Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família” / Mauro L L Condé

Acaba de vir a público o livro com o título Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”, de Mauro Lúcio Leitão Condé, professor e pesquisador em Epistemologia, Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O livro é uma escolha de Mauro Condé de artigos e capítulos de livros publicados em coletâneas e periódicos brasileiros, em diferentes momentos de sua trajetória intelectual, entre os anos de 1993 e 2018. Seu propósito é corajoso e sua premissa, clara: usar o método wittgensteiniano das “semelhanças de família” (Familienänhlichkeiten) para compreender a ciência, a história, e filósofos como Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel.

A Apresentação explicita qual a intenção de Condé (p. 15) com o seu livro:

Sempre vi em Wittgenstein uma possibilidade de ler outros autores ou de lidar com diferentes problemas filosóficos. Assim, em certo sentido, tornei-me ‘usuário’ do pensamento de Wittgenstein, isto é, a partir do autor das Investigações Filosóficas, procurei explorar problemas filosóficos – não necessariamente os mesmos abordados por ele – ou contrapor sua filosofia à de outros pensadores com a finalidade de elucidar tais problemas. (…) O que apresento aqui é exatamente essa parte em que analisei autores e problemas explicitamente a partir da obra de Wittgenstein. Neste exercício de reunir esses textos não foi propriamente a minha intenção expor um ponto de convergência nas abordagens dos diferentes autores e problemas analisados, mas simplesmente ter a possibilidade de expor em um único trabalho estas várias ‘semelhanças de família’ – e também dessemelhanças – do pensador austríaco com esses filósofos e problemas filosóficos pouco visitados por exegetas da obra wittgensteiniana.

Também especifica um dos objetivos centrais de Condé (p. 16): o autor usa o método wittgensteiniano das “semelhanças de família” para constituir uma “teoria da ciência”, para pensar elementos de uma “teoria da história”, e para aproximar Wittgenstein de cinco importantes filósofos: Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel.

Na Apresentação encontramos ainda os pensadores e temas que sempre interessaram Condé ao longo de seus anos de pesquisas e como ele fez para mantê-los unidos numa obra coerente. A leitura que Condé nos convida a fazer de seus ensaios é contextual, que procura devolver os textos ao seu momento de produção, mas também interna, uma vez que persegue os conceitos inerentes ao objeto nos muitos “labirintos da linguagem”. Esse tipo de leitura nos mostra no fim o longo caminho de pesquisa que Condé percorreu para fazer aparecer o seu objeto, assim como as questões que colocou, os problemas teóricos que enfrentou, e tudo isso sem deixar de lado o rigor metodológico.

No Capítulo I, intitulado “Wittgenstein e a gramática da ciência”, Condé aborda a possível constituição de um novo “modelo de racionalidade científica” com o método das “semelhanças de família” explicitado pela filosofia da linguagem-epistemológica-social do segundo Wittgenstein. Ao reconduzir a racionalidade científica moderna à noção de gramática das Investigações Filosóficas, que encontra na dimensão filosófica da linguagem as formas de se desenvolver para além dos limites da gramática normativa de uma língua em especial, Condé (p. 27) propõe uma abordagem original da ciência contemporânea, baseada no que ele chama de “gramática da ciência” ou “conjunto das regras, das práticas e dos resultados científicos” e nas relações entre os conceitos wittgensteinianos de “uso”, “jogos de linguagem”, “semelhanças de família” e “regras”.

No Capítulo II, intitulado “A gramática da história: Wittgenstein, a pragmática da linguagem e o conhecimento histórico”, Condé (p. 34) faz uma interpretação da questão da temporalidade nas Investigações Filosóficas, com base no próprio método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, e sugere uma nova teoria da história no segundo Wittgenstein, cujo núcleo é o que ele conceitua como “‘gramática do tempo’ ou dos processos históricos, isto é, ‘gramática da história’”. Além disso, o conceito de “gramática da história” de Condé (p. 41) também pode servir para compreender a ciência da história, seu modus operandi, suas múltiplas interações sociais e culturais, portanto, “as possiblidades gramaticais do fenômeno histórico”.

