Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, v.75, p. 279-283, 2019.

1 O tema da comunicação política, entre o reino e o Brasil, no interior do próprio reino e no Brasil, durante o Antigo Regime, tratado de forma quantitativa, é um projeto valioso pelas consequências que poderá ter na avaliação dos sistemas de decisão, taxonomia das tipologias peticionárias e processuais, assuntos de governo, atores políticos envolvidos e qualidade dos circuitos e das tramitações documentais. Sendo assim, os resultados dos programas de investigação que estão na origem do livro aqui recenseado ganhariam tanta mais relevância quanto maior fosse a evidência dos mesmos, a organização coerente dos temas, o desenvolvimento dos seus conteúdos e a metodologia de análise. Como veremos mais adiante, o critério seguido na sucessão dos capítulos e nas temáticas abordadas não acompanhou esta opção metodológica.

2 Na apresentação do livro, organizado por João Fragoso e Nuno Monteiro, somos levados a crer que o mesmo assenta no projeto financiado pela FCT “Comunicação Política na Monarquia Pluricontinental Portuguesa (1580-1808) : Reino, Atlântico e Brasil” (Projeto 1, P1), submetido em 2008. No entanto, aparece também a referência a um outro, do mesmo ano, de João Fragoso, Isabel dos Guimarães Sá e Nuno Monteiro, “A Monarquia e Seus Idiomas : Corte, Governos Ultramarinos, Negociantes, Régulos e Escravos no Mundo Português, Séculos XVI a XIX” (Projeto 2, P2), financiado por um convénio FCT/CAPES. Teria sido oportuno que se tivesse explicitado, com clareza, quais os registos documentais de cada projeto que suportaram os vários capítulos da obra como, também, o uso das confluências de informação e dos períodos temporais, justamente por terem enquadramentos diferentes.

3 No guião de recolha da informação do projeto P1, segundo o quadro 2, foram definidas 11 categorias de emissores (governo, justiça, igreja, municípios, irmandades e confrarias, militar, mecânicos, comércio, fazenda, particulares e outros) e, pelo quadro 3, ficamos a conhecer as tipologias de assuntos, enquanto a tabela 5 justifica a seleção dos períodos escolhidos por razões políticas e “operacionais”. As fontes utilizadas para o Brasil foram o espólio do Arquivo Histórico Ultramarino, a documentação microfilmada pelo Projeto Resgate e, para o reino e Açores, os livros de registo de alvarás, provisões e cartas à guarda dos respetivos arquivos municipais. A base de dados criada conta com 38.060 registos, sendo 11.347 para o reino (período 1621-1807, 187 anos), referentes às câmaras de Viana, Évora, Vila Viçosa, Faro e Ponta Delgada, e 26.713 para as capitanias de Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Grão-Pará, Maranhão, Minas Gerais, S. Paulo e o Reino de Angola durante o século XVII (1640-1656 e 1680-1690, 28 anos) e o século XVIII (1725/26, 1735/36,1755/56,1763/64 e 1785-95, 19 anos).

4 A tabela 8 expressa a grandeza dos dados das capitanias. Apesar dos erros evitáveis nas somas das colunas e de a tabela contemplar uma rubrica designada por “Demais anos” (quais ?), ficamos a saber que o ritmo médio da comunicação política global foi, no século XVII, de 12 documentos por mês e, no século XVIII, de 70 por mês, embora a população do Brasil tenha aumentado em quase 12 vezes. No encalce de mais dados compulsados em vários outros quadros, o certo é que não há uma conclusão geral ou conclusões parciais sobre o significado das tendências que se verificaram no plano burocrático. Evoluções que possam, inclusive, traduzir mudanças políticas e administrativas nos órgãos da administração central da coroa e, no Brasil, nos governos das capitanias, nos municípios e no governo central. Por outras palavras, as informações avançadas ganhariam muito se tivessem sido mais bem contextualizadas e comparadas.

