e vincular o pagamento aos escores dos estudantes. Porém, à medida que o profissional é julgado com base em resultados mensuráveis, sua experiência e qualificações são desvalorizadas. Para alcançar esses objetivos, tenta-se eliminar os sindicatos e a estabilidade do professor, considerados uma barreira à gestão eficaz dos recursos humanos e das condições de trabalho.
A infusão de ideias de mercado na educação pública é acompanhada pela injeção de grandes somas de dinheiro por poderosos empresários e suas grandes fundações, que assumem para si a tarefa de reformar a educação. Assim, a reforma abre suas portas para o domínio de profissionais de diversas áreas, sobretudo do meio empresarial, contribuindo para a desvalorização da profissão docente.
As fundações financiam desde organizações que terceirizam professores5 até escolas públicas, empresas de escolas por concessão, treinamento de diretores de escolas e superintendentes distritais, programas públicos e movimentos políticos que defendam seus interesses de mercado, formando uma rede de filantropia privada que passa a definir a agenda política da reforma educacional dos governos. A filantropia da virada do milênio não arrisca deixar o planejamento das reformas para seus beneficiários; são as próprias fundações que definem o que e como realizar, e quais organizações são apropriadas para suas doações, cobrando um retorno de seu investimento através de medidas concretas de efetividade.
As principais fundações dos EUA – Gates, Walton e Broad – representam juntas uma força além do alcance das instituições democráticas. Por serem organizações privadas, não estão sujeitas à supervisão e revisão do público, o que condena a educação ao capricho dos financiadores e empreendedores e ao sabor da instabilidade do mercado. A definição da agenda de reforma é ideologicamente dominada por esses atores, que desqualificam qualquer posição contrária como avessa à mudança e defensora do engessado status quo.
Ravitch expõe as experiências emblemáticas de dois distritos que capturaram a atenção dos reformadores de mercado, o Distrito 2, da cidade de Nova Iorque, e San Diego. Ansiosos por encontrar um programa de reforma que pudesse alcançar escores de testes mais altos, os reformadores ficaram animados com a estratégia implementada em finais de 1980 no Distrito 2, crentes de que haviam encontrado um molde pronto para ser facilmente imposto por líderes firmes com intuito de atingir resultados rápidos. A reforma do Distrito 2 influenciou posteriormente a reforma de San Diego, em 1998, e da cidade de Nova Iorque, em 2001.
A verticalidade dessas reformas chamava a atenção. O superintendente de San Diego acreditava que mudanças eficazes são impostas rapidamente a partir de um centro gestor, e concentrou-se em demitir professores e diretores que não cumpriam prontamente as ordens centrais, demandar maiores escores nos testes, atacar a burocracia, lutar contra o sindicato dos professores e abrir escolas por concessão.
Em Nova Iorque, o prefeito e seu secretário de Educação foram mais ousados, conseguindo obter em 2002 o controle direto sobre as escolas da cidade. Empenharam-se em promover a “escolha” escolar, através do estímulo às escolas por concessão e às pequenas escolas de ensino médio, e programas de responsabilização envolvendo incentivos e sanções. Em 2007, o Departamento de Educação de Nova Iorque adotou um programa de pagamento por mérito, que oferecia bônus às escolas que atingissem progressos anuais em seus escores de testes.6
Ravitch critica a política verticalizada dessas reformas, que desconsideram a complexidade do processo educacional, cujas mudanças ocorrem de forma incremental, conforme os atores locais se apropriem de significados compartilhados e desenvolvam relações de confiança (cf. Bryk et al., 2010) em suas comunidades profissionais. Além disso, o controle direto sobre as escolas elimina os mecanismos de revisão pública de decisões, necessários em uma democracia para garantir a legitimidade e credibilidade das decisões políticas.
Em 2002, o governo Bush teve força suficiente para aprovar uma nova legislação federal para a educação, a lei No Child Left Behind (NCLB),7 graças ao apoio bipartidário que girava em torno da necessidade de maior responsabilização para as escolas. Essa lei selou a era da responsabilização baseada em dados, que exacerbou a importância dos testes, tornando-os fins em si mesmos. O destino de profissionais e escolas passou a ser decidido com base na pontuação dos estudantes nos testes de habilidades básicas de leitura e matemática.
A lei deixava os estados americanos livres para administrarem seus próprios testes e definirem seus próprios níveis de proficiência. A meta era que todas as escolas e distritos realizassem progressos anuais para cada grupo de estudantes em direção ao objetivo de 100% de proficiência até 2014. As escolas que fracassassem em alcançar o progresso estariam sujeitas a vários graus de sanções, entre os quais seus profissionais poderiam ser demitidos, a escola poderia ser fechada ou (eufemisticamente) “reestruturada”, convertendo-se em escola por concessão. Não há uma estratégia de orientação e apoio para as escolas que necessitem de melhoria. Pressupõe-se que as ameaças de demissão dos profissionais e de fechamento das escolas sejam suficientes para incentivá-los a melhorar. Caso não sejam, acredita-se que a administração privada será mais eficaz em alcançar bons resultados para os estudantes necessitados.
Exigir metas inatingíveis, combinadas à ausência de estratégias de assistência, contribui para aumentar cada vez mais o número de escolas públicas que se encontram em risco de serem fechadas ou transformadas em escolas por concessão, o que representa uma contagem regressiva para a demolição da educação pública. A reforma gera sutilmente um círculo vicioso, à medida que sua programação abala a confiança nas instituições públicas e na profissão docente, embasando mais demanda para privatizar a administração das escolas, assim como para desprofissionalizar a educação.