No Capítulo III, intitulado “Ciência e linguagem: Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein”, Condé estabelece aproximações entre a epistemologia de Fleck e a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, frisando os elementos motivadores das uniões entre os dois pensadores em que toda a discussão do capítulo se baseia: aqueles do estilo de pensamento e da gramática. Condé (p. 53) analisa as convergências da dimensão filosófica da linguagem de Wittgenstein com a teoria da ciência de Fleck por meio do método wittgensteiniano das “semelhanças de família”: com ele, as uniões entre os dois pensadores são demonstradas e contrastadas com a “epistemologia do neopositivismo até então vigente”. É essa chave metodológica que Condé (p. 54) usa para tratar as correspondências entre os estilos de pensamento científicos em Fleck e a gramática da ciência em Wittgenstein, e também para delinear a concepção de realidade pertinente a ambos os pensadores, uma realidade que certamente não possui um “fundamento metafísico”, mas sim está “ancorada nas diferentes ‘situações’ com as quais nos deparamos”.

No Capítulo IV, intitulado “Léxico versus gramática na ciência: a virada linguística de Kuhn e o segundo Wittgenstein”, Condé mantém aberto o caminho para um estudo das similaridades entre o conceito de léxico de Kuhn e a noção de gramática do segundo Wittgenstein. Condé (p. 86) diz que “a virada linguística de Kuhn tenta resolver antigos problemas apresentados em sua teoria da ciência anterior, estabelecida em A Estrutura das Revoluções Científicas”. Diz também que, com a inflexão linguística de Kuhn, “o conceito de revolução científica deve agora ser visto não como uma ruptura radical, mas como uma mudança de linguagem” (p. 86). Segundo Condé (p. 86), essa mudança de linguagem é tanto conceitual como da realidade, é ela que possibilita o conceito de léxico, o qual serve para solucionar os problemas da incomensurabilidade da ciência e do mundo, isto é, “as dificuldades de linguagem de diferentes grupos ou entre teorias científicas do presente e do passado”. Condé desenvolve e prolonga essa perspectiva na primeira metade da discussão e concentra-se em mostrar as similaridades entre o conceito kuhniano de léxico e a noção wittgensteiniana de gramática contida nas Investigações Filosóficas na segunda metade do capítulo. Para Condé, ao formular sua teoria do léxico, Kuhn assimila conceitos da gramática de Wittgenstein, como “uso”, “jogos de linguagem”, “semelhanças de família” e “regras”. Com esses conceitos, Kuhn cria uma nova epistemologia da ciência, mais completa e aberta às diversas realidades. Nesse longo capítulo, Condé convence-nos do funcionamento do método wittgensteiniano das “semelhanças de família” para especificar, conhecer e aprofundar as similaridades entre os pensadores e os temas de que vêm tratando em seu livro.

No Capítulo V, intitulado “Koyré e Wittgenstein: o internalismo reconsiderado a partir de uma perspectiva pragmática”, Condé segue o fio condutor do livro e interpreta a concepção de história da ciência de Koyré com o método das “semelhanças de família” do segundo Wittgenstein. A análise da história da ciência koyreriana sob o ponto de vista da filosofia da linguagem wittgensteiniana permite que Condé identifique os pontos em comum entre os dois pensadores. Para Condé (p. 117), a identificação entre os dois pensadores se dá por meio do internalismo da história da ciência de Koyré, que estabelece a autonomia da ciência, e a pragmática e gramática da linguagem de Wittgenstein, que estabelece a ideia de autonomia da gramática. Aqui, a ideia nova e estimulante de Condé (p. 118) é a que diz respeito ao terceiro momento do capítulo, a qual culmina com a sua proposta de “reconsideração do internalismo de Koyré superando os seus aspectos negativos e o requalificando para que ele possa ser entendido como a afirmação da autonomia da ciência e não o isolamento entre ciência e sociedade”. A discussão de Condé(p. 142-143) provém sobretudo da compreensão de que “a ciência, mesmo sendo um produto social – portanto, sujeita às influências externas –, possui regras próprias de comportamento que lhe conferem autonomia em relação a esses mesmos fatores sociais”. É nesse sentido que Condé (p. 143) consegue estabelecer correspondências e parentescos entre Koyré e Wittgenstein:

se, por um lado, a partir de Wittgenstein podemos ter boas razões para ver a ciência como instituição, ou um tipo de gramática que emerge das práticas sociais, por outro, o internalismo de Koyré, pelo menos em parte, ainda parece atual na medida em que nos alerta para a necessidade de pensarmos a autonomia da ciência com relação a essas práticas sociais.

