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Ensinando História Antiga e Medieval no Brasil: Da inércia à potência | Brathair | 2021
“E não te esqueças de que a hora de partir chegou.
O vento levará para longe os teus olhos”.
Alexandre, o repórter (O Passo Suspenso da Cegonha).
Seis anos atrás, um grupo de professores de História Antiga e Medieval das regiões Norte e Nordeste do Brasil reunimo-nos e redigimos uma carta contra a ameaça de retirada dos conteúdos de História Antiga e Medieval do ensino escolar brasileiro, texto esse retomado na íntegra no epílogo da coletânea Antigas Leituras: Ensino de História (Recife: Edupe, 2020, organizada por mim mais os companheiros Guilherme Moerbeck e Renan Birro). Naquela carta, enfatizávamos a importância da presença curricular dos assuntos dessas temporalidades e denunciávamos a miopia de determinados segmentos que viam nesses estudos verdadeiros cavalos de Troia da história eurocentrada e colonizada que deveria ser extirpada (ou quando menos reduzida ao mínimo) das salas de aula em prol de outras narrativas, especialmente afro-ameríndias e contemporâneas. Mas por mais que discordemos dessa miopia, ela não surgiu do acaso. Leia Mais
História, gênero e sexualidade / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2011
O texto do historiógrafo romano Tito Lívio, Ab Urbe Condita, é conhecido por sua extensão e pelo detalhismo de sua narrativa, a qual descreve em minúcias as batalhas lutadas pelos fundadores da cidade de Roma e pelos seus cônsules.
No livro XXXIX, contudo, percebe-se uma mudança de tema. Não que os detalhes tenham diminuídos – eles estão lá, presentes, ajudando a compor o enredo de seu autor. Todavia, sem fugir à sua pretensão de narrar a história pátria, Lívio quase compôs um suspense que prende a atenção do seu leitor até seu desenlace final.
Tito Lívio escrevia sobre a década de 180 AEC, plena fase de expansão militar que levaria a dominação latina a circundar todo o Mediterrâneo, e nos introduz ao contexto daquela sociedade: decaída por causa da ostentação importada. “O luxo das nações estrangeiras penetrou em Roma na esteira do exército da Ásia: foi ele quem introduziu na cidade os leitos adornados de bronze, os tapetes preciosos, os véus e os tecidos delicados” [2]. Junto com os tapetes e tecidos finos, chegaram do Oriente bens imateriais, como novas religiões, uma das quais apresentou ao cônsul seu problema quando bateu em sua porta um rapaz chamado Públio Ebúcio, “filho de um cavaleiro romano, tendo perdido o pai e, em seguida, os tutores, fora educado pela mãe, Durônia, e pelo segundo marido desta, Tito Semprônio Rútilo (…) que desempenhara a tutela de modo a não poder de forma alguma prestar contas, procurava desfazer-se do pupilo ou mantê-lo sob sua dependência por meio de um laço suficientemente forte. A única forma de corrompê-lo seria iniciá-lo nas bacanais” [3].
Em conluio com o marido, a mãe do jovem Ebúcio pediu-lhe que se mantivesse casto por alguns dias, para que pudesse iniciá-lo nos cultos báquicos em resposta a uma promessa feita, levantando suspeitas numa outra personagem, Híspala, “uma cortesã famosa, liberta (…) muito acima do ofício que desempenhara quando escrava e no qual, após sua manumissão, persistira por necessidade” [4]. Esta ex-escrava, vizinha do jovem, era sua amante, teve um acesso histérico quando soube dos planos de Durônia e relatou o que vira, quando jovem, numa dessas cerimônias de iniciação: festins orgiásticos com toda sorte de obscenidades, inclusive o estupro de jovens rapazes, cujos gritos eram abafados pelos sons de instrumentos musicais.
Tivesse o jovem acedido ao desejo materno e participado de tais rituais, estaria desonrado para o resto da vida e não poderia livrar-se da influência do padrasto – não se concebia um cidadão romano que tivesse representado, já adulto, o papel passivo numa relação sexual.
Vários são os primas através dos quais o historiador pode abordar este trecho do Ab Urbe Condita – o econômico (a disputa pelos bens de um herdeiro endinheirado); o jurídico (os direitos de tutelagem, por exemplo, estabelecidos já na Lei das XII Tábuas); da política (o cônsul e seu papel na administração da cidade) ou da cultura (a inserção de práticas helenísticas no contexto romano). A todos estes, porém, podemos acrescentar pelo menos mais um: a história do corpo. Nas palavras de Peter Gay:
“O historiador profissional tem sido sempre um psicólogo (…) ele opera com uma teoria sobre a natureza humana; atribui motivos, estuda paixões, analisa irracionalidades e constrói o seu trabalho a partir da convicção tácita de que os seres humanos exibem algumas características estáveis e discerníveis, alguns modos predizíveis, ou pelo menos decifráveis, de lidar com as suas experiências. (…) No início da década de 40, Marc Bloch assinalou a obrigação do historiador de explorar o que chamou de ‘as necessidades secretas do coração’ dos homens” [5].