Os reformadores acreditam que as escolas por concessão, livres da regulamentação estatal, sejam capazes de alcançar melhores resultados e injetar dinamismo e competição no sistema, contribuindo para estimular a melhoria das escolas públicas regulares. Deixar a administração das escolas aberta ao grande fluxo de iniciativas privadas produziria uma saudável variedade no sistema educativo, proporcionando escolha às famílias dos estudantes que não conseguissem progredir nas escolas regulares. Desregulamentação, competição e escolha pareciam soluções óbvias.
O apelo para a criação de escolas administradas por concessão já era forte na década anterior à NCLB, fazendo parte de legislações estaduais e da legislação federal do governo Clinton, e permanece forte no governo Obama, apesar da ausência de evidências que comprovem a superioridade do setor como um todo. As pesquisas não mostram um padrão que permita afirmar que as escolas por concessão sejam melhores em alcançar bons resultados para os estudantes. Só é possível afirmar que a variedade na qualidade dessas escolas é enorme, incluindo desde aquelas excelentes a escolas precárias controladas por pessoas corruptas e incompetentes.
No entanto, não surpreende a insistência dos políticos em adotar esse modelo para a reforma, pois o entusiasmo pelas soluções de mercado e a posição ideológica contrária ao setor público superaram a busca por evidências empíricas. Ravitch sinaliza que o verdadeiro debate sobre as escolas por concessão é ideológico e não será esgotado com a incansável guerra de dados.
Assim como certas escolas públicas regulares, algumas administradas por concessão registram altos escores nos testes padronizados. Esses dados são suficientes para animar os reformadores e a mídia a projetarem uma imagem de sucesso para essas escolas como um todo. No entanto, estudos mostram que, por trás desses dados, existem certas condições que favorecem as escolas administradas por concessão. Elas atraem os estudantes mais motivados, podem dispensar aqueles de baixo desempenho ou que não cumpram seu código disciplinar, além de receberem recursos financeiros adicionais de grandes fundações, o que lhes permite oferecer turmas menores e mais tempo para atividades.
Ao contrário do que previram os defensores da escolha, as escolas públicas não estão melhorando com a competição. Elas acabam recebendo os estudantes de baixo desempenho e fraca motivação, sinalizando uma tendência de queda contínua em seus escores. A privatização das escolas tende a criar um sistema de dois níveis cada vez mais desigual, sem contribuir para encarar o desafio que permanece em aberto, de como educar todos os estudantes.
Ravitch expõe dados do Naep que mostram resultados desanimadores nos anos após a implementação da NCLB. Mais fundamental que isso, ela critica os pressupostos errôneos de como melhorar as escolas e sinaliza as distorções provocadas por eles. Na era da responsabilização, os testes extrapolaram sua função diagnóstica e adquiriram uma dimensão preocupante com propósitos de grandes consequências, sob a crença de que são uma ferramenta infalível capaz de identificar quais profissionais devem ser demitidos ou recompensados e quais escolas devem ser fechadas.
No entanto, por mais bem construídos que sejam, os testes são sempre imprecisos e sujeitos a variações aleatórias, erros humanos ou problemas técnicos. São limitados para medir o conhecimento dos estudantes, e ainda mais limitados para medir a qualidade das escolas e de seus profissionais. Eles podem fornecer importantes informações sobre o progresso das escolas, mas não devem ser utilizados como o único dado a partir do qual decisões importantes são tomadas.
Os testes assumem o poder de responsabilizar as escolas como se seus resultados refletissem apenas o que nelas ocorre e o que seus profissionais fazem para educar os estudantes. Sabe-se, no entanto, que são múltiplos os fatores que afetam o desempenho nos testes. A responsabilização focada nas escolas ignora a parte de responsabilidade dos estudantes e suas famílias, e do poder público em prover condições adequadas de trabalho. Os professores não são responsáveis sozinhos pelo aprendizado dos estudantes, e nem tudo de valor que um professor transmite aos seus alunos pode ser apreendido em um teste padronizado.
Quando as pessoas são pressionadas a satisfazerem medidas limitadas de desempenho, suas ações irão concentrar-se obsessivamente nos aspectos que influenciam estas medidas, negligenciando os outros objetivos da educação e os aspectos qualitativos do trabalho que não podem ser mensurados. A pressão por aumentar os escores dos testes de habilidades básicas pode produzir escores maiores e, ao mesmo tempo, uma educação pior. Professores concentram-se em ensinar aquilo que conta para os esquemas de responsabilização, prestando menos atenção às outras disciplinas e dimensões da formação, além de restringir o ensino a atividades de treinamento para testes (cf., também, Hout & Elliott, 2011; Madaus et al., 2009).
É bem conhecida a ocorrência de truques e atalhos para atingir os resultados desejados, como a manipulação da população testada, ou a diminuição dos níveis de exigência nos testes estaduais. Outra distorção é que os estudantes mais necessitados recebem menos atenção, pois os professores concentram seus esforços nos alunos próximos da média, que demonstrem maiores chances de progredir em curto prazo e elevar a média de desempenho (cf. Neal & Schanzenbach, 2010). Além disso, as escolas passam a competir pelos melhores estudantes e a adotar mecanismos velados de exclusão dos alunos que ameacem reduzir os escores da escola.