5 A equipa de investigação do projeto P1 contou com 33 investigadores, 23 eram alunos de universidades brasileiras, três bolseiros da FCT e sete professores. A redação dos 12 capítulos foi da responsabilidade de oito destes investigadores, a que se juntaram outros oito que não fizeram parte da equipa. Temos, portanto, 25 investigadores que recolheram dados e 16 autores de textos, num total de 41 colaboradores. Das 467 páginas (12 capítulos e uma apresentação), 67 páginas (14 %) são de notas e bibliografia por cada capítulo, 64 tabelas, 67 gráficos e 3 quadros, a que correspondem cerca de 80 páginas (17 %). Se ficamos sem saber o nível de envolvimento dos investigadores da equipa do projeto P2, só esta revelação acentua a grandiosidade do programa de investigação em que o livro se fundamenta e, sem dúvida, a complexidade da sua coordenação, o que, em parte, pode explicar alguns dos reparos feitos à organização da obra. Também por tudo isto se justificava que a base de dados fosse disponibilizada online de forma a servir toda a comunidade de investigadores, no Brasil e em Portugal, à semelhança de outros programas financiados pela FCT.

6 Por várias razões, que adiante se verão, não é fácil descortinar uma justificação para alguns capítulos, tendo em conta que não acompanham o guião do projeto quanto às tipologias, os períodos cronológicos e a escolha dos emissores, e outros capítulos utilizam bases de dados diferentes, o que dificulta a perceção da coerência dos dados. Também parece que ficaram comprometidas algumas promessas, como a “matriz institucional da administração”, a “multiplicidade de atores e de mudanças ocorridas na comunicação”, o “estatuto político das câmaras municipais ultramarinas com as situadas no Reino e nas Ilhas”, as “variações no tempo e, sobretudo, apreender as diversidades geográficas e a mediação dos agentes […] produtores, os ritmos de produção, os canais de circulação, a tipologia dos assuntos, e, por fim, o destino final das solicitações feitas das periferias para o centro, e deste para as periferias”.

7 No que respeita às tipologias anunciadas na apresentação, apenas os capítulos 5, 6 e 7 tratam de algumas, como a fiscalidade, assuntos militares, economia e comércio. E o capítulo 1, que aborda um dos temas centrais do livro, a economia das mercês, utiliza dados do projeto P2 e não do projeto P1, o que deveria ser devidamente explicado. Os capítulos 2 e 4 aparentemente não decorrem do guião referente ao programa da investigação por abordarem, respetivamente, o tema da representação política e a difusão da legislação régia sem utilização dos dados do projeto e, por isso, surgirem como peças avulsas. A matriz institucional apresentada e trabalhada nos capítulos 3, 8, 9 e 10 aborda o Conselho Ultramarino, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, os governadores reinóis e ultramarinos, corregedores, ouvidores e senados municipais.

8 Sabe-se hoje, com razoável conhecimento, que esta rede institucional não reflete a complexidade da comunicação política nem elenca a singularidade brasileira. A esmagadora maioria das petições e/ou processos fazia o trânsito de pareceres e/ou consultas por vários tribunais e conselhos, entre os quais o Conselho Ultramarino era, sem dúvida, um dos polos, mas que foi sistematicamente desautorizado com os conflitos jurisdicionais com o Desembargo do Paço, que nunca perderia a jurisdição dos provimentos de lugares de letras (ouvidores, intendentes, provedores e juízes de fora), com o Conselho da Fazenda, que manteria a jurisdição sobre os assuntos da fazenda real, e com a Mesa da Consciência e Ordens, que tratava as questões relacionadas com a natureza dos índios, a legalidade do comércio dos escravos ou o problema da chamada “guerra justa” e tinha jurisdição sobre parte do clero. Tudo isto sem esquecer a indispensável intervenção dos procuradores da coroa com assento em cada tribunal e conselho. Será certamente pelo facto de a centralidade da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, a partir do pombalismo, estar evidenciada nos núcleos do ANTT e não no AHU que não terá sido dado o destaque quantitativo a esta mudança política.

