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Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots / James Scott
Infelizmente, a obra de James C. Scott ainda é pouco conhecida entre os historiadores brasileiros. Seus trabalhos nem sequer foram traduzidos, o que demonstra o parco interesse editorial. No entanto, as temáticas levantadas em seus estudos convergem intimamente com os interesses de pesquisa desenvolvidos no Brasil, especialmente nos programas de pós-graduação em História.
Pesquisas sobre resistência dos trabalhadores de variadas origens e condições, assim como sobre movimentos sociais, consistem em uma importante vertente atual dos interesses teóricos e políticos dos historiadores. Pode-se afirmar que esta tendência afirma-se particularmente entre os historiadores acadêmicos, que, em suas teses e dissertações, buscam reatar o fio perdido das lutas sociais obscurecidas pela propaganda neoliberal pós-Guerra Fria. De fato, os programas de pós-graduação e muitos cursos de graduação em História aglutinam cada vez mais seus focos de interesse temático dentro de uma linha teórica/metodológica que se convencionou chamar de História Social. Muito embora a advertência de que a história é inteiramente social por definição não tenha sido esquecida, há uma certa ênfase nessa especificação “social” que reafirma o lugar da política no interior dos estudos históricos, ao mesmo tempo em que amplia este conceito de modo a permitir análises que extrapolam a tradicional referência ao Estado como relação primordial ou central que configurava os estudos de História Política.
No caso da história “vista de baixo”, a vida dos trabalhadores fora dos sindicatos, partidos e organizações passa a ser um importante tema de pesquisa que amplia as possibilidades de entendimento de dimensões mais obscuras ou imperceptíveis das relações de poder. A procura sistemática das formas e lugares da “resistência” passou a dominar as preocupações dos historiadores, mesmo que uma série de divergências – de natureza teórica ou política – ainda permaneça.
Nessa perspectiva, os trabalhos de James C. Scott podem acrescentar uma rica reflexão a este debate contemporâneo. Os dois livros aqui sumariamente resenhados representam um esforço do autor em precisar empiricamente este debate e dar uma nitidez teórica ao conceito de “práticas de resistência cotidiana”. Esta noção foi inicialmente discutida no livro W eapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance (1985), que é o resultado de um trabalho de dois anos de observação participante em uma pequena vila rural da planície de Muda, no estado de Sedaka, no nordeste da Malásia. Esta aldeia se dedicava tradicionalmente à agricultura do arroz, e as mudanças trazidas pela revolução verde aumentavam a desigualdade entre pobres e ricos, especialmente com a utilização de novas máquinas e técnicas agrícolas. A atenção de Scott se centrou mais nas tensões e lutas não visíveis dentro da estrutura social local do que em conflitos de massa contra o governo, dedicando-se a analisar formas de resistência cotidiana, individual ou coletiva.
As práticas de resistência cotidiana, para ele, se constituem na “luta prosaica mas constante entre o campesinato e aqueles que buscam extrair trabalho, comida, impostos, rendas e juros dos camponeses” (p. 32-33). A prática do “corpo mole”, a dissimulação, a condescendência, o furto, a simulação, a fuga, a fantasia, a difamação, a maledicência, o incêndio culposo, são atitudes encontradas pelo autor que apontam para uma compreensão interiorizada e sutil da exploração e do antagonismo. Para ele, estas “formas brechtianas de luta de classes têm certos traços em comum”: mesmo requerendo “pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento”, são mecanismos de “auto-ajuda individual” que “geralmente evitam qualquer confrontação simbólica direta com as autoridades ou com as normas da elite”. Assim, como os caminhos da resistência cotidiana não estão somente impressos nas lutas abertas e institucionais contra os dominantes, é preciso ver “o que os camponeses fazem entre revoltas para defender seus interesses da melhor forma possível” (p. 29).
Assim, tanto as práticas cotidianas quanto os movimentos sociais institucionalizados são considerados por Scott como formas de resistência. Desta forma, ele discorda da separação entre “resistência real” e “resistência incidental”, o que implica em um importante discussão metodológica.
Resistência real, se argumenta, é (a) organizada, sistemática e cooperativa, (b) guiada por princípios e não egoísta, (c) tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) incorpora idéias ou intenções que negam as bases da dominação em si mesmas. Atividades incidentais ou epifenomênicas, por contraste, são (a) desorganizadas, não sistemáticas, e individuais, (b) oportunistas e de auto-satisfação, (c) não tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) implicam, na sua intenção ou significado, em uma acomodação com o sistema de dominação (p. 292).
O autor entende, portanto, que esta diferenciação, mesmo que seja útil para fins de classificação das formas de resistência, não consegue captar as práticas cotidianas como instrumentos populares de manifestação de um sentimento de injustiça e de luta contra a opressão social. Se as práticas cotidianas não apontam caminhos revolucionários ou, às vezes, até reafirmam a ordem social, continuam, apesar de tudo, sendo mecanismos encontrados para driblar ou sublimar a opressão e/ou a exploração de classe, constituindo-se, portanto, em importante janela para a compreensão das lutas sociais e das condições de vida dos setores populares subalternos. No entanto, dado o caráter fragmentado e difuso destas práticas, a questão que se coloca é como identificá-las e que metodologia utilizar para estudá-las.
Em trabalho posterior, Domination and the Arts of Resistance (1990), a preocupação de Scott é desenvolver uma abordagem teórica para compreender as relações de dominação a partir das interações sociais cotidianas. Nesse trabalho, o autor trata não só de camponeses, mas também de outros grupos ou classes, tais como escravos, servos, etnias e povos colonizados.