Ravitch defende um sistema de responsabilização que avalie as escolas com objetivo de ajudá-las a melhorar. O sistema de avaliação de professores e alunos deveria ser mais amplo que medidas de desempenho em testes padronizados, além de incluir outros atores, como o poder público, igualmente responsáveis pela capacidade das escolas em prover um bom ensino.
Fechar escolas não resolve o problema e ainda contribui para destruir instituições estabelecidas e fragmentar laços de comunidade. A escolha das famílias é que sua escola de bairro seja bem-sucedida; é obrigação do sistema público que todas as escolas o sejam, assim como é obrigação dos gestores buscar soluções reais para as escolas públicas que enfrentam dificuldades.
Decisões importantes de demissão e recompensa não podem ser feitas de forma leviana, baseadas em dados limitados. Demissões são possíveis e necessárias quando se trata de servidores negligentes e descompromissados com a moral do serviço público. Contudo, o julgamento profissional não deve basear-se apenas nos escores dos testes; deve incluir avaliações conduzidas por educadores experientes e formas de assistência da equipe escolar a professores com dificuldade. Os dados são importantes, mas isoladamente não oferecem uma justa medida do trabalho do professor e não podem substituir a avaliação em campo por um profissional experiente na área educacional.
Ravitch defende o fortalecimento da profissão docente, por meio do reconhecimento da importância da experiência e da formação inicial, enraizada na disciplina lecionada e na pedagogia. Além disso, a profissionalização deve incluir um apoio constante em serviço de mentores e colegas.
Ela reforça que os ricos objetivos da educação não sejam reduzidos a pontuações em testes, os quais devem ser apenas um indicador. Quando o teste torna-se objetivo principal vinculado a fortes consequências, ele próprio é invalidado e perdem-se de vista os objetivos essenciais da educação. Ravitch defende a importância de um currículo enraizado nas artes e ciências, que incite os estudantes à busca pelo conhecimento, desenvolva sua cidadania, capacite-os a refletir criticamente sobre questões e a tomar decisões sensatas sobre a própria vida, e contribua para formação do caráter e disciplina.
Para ela, as mudanças organizacionais propostas não irão resolver os problemas da educação, pois o sucesso das escolas depende de múltiplos fatores, como a definição de um currículo sólido, professores bem preparados, materiais, recursos e condições adequadas de trabalho, estudantes dispostos, pais apoiadores, e outros serviços ligados a uma reforma social mais ampla.
Também fica claro que a lógica de mercado não é apropriada para prover educação pública. A competição por clientes, o atendimento ao público de forma diferenciada e a oscilação de oferta fazem parte da esfera do mercado, mas perdem o sentido quando são transpostas para a esfera pública, encarregada de prover direitos sociais que devem ser garantidos a todos, independente do poder político e da posição na esfera produtiva. As esferas pública e privada podem coexistir, mas possuem objetivos de natureza distinta e devem ser regidas de acordo com a lógica coerente com seus objetivos.
Ravitch terminou de escrever o livro em 2009 e a publicação da primeira edição saiu em 2010. Porém, desde o seu lançamento, novas pesquisas e eventos significativos ocorreram na educação americana, fomentando na autora a necessidade de escrever um epílogo, intitulado School and Society (“Escola e Sociedade”), que por enquanto foi acrescentado somente na segunda edição do livro em inglês, lançada em 2011.
Desde o lançamento da primeira edição, surgiram importantes movimentos de resistência de vários grupos organizados, incluindo atores como pais e professores; escândalos emergiram apontando fraudes praticadas em grandes sistemas (como Nova Iorque), antes exaltados pelos reformadores devido aos seus “excelentes resultados”; e importantes pesquisas continuam a demonstrar a incapacidade das políticas de mercado em prover melhor educação para os estudantes, bem como as distorções provocadas por elas.
No entanto, a ebulição desses acontecimentos e de tantas evidências contrárias não foi suficiente para abafar o movimento de reforma empresarial, que adquiriu novo fôlego graças aos investimentos contínuos do setor filantrópico privado, às publicações acaloradas da mídia – como a do jornal Newsweek, sem contar o glamour agora conquistado em Hollywood com o lançamento do documentário Esperando pelo super-homem, em 2010.
Essas narrativas transbordam na exposição de dados para demonstrar o fracasso do sistema escolar público, atribuído à incompetência dos professores e à proteção dos sindicatos. O documentário defende, por meio de recursos dramáticos, que a única solução para as crianças8 é abrir mais escolas por concessão e poder demitir professores à vontade. No entanto, assim como a história do Newsweek, esse documentário baseia-se em meias-verdades, dados distorcidos, exageros e interpretações equivocadas.
Ravitch expõe as diversas falhas dos argumentos expostos nessas narrativas, que tipicamente desconsideram a implicação que a desigualdade social exerce no aprendizado dos estudantes. A pobreza, ela reforça, é um fato, não uma “desculpa” como alegam os reformadores. Ela também denuncia que expor o sindicato como “contrário aos interesses das crianças” é um apelo injusto dos reformadores, ansiosos por reduzir investimento público e privatizar escolas públicas sem enfrentar oposição organizada.
A reforma adquiriu o apoio crucial do presidente Obama e seu secretário de Educação Arne Duncan, com o lançamento do programa federal “Corrida para o topo”9 em 2009, segundo o qual seriam elegíveis para competir pelos fundos federais somente os estados que concordassem em adotar as prescrições do programa. Basicamente, o “Corrida para o topo” estimula a criação de escolas administradas por concessão – ousando ainda mais, prevendo eliminação dos limites para sua criação nos estados – e o uso das estratégias punitivas da NCLB nas escolas de baixo desempenho. Porém, esse programa foi mais longe que a lei, acrescentando que os estados aspirantes ao fundo deveriam concordar em demitir e recompensar os professores com base nas pontuações dos testes dos estudantes.
