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Science in the Spanish and Portuguese Empires: 1500-1800 – BLEICHMAR et. al. (HH)
BLEICHMAR, Daniela et alii (ed.). Science in the Spanish and Portuguese Empires: 1500-1800. Stanford: Stanford University Press, 2009, 456 pp. Resenha de: KANTOR, Iris. A ciência nos impérios português e espanhol. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.294-298 março 2010.
O recém publicado Science in the Spanish and Portuguese Empires – 1500- 1800, reúne quinze artigos e dois ensaios que fazem a síntese dos principais argumentos desenvolvidos na coletânea. Direcionada ao público universitário anglo-americano, o livro procura redimensionar o peso do legado ibérico na construção do mundo moderno. A coletânea valoriza os modos de fazer, comunicar e teorizar das ciências praticadas no âmbito dos impérios português e espanhol. Seus organizadores denunciam a persistência de visões reducionistas e depreciativas associadas à cultura científica ibérica que, segundo eles, ainda persistem nas grandes narrativas historiográficas sobre a formação do campo científico moderno.
O silêncio não é recente, mas contemporâneo às campanhas de detração promovidas pelos impérios rivais, veiculadas pela difusão da legenda negra e pelas controvérsias sobre a inferioridade natural e humana do Novo Mundo ao longo dos séculos XVII e XVIII. Por outro lado, essas imagens negativas do colonialismo ibérico também foram apropriadas pela historiografia decadentista (tanto na vertente liberal como marxista) que, por sua vez, atribuiu à censura inquisitorial, ao catolicismo e aos jesuítas, as principais obstruções ao desenvolvimento do pensamento científico nos países e regiões de colonização ibérica.
Os estudos reunidos nessa coletânea procuram superar definitivamente a dicotomia entre prática científica e cultura católica, demonstrando que o enquadramento teológico político do mundo natural – sensibilidade científica barroca que conjuga a intervenção divina com o experimentalismo – não teria constituído um impedimento para formulação de modelos explicativos com validade universal.
Um dos principais méritos da interpretação proposta é restituir o protagonismo ibérico. Presença percebida não apenas como contribuição pontual à história da ciência moderna, mas como parte de processos históricos mais amplos em que se procura reconstruir os contextos sociais de legitimação dos “sistemas científicos”. Não se trata de avaliar os fracassos ou os eventuais sucessos dos empreendimentos em si mesmos, mas, sim, de compreender os impactos globais e locais resultantes da acumulação (ou dispersão) de conhecimento adquirido na experiência de gestão de impérios de dimensão transcontinental.
Essa perspectiva desloca o foco de análise para a mobilidade geográfica dos diferentes atores (individuais e coletivos) implicados no processo de transmissão dos saberes para além das fronteiras políticas, religiosas, sociais e lingüísticas. Esse novo ângulo de observação permite estabelecer um quadro interpretativo distinto das abordagens historiográficas precedentes, geralmente, marcadas pelas visões decadentistas ou por reações apologéticas. Os autores dessa coletânea não caíram na armadilha de transformar as descobertas marítimas em pedra de toque do nacionalismo científico. Um anacronismo sempre difícil de contornar tendo em vista o papel ativo da Coroas na criação de instituições especializadas e na formação de corpos profissionais.
A compreensão da imbricação (não sem tensões e conflitos) entre os desígnios imperiais e a produção científica apresenta-se como um desafio teórico que contraria os modelos de análise weberiano ou habermasiano. Com efeito, os artigos evidenciam uma realidade matizada, um contexto de experiências constituído por uma diversidade de espaços institucionais e informais (conselhos, corte, salões cortesãos, universidades, academias, seminários missionários, jardins botânicos, bibliotecas privadas, expedições e gabinetes itinerantes etc…), mas também por diferentes modalidades de interação social. A riqueza desses diferentes situações nos obriga a uma revisão dos modelos sociológicos clássicos. As teorias de Pierre Bourdieu são invocadas para explicar as condições de exercício das atividades científicas na Nova Espanha de maneira bastante convincente.
Da mesma maneira, os autores não desconsideram as restrições impostas à difusão das descobertas científicas por motivos geopolíticos: os segredo de Estado (arcana imperii). Contudo, destacam que, mais do que controlar o fluxo da informação científica, as coroas lograram impedir sua publicação, e, por conseqüência, sua difusão e reconhecimento oficial no âmbito da república das letras européia. Onésimo de Almeida e Kevin Sheehan, por exemplo, chamam atenção para importância dos relatos dos navegantes portugueses e espanhóis na obra Francis Bacon, muito embora o autor não tenha atribuído os devidos créditos às fontes utilizadas. Ao contrário dos impérios rivais, as Coroas Ibéricas nunca souberam explorar o potencial de propaganda dos experimentos bem sucedidos em seu próprio favor.
Seguindo a pista deixada por Alexander von Humboldt, o prefaciador da coletânea, Cañizares-Esguerra, alerta para a necessidade de investigar centenas ou milhares de manuscritos ainda inéditos depositados nos arquivos e bibliotecas para uma correta avaliação dos alcances e limites da cultura científica ibérica.
Palmira Costa e Henrique Leitão também enfatizam que o pesquisador deve percorrer as correspondências das autoridades metropolitanas e locais, os diários de viajantes e comerciantes, os relatórios de missionários e cronistas locais para captar a dimensão quotidiana dessas experiências.