9 Os governadores das capitanias e os governadores reinóis são dois cargos com funções muito distintas. Enquanto no reino se ocupavam de assuntos militares, no Brasil governavam. Sobre corregedores e ouvidores, que não comunicaram, obviamente, com o Conselho Ultramarino, só podem ser comparados com muita reserva. A existência de um ouvidor-geral na sede da capitania, e não de um ouvidor de comarca (exceção para Minas Gerais), conferia a estes magistrados uma abrangência territorial imensa, de onde que a diferença com os corregedores decorria, sobretudo, das escalas cartográficas, mobilidade das fronteiras e ambientes rústicos, com consequências na configuração das pluralidades e autonomias jurisdicionais. Sobre os municípios (capítulo 10), com uma abordagem temporal também diferente do projeto P1, sobressai a ideia de que as câmaras, quase todas de juízes ordinários, produziram uma média de quatro documentos por ano para comunicarem com a coroa. Nos dois últimos capítulos, um sobre Luanda, indica-se uma produção de um a sete requerimentos por ano, enquanto um outro capítulo reserva a atenção para as petições em grupo (moradores, nobreza, lavradores, confrarias, misericórdias e câmaras).

10 De notar, ainda, omissões importantes na matriz institucional apresentada, talvez por razões documentais. Não é invocada a modalidade inusitada de juízes ordinários sem câmaras (desde 1732), que a coroa aceitou como “provisional”, e a rede de juízes de vintena (ambos eletivos), como não são referidos os (super)intendentes que respondiam diretamente à corte e não obedeciam aos governadores nem aos ouvidores e, também, o expediente de governar através de juntas colegiais (à maneira das Cortes), provisórias e ocasionais (camarárias, de capitania, fazenda, comércio e justiça), embora tenha sido anotada a sua emergência no capítulo 2. Mas estas foram, sem dúvida, as grandes novidades político-institucionais ensaiadas na colónia que, pelas suas caraterísticas e idiossincrasias, deixaram poucos artefactos arquivísticos, embora possam influenciar a apreciação e a crítica aos dados recolhidos pelo(s) programa(s) de investigação.

11 Do ponto de vista historiográfico, o livro assume como estratégico evidenciar a existência de uma “monarquia pluricontinental” que se terá cimentado à custa da economia das mercês, das suas dependências e obediências, desenvolvendo uma centralidade no príncipe para satisfação de serviços e privilégios. No primeiro e maior capítulo sobre as mercês, a tabela 1.3 diz-nos que o ritmo das petições de mercês foi de 4,5 por mês e não ultrapassou 10 % do conjunto das tipologias (governo, fiscalidade, economia, escravidão, câmaras). Verificamos, também, ao longo das estatísticas produzidas que a comunicação política foi de baixa intensidade. Entre 1621 e 1808, no que aos municípios diz respeito (reino e Brasil), excluindo o governo da câmara, temos uma média de cerca de duas remessas por ano (ou quatro se incluirmos o governo das câmaras), enquanto as capitanias produziram perto de dez remessas por mês.

12 Sobre os provimentos de ofícios sabe-se hoje, relativamente bem, que encontraram imensas dificuldades para serem satisfeitos, pese o esforço na divulgação dos concursos, obrigando, portanto, à prorrogação dos mandatos. Este bloqueio levou os governadores das capitanias e os senados das câmaras a usarem, com grande autonomia e arbitrariedade, o mecanismo ilegal de atribuição de ofícios cujos encartes passaram, desta forma, a promover e a consolidar redes clientelares de favores, compensações e concessões de privilégios locais e regionais, fugindo à consagração simbólica do monarca. E esta desvalorização do exercício da graça cresceu, também, por causa do regime da venalidade. Desde o início do século XVIII que os ofícios a criar ou já criados, excluídos os da fazenda, podiam ser vendidos em leilão a quem oferecesse um “donativo” à coroa que justificasse o encarte (“direito antidoral e consuetudinário”). Esta singularidade não foi desenvolvida no livro nem foi explicada a sua ausência.