A publicação deste livro é bem vinda no Brasil, pois permite que façamos uma análise crítica das reformas educacionais em nosso país, tanto nos estados e municípios como na esfera federal.
Em São Paulo, por exemplo, a reforma educacional vem sendo conduzida de acordo com os mesmos pressupostos de mercado. Empresários, grandes empresas e fundações se mobilizam em movimentos e associações, como “Todos pela Educação” e “Parceiros da Educação”, com objetivo de “melhorar o aproveitamento escolar dos alunos”, influenciando e contribuindo com as políticas públicas de educação através de ações de parceria junto à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e às escolas (envolvendo desde formação continuada de professores/coordenadores, reforço escolar, à elaboração de plano de ação da política educacional e das escolas), além de ações de mobilização em torno de suas diretrizes e de divulgação dos resultados das metas por eles estabelecidas.
O interesse deles é compreensível, uma vez que a educação adquire caráter de urgência e prioridade para o desenvolvimento do novo modo de produção capitalista (cf. Freitas, 1991). A parceria público-privado também se manifesta na forma de arranjo de desenvolvimento da educação (ADE), um regime de colaboração recém-homologado pelo Ministério da Educação, que prevê a coparticipação de estados, municípios e instituições privadas e não governamentais na “melhoria da educação”.
Abriu-se um mercado para a indústria das consultorias, que recebem a responsabilidade de definir projetos de governos – a exemplo do projeto implementado no estado de São Paulo10 e outros (cf. Brooke, 2011) –, elaborar os testes de larga escala e, atualmente, realizar pesquisas encomendadas, financiadas pelos cofres públicos e grupos de executivos e fundações.11
Proliferam projetos e programas que contribuem para a desvalorização e precarização da profissão docente. Estes introduzem nas escolas – por meio dos próprios sistemas públicos, organizações e parcerias entre ambos – “monitores”, “oficineiros”, “tutores”, “trainees“, ou seja, profissionais sem experiência/qualificação docente, contratados temporariamente para atuar com os alunos em atividades culturais, esportivas, artísticas, e de reforço escolar, especialmente em escolas de vulnerabilidade social,12 caracterizando a natureza marginal desses programas. Por trás disso, nota-se a desresponsabilização do Estado em prover professores bem formados na área e em melhorar as condições de trabalho da categoria docente.
O exaltado discurso “professor é tudo”13 não é de valoração, mas de responsabilização, e de acordo com ele a culpa pela defasagem de aprendizagem dos alunos é da ineficiência do professor. Ao invés de se moverem pela lógica da profissionalização docente, os reformadores desvalorizam a formação inicial e defendem que salário e progresso na carreira sejam baseados na produtividade dos professores, medida pelo desempenho de seus alunos nos testes padronizados.
Assim, as reformas empresariais corrompem o “espírito do serviço público” ao atrelar pagamento a variações aleatórias do mercado como nível de produtividade, ao invés de vinculá-lo ao verdadeiro valor do trabalho e aos valores do servidor, como tempo de serviço e qualificação.14 Nesse cenário, valoriza-se a formação em exercício, em sua maioria por meio da EaD, na qual as aulas presenciais são substituídas por um plantão tira-dúvidas com tutores do programa.
Os testes padronizados de habilidades básicas já são bem conhecidos no Brasil em todos os níveis – municipal, estadual e federal15– e alguns servem como base para premiar professores nas redes que implementaram programas de pagamento de bônus.16 Alguns desses programas baseiam-se em outras medidas como taxas de evasão escolar, e até mesmo o que chamam de “avaliação institucional” – que seriam questionários online respondidos pelo corpo profissional e discente sobre vários aspectos de sua escola.17
Vale ressaltar que vários estudos (cf. Hout & Elliott, 2011; Madaus et al., 2009; Neal & Schanzenbach, 2010) já demonstraram a ocorrência de distorções – como avaliações inflacionadas – quando o objetivo da avaliação restringe-se à responsabilização sob a forma de punição e recompensa. Estudo de Marsh et al. (2011) sobre uma das experiências mais consolidadas de implementação de programa de bônus (o caso de Nova Iorque) já demonstrou que o bônus não foi um fator de motivação capaz de gerar mudança nas práticas dos professores e no desempenho dos estudantes, e que a maioria dos professores é motivada por fatores intrínsecos relacionados ao seu desenvolvimento profissional e à aprendizagem dos alunos.
Também já presenciamos no Brasil acalorados discursos em favor da publicização dos dados e exposição dos resultados do Ideb na porta das escolas, como estratégia de pressão para gerar constrangimentos aos “mal classificados” e proporcionar escolha aos estudantes vistos como clientes. Vale mencionar também que algumas instituições públicas aderiram ao contrato de trabalho,18 sob a crença de que o mecanismo de gerenciamento dos recursos humanos do setor privado é mais eficaz que o estatutário com estabilidade. Essa crença desconsidera as características peculiares do serviço público, que preveem uma relação própria com o dinheiro, o tempo e o poder (cf. Supiot, 1995), baseadas no compromisso do servidor com o atendimento ao público.