Dividida em quatro unidades, a coletânea busca novas abordagens para o enquadramento da produção científica na escala intra-imperial e trans-imperial.
Na primeira parte, “Reassessing the Role of Iberia in Early Modern Science”, dois balanços bibliográficos traçam um panorama atualizado das investigações realizadas nas últimas duas décadas. Tanto no caso português, como no caso espanhol, os autores constatam as dificuldades de recepção por parte da historiografia estrangeira das contribuições mais recentes. Na segunda parte, “New Wold, New Sciences”, os autores exploram as tensões de natureza epistemológica suscitadas pelo confronto entre campo e gabinete, entre experiência prática e especulação teórica. Na terceira parte do livro, “Knowledge Production: Local Contexts, Global Empires”, abordam-se as relações entre ciência e a construção dos impérios de longa distância, e os estudos de caso atenuam a dicotomia entre centros e periferias ao enfatizarem o intenso intercâmbio de conhecimento e a multiplicidade de variáveis que interferiam na produção local.
Com efeito, a expansão comercial e o processo colonizador levaram à intensificação dos contatos com as populações nativas. Desígnios comerciais e políticos possibilitaram o aparecimento de uma camada social – tradutores ou mediadores culturais – fundamental na conversão entre os sistemas de conhecimento nativo e o europeu. A atuação desses “experts” comprovaria a enorme capacidade de apropriação da sócio e biodiversidade locais. Personagens híbridos – nem totalmente crioulos, nem completamente europeus – como o navegador português a serviço de Felipe III (Felipe II de Portugal) Pedro Fernandez de Quirós, o matemático e astrônomo Carlos de Singüenza y Góngorra, o naturalista e editor de periódicos Jose Antonio Alzate y Ramirez e o naturalista José Celestino Mutis. Todos eles atestam a coexistência e articulação de matrizes de pensamento, muitas vezes distintas, mas que estimularam a elaboração de outras linguagens e taxonomias científicas, mais recentemente denominadas de epistemologias patrióticas (cf. Cañizares-Esguerra).
A politização dessas epistemologias como reação às reformas ilustradas em fins do século XVIII não constitui um objeto de questionamento nesta coletânea. Nesse aspecto, os estudos distanciam-se das perspectivas historiográficas que buscam ver nas tensões entre cientistas peninsulares e crioulos uma fonte de inspiração para afirmação das identidades antimetropolitanas (cf. Antonello Gerbi, David Branding, Thomas Glick). Os organizadores deixam isso evidente quando propõem um recorte temporal que abarca o período de 1500 a 1800, sem comprometer-se com a cronologia do processo de emancipação política deflagrada a partir das invasões napoleônicas e após a revolução de Cadiz (1812). Fiona Clark, Daniela Bleichmar e Paula de Vos, pelo contrário, destacam a tendência para afirmação do patriotismo imperial que unia peninsulares e crioulos contra os preconceitos veiculados pelas teorias da inferioridade natural do Novo Mundo.
Na quarta e última parte da coletânea, “Commerce, Curiosities and the Circulation of Knowledge”, explora-se mais diretamente as interconexões entre motivações mercantis, ciência aplicada e curiosidade. Os estudos trazem à tona novos atores cujos experimentos empíricos e as vivências concretas estiveram na raiz das inovações tecnológicas, posteriormente incorporadas e difundidas por cientistas europeus de grande prestígio. Reconstitui-se a cadeia de transmissão dos conhecimentos úteis para o comércio e para os governo dos povos (sobretudo no campo da medicina, botânica, mineração, técnicas de navegação, astronomia e cartografia). Em mais de 300 anos de colonização, as coroas ibéricas teriam desenvolvido sistemas de coleta e processamento das informações, configurando uma rede não apenas institucional, mas também informal, mobilizada em escala planetária. Paradoxalmente, até mesmo as iniciativas das ordens missionárias (nos colégios jesuíticos, franciscanos e dominicanos) colaboraram para formação de uma cultura empírica, aberta ao experimentalismo e à concepção secular do mundo natural.
Entre os quinze estudos apresentados, quatro apenas dedicam-se ao império português e o restante ao espanhol. Somente um artigo (de Junia Ferreira Furtado) está dedicado ao mundo luso-americano. O desequilíbrio é notório, mas não compromete a perspectiva global de análise, pelo contrário, demonstra que ainda há um longo percurso de investigação a ser percorrido…
Sobretudo no que toca aos entrecruzamentos possíveis entre os dois impérios, conexões temáticas, cronológicas e biográficas poderiam aproximar ainda mais as experiências comuns em contraste com os demais impérios. A historiografia recente tem mostrado que o “comércio erudito” entre os luso-americanos e os hispano-americanos era mais intenso do que se pressupôs. A contradição entre cosmopolitismo e nacionalismo científico tornou-se cada vez mais aguda após a expansão napoleônica. Fazer ciência no mundo ibérico nunca foi um labor neutro, mas carregado de investimento político, econômico, filosófico e afetivo.
Science in the Spanish and Portuguese Empires abre uma agenda historiográfica indiscutivelmente fundamental.
Iris Kantor – Professora Adjunta Universidade de São Paulo (USP) ikantor@usp.br Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.