Condé (p. 143) considera que os pressupostos essencialistas da história da ciência de Koyré são os pressupostos gramaticais ou institucionais da ciência na filosofia da linguagem de Wittgenstein, e ele vê nisso a unidade fundamental das concepções de ciência dos dois pensadores.

No Capítulo VI, intitulado “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de família”, Condé passa à análise da obra de Nietzsche tentando encontrar filiações entre este filósofo e a filosofia da linguagem da segunda fase de Wittgenstein. Por meio do método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, Condé aborda uma temática difícil em Nietzsche, e em alguns momentos de sua obra oscilante, que é a questão da linguagem e a concepção de racionalidade que ela envolve. A filiação entre Nietzsche e Wittgenstein, dois pensadores de tradições filosóficas completamente diferentes, é vista por Condé (p.157) em dois pontos:

tanto Nietzsche quanto Wittgenstein não iniciaram suas carreiras diretamente na filosofia, mas foram conduzidos a filosofar, a partir de algumas questões colocadas por eles; (…) e o filosofar de ambos recusa o caminho da escrita acadêmica e das formas canônicas de pensar institucionalizado para um pensar que se expressa nos ‘aforismos’, nas ‘sátiras’ e nas ‘paródias’.

Além disso, Condé (p. 158) vê filiação entre os dois filósofos em suas tentativas de “destruição da metafísica”. Enfim, para Condé (p. 163), Nietzsche e Wittgenstein concebem a linguagem em uma perspectiva pragmática e moral e a usam para criticar a própria linguagem em sua acepção essencialista, e também a realidade em sua representação metafísica, o primeiro mais do que o segundo.

No Capítulo VII, intitulado “Maquiavel e Wittgenstein: a astúcia da linguagem”, Condé desenrola um parentesco entre a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein e a filosofia política de Maquiavel, pelo método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, que percebe claramente dimensões que escapam a simples esquemas analíticos da história da filosofia ocidental. Desse parentesco, Condé (p. 176) ressalta dois aspectos, o primeiro é que

Maquiavel constrói uma crítica à ideia de uma essência do político defendida, grosso modo, pela filosofia política clássica. Wittgenstein, por sua vez, critica radicalmente a ideia de uma essência da linguagem buscada pela filosofia da linguagem tradicional.

O segundo aspecto de que nos fala Condé (p. 176) é que

ao construir uma filosofia política sem essências, Maquiavel enfatizará a importância do discurso, isto é, a importância da linguagem na dimensão do político antecipando, assim, alguns aspectos dos desenvolvimentos posteriores da filosofia da linguagem ocorridos no século XX, sobretudo a partir de Wittgenstein.

Para Condé, portanto, essas duas “semelhanças de família” unem Wittgenstein e Maquiavel, além de certa atitude pragmática com relação à realidade. Condé entra nos mecanismos da obra O Príncipe, de Maquiavel, e examina, por meio da noção de gramática contida nas Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, as diferentes possibilidades do político. Condé constata que a filosofia política de Maquiavel não se restringe a mostrar os fatos, ela é uma discussão totalmente conceitual, a nível das representações do político, muito próxima então da filosofia da linguagem da segunda fase de Wittgenstein.

Aqui, acabamos de avaliar o livro Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”, de Mauro Condé. Sem dúvida, o método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, que o autor usa nos sete ensaios, abre uma perspectiva singular de interpretação das relações de Wittgenstein com a ciência, com a história, e com filósofos como Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel. O resultado satisfatório não depende só do método wittgensteiniano, mas também da maneira como Condé o emprega: a aproximação a que o autor submete esses diferentes pensadores o permite confrontar filosofias e conceitos e encontrar os vínculos que os enlaçam. O livro de Condé nos surpreende exatamente por isso. Mas a maior de todas as surpresas do livro foi encontrar, no capítulo sobre uma possível teoria da história em Wittgenstein, um modelo diferente de investigação do passado, que poderia responder muito bem às exigências das diferenças temporais que não conseguimos conformar juntas sem cometer anacronismos: um modelo fundamentado na multiplicidade dos tempos da história.