No Brasil, pressupostos semelhantes aos criticados por Diane Ravitch vêm conduzindo as mudanças em vários sistemas educacionais locais e têm influenciado as propostas de gestores públicos e a opinião da população, atraindo-os às promessas de uma solução rápida para os problemas da educação. A mídia permanece contribuindo incansavelmente para a construção do pensamento hegemônico de que a escola “privada é boa e a pública ruim”, deixando o terreno fértil para a introdução dessas mudanças que creditam à lógica privada a solução óbvia para a ineficácia da educação, apesar da ausência de evidências que comprovem o sucesso dessas políticas nos Estados Unidos.
Os defensores da escola pública devem estar cientes de que a disputa não se encerrará pela apresentação de dados desfavoráveis; mas aponta, sobretudo, para questões sobre que democracia queremos, sobre qual educação se espera construir e para qual tipo de sociedade. Por resgatar o percurso da educação americana, esse livro torna-se leitura indispensável para todos que pretendam compreender e discutir os atuais rumos das políticas educacionais brasileiras.
Notas
1. Modalidade de privatização que incentiva os pais a escolherem a escola de seu filho através de vouchers(ou cheque educação).
2. Na tradução brasileira, o tradutor Marcelo Duarte traduz charter schoolcomo “escola autônoma”. No entanto, optamos por utilizar “escolas administradas por concessão”, pois as escolas charter são escolas públicas operadas privadamente por concessão. São escolas públicas de gestão privada.
3. Naep – Avaliação Nacional do Progresso na Educação, feita pelo Departamento de Educação americano. Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos, feito pela OCDE.
4. Uma Nação em Risco.
5. A exemplo da Teach for America(TFA), uma organização que recruta universitários inexperientes, recém-formados em qualquer área, para lecionar por dois anos em escolas públicas que acolhem estudantes de baixa renda, após receberem um breve treinamento de cinco semanas.
6. O estudo de Marsh et. al. (2010) demonstrou que o programa de bônus de Nova Iorque não foi capaz de gerar mudanças significativas no desempenho dos alunos e nas práticas docentes.
7. No Child Left Behind.
8. O documentário acompanha a trajetória de cinco crianças ávidas por escaparem de suas escolas públicas e conquistarem uma vaga em escolas charter, administradas por concessão, mostradas no filme como excelentes. Vale notar que são crianças motivadas, de famílias pobres, porém estruturadas e que valorizam a escola e os estudos.
9. O documentário Race to nowhere(“Corrida para lugar nenhum”), lançado em 2010, faz uma referência irônica a esse programa, representando o lado das vozes contrárias à atual abordagem de reforma.
10. A exemplo da política de bônus para os profissionais da educação do estado de São Paulo, normatizada em 2009.
11. Cesgranrio, CNI, FGV-RJ, FGV-SP, Fundação Itaú Social, Fundação Santillana, Fundação SM, Fundação Victor Civita, IBGE, Ibmec-SP/Insper, Ibope, Inep, Instituto Paulo Montenegro e Instituto Unibanco são exemplos de organizações com as quais são feitas parcerias para realização de estudos e pesquisas, que visam trazer conhecimentos sobre a realidade educacional brasileira.
12. A exemplo da Teach for America(TFA), que chegou ao Brasil (ver matéria veiculada pelo jornal O Globoem 18/07/2010, disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/escolas-municipais-terao-reforco- de-trainees-2977626> (acesso em: 27 fev. 2012).
13. Como exemplo do vídeo do movimento “Todos pela Educação”, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=wVKQ8yMV-l4> (acesso em: 16 abr. 2012).
14. Supiot (1995) define o “espírito do serviço público” como um tipo próprio de moral profissional que inclui relações com o poder, o dinheiro e o tempo essencialmente diferentes das relações da lógica do setor privado. Reivindicações de salário baseadas em critérios de tempo e formação seriam compatíveis com a defesa do “espírito do serviço público”, pois são critérios que reafirmam valores inerentes à pessoa do servidor, e não o valor de mercado da prestação de serviço.
15. A exemplo da Prova São Paulo (municipal), Saresp (estadual) e Prova Brasil (federal).
16. Brooke (2011) sinaliza alguns estados como Pernambuco, São Paulo e Espírito Santo, nos quais o pagamento de bônus foi implementado.
17. A exemplo do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (vinculado à Secretaria de Tecnologia de São Paulo), que provê formação de nível técnico e superior, além de ensino médio.
18. A exemplo do Centro Paula Souza, que realiza contrato via CLT.
Referências
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RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Trad. de Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulina, 2011. [ Links ]
SUPIOT, A. A crise do espírito de serviço público. Adverso, Porto Alegre, v. 5, n. 7, p. 17-25, 1995. [ Links ]
Sites
PARCEIROS da Educação. Disponível em: <www.parceirosdaeducacao.org.br>
TODOS pela Educação. Disponível em: <www.todospelaeducacao.org.br>
Sara Badra de Oliveira – Mestranda do Laboratório de Observação e Estudos Descritivos (Loed), da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), E-mail: sarabadra@hotmail.com
Rita de Cássia Silva Godoi Menegão – Doutoranda do Loed, da Faculdade de Educação da Unicamp, E-mail: ritamenegao@gmail.com
Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio – SILVA (AN)
SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p. Resenha de: ELMIR, Cláudio Pereira. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 273-279, jul. 2011.