13 Talvez possamos dizer, em síntese, que, devido aos propósitos anunciados no(s) programa(s), ao enorme caudal de informação disponibilizada, embora com o desencontro de alguns dados, ao meritório e significativo problema historiográfico levantado, se justificaria uma conclusão geral mais desenvolvida com a retoma da tese da proeminência das mercês (economia da graça) como aglutinadora, por um lado, de uma monarquia pluricontinental e, por outro, como o cimento da comunicação política com a coroa. A demonstração desta tese não nos parece que esteja suficientemente evidenciada nos diversos textos da obra, alguns mesmo contraditórios com o propósito da mesma, nem tão-pouco está revelada nos dados quantitativos e nas análises qualitativas. Seria, obviamente, uma grande novidade historiográfica que mudaria diversas perspetivas políticas sobre o império e, por isso mesmo, pedia e merecia uma abordagem eminentemente estruturante.

José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa. E-mail: josemsubtil@gmail.com.

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Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012) – ALMEIDA; SILVEIRA. (LH)

ALMEIDA, Pedro Tavares de; SILVEIRA, Paulo Sousa (Coord.). Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012). Lisboa: INCM e Ministério da Administração Interna, 2015. 574 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, n. 70, 2017.

1 Convém, desde já, chamar a atenção para um elemento que condiciona a apreciação desta obra e que diz respeito ao facto de se tratar de uma “encomenda”, ou seja, “um contrato de investigação celebrado entre a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e a FCSH da UNL, em finais de 2010”. Não é, portanto, um trabalho que resulte de uma iniciativa científica, integrada ou não num centro de investigação. Estas encomendas tornaram-se frequentes nos últimos anos, muitas vezes satisfeitas por “curiosos” ou indivíduos ligados às instituições estudadas e, de uma forma geral, de qualidade inferior. Neste aspeto, a presente obra é uma exceção, na medida em que é realizada por historiadores, obedece a requisitos de qualidade historiográfica e a SG do Ministério da Administração Interna aceitou a “plena liberdade intelectual na conceção da obra e na redação dos textos”, o que é de realçar e aplaudir.

2 A obra está dividida em quatro partes, sendo que uma quinta diz respeito à prosopografia das elites. Na introdução adota-se uma exposição diacrónica do ministério, mas não se elucida o leitor sobre a escolha temática dos capítulos. Também teria sido útil uma justificação do plano e das fontes. A primeira parte, correspondente a cerca de 19% do texto, trata do “aparelho e os agentes” num leque temporal repartido entre 1736 e 2011, sem que haja referência ao período entre 1807-1834, o que nos leva a colocar a questão se a obra não deveria ser limitada ao período entre 1834 e 1922, uma vez que aos anos de 1736 a 1834 (35% do período) correspondem, apenas, 3% do texto. A abordagem mais completa quanto à evolução orgânica e os recursos humanos é de Rui Branco (1852-2011), se bem que o texto de Joana Estorninho se refira a um curto período (1834-1851) onde, apesar de tudo, explica a construção do modelo ministerial. O texto de Nuno Monteiro, que cobre o reinado de D. João V, desde 1736, e termina com as invasões francesas, é um remake de ideias já conhecidas, que, para além da caraterização já bem conhecida do sistema político do Antigo Regime, dizem respeito àquilo que o autor considera, em termos de dinâmica reformista, a superioridade da “mutação silenciosa” do reinado de D. João V sobre o impacto “político e simbólico” do período pombalino, insistindo no argumento da importância da reforma das secretarias de estado de 1736. Trata-se de uma interpretação polémica, que é aqui retomada, sem vantagem para a definição das funções que iriam ser assumidas pelo Ministério do Reino no final do Antigo Regime.