Entendemos que o livro de Condé pode ser lido como um texto que trata de método e ensina a usá-lo de forma criativa e como instrumento de análise crítica, procurando compreender como funcionam as dimensões da linguagem, os modelos teóricos da ciência, da história, e como se constituem as filosofias de diversos pensadores, suas visões de ciência e da realidade. Podemos dizer que o livro de Condé serve como uma utilíssima aula de método e seus usos na pesquisa filosófica e histórica. Nesse sentido, acreditamos que filósofos e historiadores deveriam apreciá-lo.

Raylane Marques Souza – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS-UnB). Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGHIS-UFMG, 2016). Graduada em História, na modalidade licenciatura, pela Universidade Federal do Ceará (UFC, 2013). Foi bolsista do PET – Programa de Educação Tutorial (2011-2013) e do CNPq (2014-2016). É bolsista Capes (2017- ). Tem experiência e interesse de pesquisa nas áreas de Teoria e Filosofia da História, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, História da Historiografia e História das Ideias e Intelectual, com destaque para os seguintes temas: Friedrich Nietzsche e seu contexto intelectual; história do conhecimento histórico; filosofia do conhecimento científico e da vida; teoria, história e filosofia dos conceitos; teorias e filosofias da história; história da historiografia alemã (sécs.19-20); epistemologias e temporalidades. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Ludwig Feuerbach (GPLF-UFC), do Grupo de Estudos Marxistas (GEM-UFC) e do Grupo de Leitura Hegel (GLH-UFC), todos cadastrados na plataforma do CNPq. Também é membro da SBTHH – Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (desde 2013).


CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”. 1. ed. – Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020, 194p. Resenha de: SOUZA, Raylane Marques. Sete usos do método Wittgensteiniano das “Semelhanças de Família” HH Magazine – Humanidades em Rede. 11 nov. 2020. Acessar publicação original [IF].

 

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica | José Carlos Reis

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, de José Carlos Reis, é uma reunião de artigos, resenhas, prefácios, aulas, conferências e entrevistas publicados por Reis em coletâneas e periódicos brasileiros ao longo de seu compromisso como professor e pesquisador no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançada pela Editora Autêntica, na seção História & Historiografia, em maio de 2019, justamente por ocasião de sua aposentadoria, a última obra de Reis pode ser definida como uma obra-memória de sua notável atuação acadêmica.

O sentido da obra-memória de Reis está na passagem entre dois modos de praticar história: partindo de um dado reflexivo e existencial, chega a fazer com que entendamos a história como conhecimento e necessidade quase vital. Um modo de pensar e de viver, podemos dizer assim. Como modo de pensar, isso significa que a história é teoria, é trabalho com os conceitos, é escolha de métodos e emprego de linguagens, para conseguir elaborar, mediante o exame das fontes, imagens que sejam representações do passado, representações do passado em vários níveis. Como modo de viver, isso implica buscar entre essas imagens da história, de representações do passado, de formas como esses passados se apresentam para nós, algo que nos ensine a viver. Em síntese: uma experiência. Experiência não diz respeito só a uma história prática, mas também teórica, como uma forma anterior de escolha das coordenadas fundamentais para nos ajudar na relação com o mundo. Mesclar esses dois modos de praticar história foi a tarefa a que José Carlos Reis se propôs em toda a sua vida profissional, como vemos nessa e em outras de suas obras, como História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade, verdade (FGV, 2003), História: a ciência dos homens no tempo (EDUEL, 2009), A história entre a filosofia e a ciência (Ática, 2006), História da consciência histórica ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur (Autêntica, 2011), pois comum a todas elas é a reflexão, o pensamento, enfim, o aprofundamento de questões sobre o passado. Leia Mais