Em agosto de 2011, completaram-se 50 anos desde a renúncia de Jânio Quadros da presidência da República. Este ato fundador, se assim podemos designá-lo, foi responsável, em parte, por estarmos comemorando, na sequência, os 50 anos da campanha liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, pela garantia da investidura constitucional do vice-presidente João Goulart no cargo deixado vago por Quadros. A campanha, ou movimento, da legalidade é definitivamente um levante gaúcho; o último, talvez (para aqui parafrasear o subtítulo do livro de Joaquim Felizardo, publicado pela Editora da UFRGS, em 1988). Este entendimento pode levar a crer — não como corolário necessário – que o patriotismo dos sulrio- grandenses, notadamente o de suas lideranças políticas, forjou o sentido do cumprimento da lei naquela circunstância, chamando a atenção da nação brasileira para, agora sim, uma necessidade inescapável.
A “coragem quase provocativa” de Leonel Brizola fez um presidente (SILVA, 2011, p. 11).
O livro de Juremir Machado da Silva dá voz às tantas vozes que ressoam essa história desde o momento em que o evento se fez acontecimento, no já longínquo inverno do ano de 1961. O autor, “[…] historiador, doutor em sociologia, jornalista, tradutor, romancista, professor universitário, colunista do Correio do Povo e apresentador da Rádio Guaíba” (SILVA, 2011, segunda aba do livro), traz em sua narrativa a polifonia do acontecimento. Por vezes, contudo, as vozes sobrepõem-se, e ao leitor fica difícil bem discriminar a origem exata da vocalização. De resto, dificuldade que alcança, com frequência, aos historiadores mais experimentados. A estrutura da narrativa — em parte determinada pelo critério cronológico, em parte subjugada às ações de Leonel Brizola – desdobra-se conforme o sabor da evocação errática do autor, não seguindo, portanto, um roteiro expositivo anunciado ao leitor. Este navega sem norte, porém, sem grandes surpresas.
Escrito no calor das comemorações do cinquentenário – atendendo, quem sabe, a “[…] essa estranha obsessão dos homens por datas chamadas de redondas” (SILVA, 2011, p. 218) –, o livro cumpre o desígnio de se interpor, na babel da história, como mais uma voz a compor o emaranhado discursivo que acompanha as efemérides no trabalho de construção da memória.1 Os “feitos” e os “fatos” nele encontram guarida e se imiscuem caprichosamente na narrativa. Neste trabalho de trazer à tona a “muita história” que a cronologia estrita requer, não é difícil encontrar as petites histoires (por exemplo, p. 118, 150, 170 e 214) que não cabem em trabalhos convencionais produzidos por historiadores acadêmicos já faz algum tempo. Nas palavras do autor: “Jornalistas sempre adoram anedotas sobre fatos históricos e fatos históricos como anedotas” (SILVA, 2011, p. 119). Se estas pequenas histórias que se conta – e se as conta muito no livro – não puderem ser verificadas ou demonstradas suficientemente, isso não importa.
Afinal, “[…] as lendas são sempre mais rápidas do que a verdade e quase sempre mais interessantes” (SILVA, 2011, p. 169). O império da voz do povo, quem sabe, pode nos eximir de nossas responsabilidades profissionais com o tratamento ponderado das versões urdidas, eliminando, inclusive, a necessidade de citar discriminadamente, no corpo do texto, as 55 obras lidas e as 25 pessoas com as quais o autor teve a oportunidade de “[…] conversar sobre os episódios”, ao longo de “um ano de trabalho” (SILVA, 2011, p. 223).
A escolha pelo método heterodoxo de inquérito aos documentos (entrevistas, jornais, programas de rádio, textos de memória) e à bibliografia reverbera em uma narrativa de justaposição, na qual a diferenciação do lugar de origem das fontes e o escrutínio das mesmas pelo autor não são capazes de produzir um exercício interpretativo nos moldes daquele que é feito usualmente no âmbito da crítica historiográfica. Ao citar, por exemplo, as memórias produzidas pelo Marechal Machado Lopes no final dos anos 1970 (ver capítulo 21) (SILVA, 2011, p. 189-198), o autor chama a atenção para erros de grafia de um sobrenome cometidos pelo militar em seu livro (Morgen, no lugar de Moojen); (SILVA, 2011, p. 194), embora não os localize expressamente, e ao fato de que “O narrador altera ligeiramente os fatos”; “Inventa outros fatos”; “Colore o passado”; “[…] comete […] anacronismo”2 (SILVA, 2011, p. 197). Entretanto, a resenha do livro do marechal, condensado este no referido capítulo, não contrapõe diretamente aos equívocos da memória – se assim pudermos entender – os fatos (segundo estabelecidos pela historiografia) ou outras memórias, mais exatas quem sabe. Um segundo exemplo diz respeito a uma conversa havida entre o autor e o Coronel Emílio Neme. O fato de o octogenário membro da Brigada Militar não se lembrar, em certo ponto do diálogo, em que ano teria ocorrido a Legalidade (SILVA, 2011, p. 147), deveria, desde o ponto de vista de um historiador habituado ao trabalho com fontes orais, ter demandado o estabelecimento de relações complexas no ato da interpretação da fala. De outra sorte, o princípio da alusão reina sobre o princípio da demonstração (por exemplo, p. 51). E, com isso, ficamos, novamente, com a etérea conclusão circular dita e redita intermitentemente no decorrer da narrativa: “Conta-se que tudo sempre depende de quem conta” (SILVA, 2011, p. 173). Aliás, “conta-se” excessivamente no livro.