3 A segunda parte (30% da obra), intitulada “administrar e coordenar”, tem a colaboração permanente de Paulo Silveira e Sousa, sozinho para o governo no Antigo Regime e para os governos civis e poderes locais (1834-1926), e acompanhado por Rita Almeida de Carvalho no capítulo sobre os governos civis, municípios e freguesias (1926-2011), e por Jorge Miguéis e Pedro Tavares de Almeida sobre a administração das eleições. A terceira parte (cerca de 37% do texto) é designada por “proteger e controlar” e cobre o tema das polícias entre 1736 e 2011, a cargo de Diego Cerezales e António Araújo. O primeiro texto é relacionado com a questão da segurança e o segundo com os serviços de informação, para terminar com uma análise sobre as mobilidades populacionais (1736-2011), de Victor Pereira. A quarta parte, “auxiliar e regular”, é a mais pequena (13% da obra) e tem a colaboração de Rita Garnel, com um curto texto sobre a saúde pública (1834-1958), e de Paulo Jorge Fernandes e Paulo Silveira e Sousa sobre bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária (1736-2011). Segue-se a parte mais inovadora com um capítulo, sem texto, sobre ministros e secretários de estado (1834-2012), de José Tavares Castilho, e outro sobre secretários-gerais (1835-2012) e directores-gerais (1859-2012), de Pedro Silveira, informação completada com um valioso anexo.

4 Uma ideia central que persegue a história do Ministério do Reino é a de que esta instituição, desde o início do século XVIII, constituiu uma reserva imensa de funções governativas que, à medida que foi crescendo a população e se foi estruturando o modelo ministerial de tipo “estadualista”, perderia muitas dessas funções para outros órgãos, e inclusive daria origem a novos ministérios. Temos assim que, no século XVIII, ao lado da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, existiram apenas outras duas secretarias de estado destinadas a assuntos “fora” do Reino (política externa, guerra e ultramar). O primeiro sinal de exautoração funcional foi dado no final do século com a criação de Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda. Seguiram-se outros, ao longo dos séculos XIX e XX, pelo que o atual Ministério da Administração Interna tem já pouco do que foi o “velho” Ministério do Reino. Justamente por isto, a explicação desta dinâmica deveria corresponder à primeira parte da obra, acompanhada por gráficos representativos e pela evocação dos organismos que foram herdando funções do Ministério do Reino. Embora na introdução se faça uma breve síntese desta evolução, sem dúvida que tal ficou por fazer, à parte a inovadora abordagem sobre os contingentes dos funcionários públicos e a sua comparação com os recursos humanos do Ministério do Reino.

5 Uma segunda ideia, estruturante para caraterizar uma instituição como o Ministério do Reino, tem a ver com o recenseamento das áreas de governo que fizeram parte da sua missão ao longo dos três séculos cobertos pela obra, algumas das quais se foram autonomizando com o seu esvaziamento político. O que ressalta deste estudo é que as áreas do Ministério da Administração Interna foram privilegiadas em relação às do Ministério do Reino, em que algumas nem sequer foram estudadas. Uma das mais significativas é, sem dúvida, a saúde pública. Esta área esteve, no Antigo Regime, a cargo do Provedor-mor da Saúde, Junta do Protomedicato, Junta da Saúde, Físico-mor, Cirurgião-mor e outros agentes tutelados pelo Ministério do Reino. Depois da revolução liberal, o Ministério do Reino enquadrou a ação do célebre Conselho de Saúde Pública, a rede distrital das estações e delegações de saúde, o Instituto Vacínico, o Lazareto, o Conselho Superior de Higiene e a sanidade marítima dos portos, além da gestão e do controlo financeiro e administrativo de muitos hospitais. Esta faceta está muito ausente do trabalho, descontando as 24 páginas de síntese a cargo de Rita Garnel (de 1834 a 1958), que incide nos órgãos centrais e retrata o que a legislação permite dizer, o que é, de facto, muito pouco para caraterizar esta imensa atividade do Ministério do Reino.