O corpo e suas interpretações sociais: eis o campo onde os estudos transdisciplinares vêm inserindo o conhecimento históricos nas últimas décadas. O corpo, “o ausente da linguagem, o local do desejo e da infelicidade (…) e os historiadores, renovando os votos de Michelet, partiram para a pesquisa da própria vida (…), a ‘carne e o sangue da história” [6]
O corpo, e como consequência as relações entre os seres humanos, foi desnaturalizado. Não é um dado inquestionável. É, antes, o local primeiro da escrita da história, pois as percepções de gênero são “desenvolvidas e alimentadas por diversos mecanismos do meio social” [7], e tais locais são, claramente, objeto do olhar historiográfico.
No exemplo liviano que dá início a esse texto, diversos locais de produção da história são inscritos no corpo dos seus personagens, “sede do desejo, ele fundamenta a expressão desse desejo. Toda palavra é desejo, toda palavra vem do corpo” [8]. A mãe que, apaixonada, permite-se agir contra o próprio filho em prol do companheiro; a amante que, mais uma vez movida pelo desejo, revela ao jovem Ebúcio os horrores do culto báquico (e o faz rompendo o voto de silêncio imposto a todos os participantes).
A honra de Ebúcio, e sua manutenção o permitiria assumir em breve a herança legada pelo pai, é o foco central dessa narrativa. Sim, o jovem mantinha relações com uma cortesã; todavia, ressalta Lívio: “a vizinhança ensejara relações (…) que não prejudicavam a reputação do jovem” [9]; o verdadeiro risco residia na perspectiva de representar o papel passivo numa relação homossexual: “terríveis bramidos, ruídos de instrumentos, sons de címbalos e tímpanos afogavam os gritos do pudor ultrajado (…) de início suportaria todas as infâmias e depois as exerceria contra outros” [10]. Tais situações requerem “respostas inovadoras” daquele que a elas se achega para produzir História, e neste sentido “não só o gênero é visto como uma construção cultural, mas também o sexo” [11]. Ou nas palavras de Olwen Hufton, “uma gender history que se interessa pelo processo de definição tanto do masculino como do feminino” [12].
O debate sobre diferentes papeis sociais é questão central, não apenas da academia, mas da sociedade como um todo, e o conhecimento histórico não poderia abster-se de tal debate. Para Jonathan Ned Katz [13], é tema essencial e bastante debatido nas relações humanas, enquanto Michel de Certeau [14], ao abordar o lugar da História e do historiador na sociedade, afirma que não se pode isolar os pensadores do espaço em que vivem; antes, eles devem imiscuir-se no meio social sentir as preocupações e opressões de seu tempo, e produzir trabalhos que representem a sociedade na qual estão inseridos, numa epistemologia da história comprometida com o contexto social que a gerou.
Notas
2. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri, vol. V, livro XXXIX, cap. 6. São Paulo: Paumape, 1990, , p. 284, 285.
3. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri, vol. V, livro XXXIX, cap. 9. São Paulo: Paumape, 1990, p. 287.
4. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri, vol. V, livro XXXIX, cap. 9. São Paulo: Paumape, 1990, p. 288.
5. GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 25, 26.
6. REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O Corpo. IN LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.141.
7. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 168.
8.REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O Corpo. IN LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.145.
9. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri, vol. V, livro XXXIX, cap. 10, p. 288. São Paulo: Paumape, 1990.
10. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri, vol. V, livro XXXIX, cap. 10, p. 289. São Paulo: Paumape, 1990.
11. SILVA, Andreia Cristina Lopes Frazão da. Aproximações historiográficas ao medievo: teorias, métodos e técnicas da História das mulheres e dos estudos de gênero. In ZIERER, Adriana; XIMENDES, Carlos Alberto. História Antiga e Medieval: cultura e ensino. São Luís: Editora UEMA, 2009, p. 99.
12. HUFTON, Olwen. Mulheres/Homens: uma questão subversiva. In BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: UFRJ, FGV, 1998, p. 247.
13. KATZ, Jonathan Ned. A invenção da heterossexualidade. Rio de Janeiro; Ediouro, 1996.
14. CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 17-48.
José Maria Gomes de Souza Neto – Professor de História Antiga de Universidade de Pernambuco.
SOUZA NETO, José Maria Gomes de. A honra de Ebúcio: história, gênero e sexualidade. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, v.4, n.2, p.6-10, 2011. Acessar publicação original [IF].
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