Entretanto, não há apenas uma única ocasião em que o autor sugere captar o sentimento íntimo dos agentes sociais. Quando menciona um dos discursos proferidos por Brizola dos porões do Palácio Piratini, Silva estabelece uma analogia entre o então inquilino daquela casa e o governador que liderou a Revolução de 1930: “Talvez sinta a presença espiritual de Vargas enquanto sobe o tom do seu discurso” (SILVA, 2011, p. 65). Da mesma forma, mais adiante, quando diz: “Brizola comporta-se como uma mistura de esfinge e oráculo. Às vezes, tem o olhar perdido. Outras [sic], ordena maquiavelicamente isto e aquilo […]” (SILVA, 2011, p. 89). As conjecturas acerca do que passa na cabeça do jovem governador nas diferentes circunstâncias daqueles dias de tensão entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart continuam alimentando a imaginação do autor: “Em que pensa?” (SILVA, 2011, p. 132). Depois de algumas alternativas levantadas, assevera finalmente: “É mais provável que não pense em coisa alguma grandiosa, que siga sua intuição, sem metafísica nem grande arte, apenas com a determinação de um guerreiro, disposto a ser, se necessário, o último homem” (SILVA, 2011, p. 133). Aqui, como em outras – várias — passagens, insinuase o Brizola candidato a herói.
Não obstante algumas simulações de ironia no correr do texto acerca da biografia de Leonel Brizola, de maneira geral percebe-se que o tom da narrativa direciona-se no caminho de manter uma certa imagem difusa do líder político no Rio Grande do Sul, segundo a qual Brizola encarna alguns dos valores positivos do povo gaúcho. “Se fosse encostado na parede [pelo General Machado Lopes], cuspiria fogo pelas ventas. Afinal, [Brizola] era um gaúcho. E os gaúchos gostam de ver-se como indomáveis” (SILVA, 2011, p. 83). Caráter forjado na dificuldade da vida, órfão prematuro, Brizola responderia, nas ações de sua trajetória pessoal – e, especialmente, política – a um destino anunciado desde sempre. O governador do Rio Grande do Sul, na hora difícil da campanha pela posse de Jango, traria consigo, e fundiria em si mesmo, a imagem do pai que ele, a rigor, nunca conheceu. “Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola […] pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder” (SILVA, 2011, p. 9-10). De fato não é fácil medir a distância que separa a retórica política das intenções mais íntimas de um homem. Mas é possível reconhecer nele, desde cedo, desde menino, “olhos cheios de determinação” (p. 16, 19 e 32). Nas palavras graves do autor:
[…] há homens que crescem na adversidade e fazem do risco a oportunidade de um salto para o futuro, homens como Leonel Brizola, saído dos confins do Rio Grande do Sul para escrever sua história em paralelo com a do Brasil, fundindo-se, por vezes, com ela, seguindo-a de perto, intuindo, quem sabe, que certas ações marcam para sempre uma vida e delas depende uma biografia (SILVA, 2011, p. 132).O começo e o fim. O fim no começo. O destino predestinado.
A ilusão biográfica? No livro Vozes da legalidade, é possível reconhecer a opção por uma dicção francamente regional. Esta escolha se faz perceber tanto pela abordagem empreendida quanto pelas referências documentais e bibliográficas que a sustentam. No primeiro caso, a ênfase na figura de Leonel Brizola – sem ser uma biografia propriamente – ofusca o estabelecimento de relações em âmbito nacional que são fundamentais para compreender o processo histórico do qual se quer tratar. No segundo caso, o autor sustenta seus argumentos em bibliografia flagrantemente desatualizada e pouco especializada. Por outro lado, dedica-se um capítulo à Maria Teresa Goulart, esposa de Jango, atribuindo a ela uma importância questionável, ao dizer: “Maria Teresa não tem currículo. Tem biografia. Falta-lhe um biógrafo” (SILVA, 2011, p. 206).
O texto expressa o propósito de ser uma espécie de “conversa com o leitor”. É como se tivéssemos, pelo livro, mais uma voz a contar a história. As marcas de oralidade nele presentes são muitas.
É quase uma memória. A decisão de contar a história é mais intensa, no meu juízo, que a articulação sistemática das razões que explicam a mesma. Consoante com esse esforço, os lugares-comuns proliferam (2011, p. 185) e a narrativa precipita-se em interjeições (2011, p. 212) e em longas frases, com dezenas de linhas sem ponto (por exemplo, o início do capítulo 20). Não se sabe ao certo se, nesse caso, faltou um cuidado maior no processo de editoração, ou se, na verdade, trata-se de “escolha estilística” do autor.
O primeiro e o último capítulo remetem-se mutuamente. Em ambos, a discussão sobre o nome assume a centralidade da narrativa; mais no capítulo inicial do que no derradeiro. Contudo, é na última folha do livro que a decifração se dá. Tanto a do nome que sua mãe quis para Brizola, “Itagiba”, quanto aos outros, os quais ele efetivamente carregou pela vida: Leonel de Moura Brizola. Diz o autor: “Conta-se que a palavra indígena Itagiba significa braço forte e duro como a mais dura das pedras. Conta-se que o nome Leonel vem do latim e quer dizer pequeno leão (SILVA, 2011, p. 218). Sobre o nome do meio, Moura, faz-se uma digressão mais longa, associando o mesmo a uma localidade de igual nome em Portugal vinculada aos mouros: “Conta-se que o portador desse sobrenome é dotado de muita energia, como dona Oniva [mãe de Brizola], e tem espírito aguerrido” (SILVA, 2011, p. 219). Por fim, resta a menção ao sobrenome que o tornou conhecido: “Conta-se que o nome Brizola, de origem italiana, significa grisalho e que quem o carrega já nasce maduro” (SILVA, 2011, p. 219). Na inscrição do nome, o caráter. No nome, o destino. Novamente, o princípio determinando o desfecho.