6 Uma outra área, igualmente fundamental, é a instrução pública. Antes da revolução liberal, o Ministério do Reino tutelou politicamente, durante o período josefino e mariano, a Junta da Providência Literária, a poderosa Junta da Diretoria Geral de Estudo e Escolas do Reino e a Real Mesa Censória para, no século XIX, coordenar o Conselho Geral de Instrução Pública e toda a rede de escolas de instrução primária e secundária por cada distrito, intervir no ensino superior (Universidade de Coimbra, Academia Politécnica do Porto, Escolas Médico-Cirúrgicas do Funchal, de Lisboa e do Porto e Escola Politécnica do Porto). Também aqui não há nenhuma aproximação a esta área de governo da qual viria, aliás, a surgir o Ministério dos Negócios da Instrução Pública (1870) retomado em finais do século (Ministério da Instrução Pública e Belas Artes, 1890-1892). Nada é dito sobre esta função charneira assumida pelo Ministério do Reino até praticamente à República.

7 Uma terceira área esquecida está relacionada com a assistência social, uma matéria política que sempre serviu para aferir a dimensão da clivagem entre conservadorismo e inovação. Antes do liberalismo, o Ministério do Reino esteve implicado na gestão da rede das misericórdias, confrarias, hospitais e casas pias e, depois, na Monarquia constitucional, com o Conselho Geral de Beneficência, Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, colégios, recolhimentos, asilos e misericórdias. O mesmo se passa, também, com a supervisão das obras públicas, trabalhos geodésicos, cadastrais e topográficos, oficinas de conservação e restauro de monumentos históricos, bem como o planeamento e construção de estradas. Ou, ainda, com diversas superintendências como, entre outras, sobre o Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Pública de Évora, Imprensa Nacional, Academia Real das Ciências, Academia de Belas Artes, bibliotecas, museus, arquivos e o apoio ao Conselho de Estado e ao Supremo Tribunal Administrativo.

8 De facto, as áreas emblemáticas do Ministério do Reino estudadas foram a segurança e o controlo periférico. A primeira sempre fez parte da matriz do Ministério do Reino (no Antigo Regime com a Intendência Geral da Polícia, Guarda Real e, no liberalismo, com a GNR, PSP e polícias de informação). Já o controlo à periferia foi diferente, uma vez que durante o Antigo Regime esteve a cargo do Desembargo do Paço e, depois de 1820, seria assumido pelo Ministério do Reino em articulação com os governos civis. Sem dúvida, um dos temas mais desenvolvidos, a par da administração dos processos eleitorais. Por outro lado, talvez a escolha do controlo das mobilidades populacionais e a emigração (1736-2011), os bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária pudessem ter uma análise diferenciada para o Ministério do Reino e o Ministério da Administração Interna num período tão longo.

9 Finalmente, uma observação metodológica e epistemológica. A abordagem historiográfica a uma instituição político-administrativa não pode prescindir do seu acervo arquivístico porque representa o “espelho” das funções, competências, perfil organizacional, tramitação documental, práticas burocráticas, sistema de informação/decisão e os canais de comunicação política e administrativa. O núcleo do Ministério do Reino à guarda da Torre do Tombo é um repositório monumental que permite, graças à qualidade das intervenções arquivísticas, uma consulta sistemática que devia ter sido feita (nem que fosse por amostragem) para revelar detalhes da “maquinaria” institucional deste ministério. À parte uma ou outra meritória evidência na utilização deste recurso, o certo é que a investigação se serviu, fundamentalmente, de bibliografia, coleções de legislação e orçamentos. Uma aproximação à história custodial teria sido útil, visto tratar-se de uma instituição de onde se autonomizaram outros órgãos da administração central. Uma nota, ainda, para a conceção gráfica, que cria dificuldades na leitura e gera confusão na consulta.

10 Apesar das lacunas e insuficiências apontadas, trata-se de uma obra útil para se compreender o processo de construção política e administrativa do Estado liberal e o alvor da democracia. O leitor comum ganhará uma visão geral da governação e o estudioso da história institucional colherá detalhes e estatísticas de grande relevância.

José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa

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