As interações sociais são analisadas como teatralização, em que os indivíduos se utilizam de diversas “máscaras” para situarem-se nas relações de poder. Há uma nítida aproximação, aqui, com os trabalhos do historiador inglês E. P. Thompson, que examina as práticas de um teatro dos dominantes em confronto com um contra-teatro dos dominados, os quais, através de discursos de submissão e deferência, manifestam contraditoriamente insatisfações, ressentimentos, revoltas ou descontentamentos. As práticas de representação, confirmadas pela detalhada pesquisa empírica de Scott, indicam a constituição de um jogo de papéis e lugares em que as normas ou regras elaboradas pelos dominantes ganham significados diferentes, e às vezes contrastantes, quando colocadas em ação pelos grupos populares. Mais uma vez, a distinção entre “resistência ativa” e “resistência passiva”, como definidores de um campo da política e outro do conformismo, perde consistência teórica e prática. Neste livro de 1990, o autor desenvolve de forma mais ampla a noção de “práticas cotidianas de resistência”, procurando entendê-las na confluência entre “transcrito público” (public transcript) e “transcrito invisível” (hidden transcript).
No “transcrito público”, ambas as partes tendem a orientar suas atitudes por estratégias de respeito, dissimulação e vigilância. A análise destas atitudes pode ser um caminho metodológico importante para compreender os padrões culturais de dominação e subordinação. Esta perspectiva se assenta numa crítica à visão de que os grupos e/ou indivíduos dominantes conseguem efetivamente manter o controle total sobre os grupos dominados e sobre as práticas determinadas pelas normas que regem o espaço público, assim como suas decorrências. Os subordinados, mesmo que estejam em conflito aberto com o dominante, procuram agir com deferência e consentimento, garantindo assim um campo perceptível e seguro de negociação. Trata-se de um “gerenciamento de aparência” em situações de hierarquia de poder, quando o subordinado tenta interpretar a expectativa do dominante.
A dominação precisa ser reafirmada socialmente através de um trabalho político sistemático, representado no “transcrito público”. As principais formas deste transcrito são afirmações, eufemismos e unanimidades. Afirmações ocorrem através de pequenas cerimônias, chamadas por Scott de “etiqueta”, que constituem uma espécie de “gramática da interação social” (p. 47).
Eufemismos têm como objetivo mascarar os fatos cruéis e violentos da dominação e dá-los um aspecto inofensivo ou simpático, neutralizando-os enquanto possibilidades de fraturas do tecido social – como exemplo, o autor cita o uso da palavra “pacificação” para a ocupação e o ataque armado. Unanimidades são mecanismos utilizados pelos dominantes não para ganhar a concordância dos subordinados, mas para intimidá-los de modo a garantir um relacionamento durável de submissão.
As expressões do “transcrito público” são fundamentais para a análise das relações de poder e, segundo Scott, a única forma de alcançar estas manifestações é “conversar” com o ator (ou com as evidências deixadas no registro das fontes históricas) “fora do palco”, ou seja, distante do contexto hierárquico de poder, onde as regras do teatro da dominação tendem a prevalecer. Este espaço “seguro”, “livre”, é chamado de “transcrito invisível”, que “consiste de falas, gestos e práticas que confirmam, contradizem ou enfatizam o que aparece no transcrito público”. Scott esclarece que não se trata de uma oposição entre espaço da necessidade e da liberdade, ou contexto do falso e do verdadeiro, mas atos teatrais para audiências diferentes (p. 5).
O interesse de Scott vai particularmente para situações de dominação, que, embora institucionalizadas através da ideologia, do ritual e da etiqueta, são permeadas por relações pessoais, como é o caso das relações entre servo e senhor, do sistema de castas e das relações sociais do campesinato. Entretanto, os grupos que se orientam por relações pessoais – tradicionais – têm também uma existência social “fora do palco”, o que lhes permite desenvolver uma renitente crítica ao poder. Há, aqui, um interesse particular para os estudos sobre situações vinculadas ao sertão cearense, com suas relações intensamente marcadas pelo paternalismo, pelo coronelismo e pelo compadrio.
Assim, as pesquisas de Scott se dirigem para os temas da resistência, das estratégias, da representação, da ação como atos que obedecem a determinadas regras de comportamento mas que permitem uma ressignificação em função de contextos de desigualdade e confronto. As “práticas de resistência cotidiana” constituem, para os populares de maneira geral, um território de negociação (público), em que as regras de atuação são definidas pelos dominantes, e um território de liberdade relativa (oculto), onde as expressões de crítica podem circular mais livremente, constituindo assim um “vocabulário da exploração”.
A identificação desses territórios pelo pesquisador é fundamental, pois as expressões de revolta e/ou de conformismo só adquirem significado efetivo no interior desses contextos de enunciação, configurando um gerenciamento criativo e persistente das condições da exploração e da dominação social. Mais uma vez, a ampliação do conceito de política é condição fundamental para o entendimento das ações populares de resistência à dominação de classe.
Os rumores, a dissimulação, o ressentimento, os eufemismos, o “corpo mole”, são formas possíveis de resistência em contextos de dominação e de controle cultural. Possuem, portanto, um sentido político de antagonismo de classe que o foco exclusivamente centrado nas instituições formais dos trabalhadores não permitia ver.
A riqueza das análises de James C. Scott já está a merecer uma boa tradução para o português, para que a comunidade de historiadores, interessada nas formas de resistência popular à dominação social, possa se beneficiar desse amplo, complexo e comprometido arsenal de combate ao conformismo teórico e ao determinismo econômico.
Frederico de Castro Neves – Universidade Federal do Ceará.
Marilda Aparecida de Meneses – Universidade Federal da Paraíba.
SCOTT, James C. Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. New Haven: Yale University Press, 1985; Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots. New Haven: Yale University Press, 1990. Resenha de: NEVES, Frederico de Castro; MENESES, Marilda Aparecida. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].