Para concluir, algumas palavras sobre o nome do livro: Vozes da legalidade. Política e imaginário na era do rádio. Embora o título e a ficha catalográfica elaborada pela editora possam fazer supor, o “rádio” não é um personagem (tampouco um objeto de investigação) importante da narrativa. O “imaginário” é um termo que não se sustenta como articulador da abordagem empreendida. Já a expressão “era do rádio”, não obstante o fundamental papel desempenhado por esse meio de comunicação ainda no início dos anos 1960 e, notadamente, no evento em questão, é um designativo que faz justiça, a bem da verdade, às décadas de 1940 e 1950.
Notas
1 Vale dizer que esta não é a primeira vez que o autor se dedica a escrever sobre temas relacionados a efemérides. No cinquentenário da morte de Getúlio Vargas, o autor publicou um livro (romance) sobre o político (SILVA, Juremir Machado da. Getúlio. Rio de Janeiro: Record, 2004) e, em 2010 – passados oitenta anos do levante que levou Vargas ao poder – Silva publicou, pela mesma editora carioca, um romance sobre a Revolução de 1930 (SILVA, Juremir Machado da. 1930. Águas da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2010). Note-se que, nestes dois casos citados, diferentemente do livro em exame, não se verifica uma opção editorial pelo gênero histórico ou historiográfico.
2 A tentação do cometimento de anacronismo parece rondar a todos quando tempos inconciliáveis se encarregam, segundo nossa particular vontade, de se fazerem unos: “Naquele agosto gelado de 1961, em Porto Alegre, ninguém podia imaginar que quase 30 anos depois haveria um Jânio sem o mesmo português, mas com a mesma megalomania moralista, o ‘caçador de marajás’, Fernando Collor, que com apoio das mesmas e outras elites, tentaria varrer a sujeira nacional, jogando-a para baixo do tapete, até ser enxotado por não ter tido, como Jânio, a sabedoria de cair fora” (SILVA, 2011, p. 53). Nas páginas 96 e 97, encontra-se, novamente, um comentário anacrônico, identificado pela narrativa como “nota de rodapé”, ainda que as referidas “digressões” ocupem lugar no corpo do texto, e não na parte inferior da página, como seria de se esperar de um texto acadêmico.
Referências
FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade. Último levante gaúcho. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.
LOPES, José Machado. O III exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.
SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p.
Cláudio Pereira Elmir – Professor do PPG-História da Unisinos. E-mail: elmir@unisinos.br.
Rio Grande em debate: Conservadorismo e mudança | Nelson Boeira
Resenhista
Jacqueline Ahlerdt
Referências desta Resenha
BOEIRA, Nelson (Org.). Rio Grande em debate: Conservadorismo e mudança. Porto Alegre: Sulina, 2008. Resenha de: AHLERDT, Jacqueline. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 8, n. 1, p. 247-253, jan./jun. 2008. Acesso apenas pelo link original [DR]
A transfiguração do político: a tribalização do mundo | Michel Maffesoli
Na obra A transfiguração do político: a tribalização do mundo, Michel Maffesoli se propõe a demonstrar que passou o tempo da política, a qual por não estar mais capacitada para enfrentar os desafios do momento, tornou-se objeto de desconfiança geral. A política perdeu a força de atração porque as pessoas não querem mais adiar o gozo, numa espera messiânica do paraíso celeste ou da ação urdida para um amanhã que canta, ou outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou mudadas. Somente o presente vivido aqui e agora com outros importa.
O autor nos diz que, ao longo da História humana, sempre existiu uma força imaterial, imaginal que deu sustentação ao político. Há sempre na origem de qualquer coletividade uma idéia fundadora: mito, história racional, fato legendário, pouco importa, tal idéia serve de substrato à dominação legítima do Estado. O político é uma instância, que, na sua acepção mais forte, determina a vida social, limita-a, constrange-a e permite-lhe existir. Se referindo à servidão voluntária, o autor afirma que existe uma curiosa pulsão que força a submissão a outro, a aceitar chefes, um efeito de estrutura ou lei natural inexorável que incita a dobrar a espinha e a aceitar de alguém ou alguns a lei: o bem, o verdadeiro, o desejável e o contrário disso tudo. Quando reina absoluto (o que nem sempre acontece), a coerção é a marca do político. Qualquer que seja o nome com o qual se condecora, o detentor do poder cristaliza a energia interna da comunidade, mobiliza a força imaginal que a constitui como tal e assegura o bom equilíbrio entre esta e o meio circundante, tanto social quanto natural. Portanto, todo poder, que tem sua origem legitimada por uma espécie de contrato, de consentimento, pode até mesmo impor a coerção, mas se trata aí, paradoxalmente, de coerção consentida. Para que a coerção política possa funcionar, deve-se aceitar a evidência de sua autoridade moral, deve-se, de certa maneira, ter fé nela. Ou seja, qualquer imposição repousa sobre uma forma de aceitação. Um regime político sobreviverá enquanto corresponder às aspirações da base. Leia Mais
Lazer, bênção ou maldição? – GAELZER (PH)
GAELZER, Lenea. Lazer, bênção ou maldição? Porto Alegre: Sulina, 1979. Resenha de: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Projeto História, São Paulo, v.5, 1986.
Denize Bernuzzi de Sant’Anna – Pós-graduação – História – PUC-SP.
Acesso apenas pelo link original
[IF]