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Arqueologia e Paisagem / Revista Mosaico / 2020
Os estudos sobre a paisagem se constituem hoje em um dos campos mais prolíficos e vibrantes da Arqueologia. Sua origem remonta à década de 1920 (ANSCHUETZ et al., 2001, p. 157), época em que se consolidaram os principais métodos e técnicas da disciplina, muitos deles ainda hoje empregados. Na sua trajetória, surgiram abordagens clássicas que influenciaram gerações de arqueólogos, do estabelecimento dos estudos sobre padrões de assentamento (WILLEY, 1953) à sua consolidação por meio de abordagens processuais (BINFORD, 1980) e funcionalistas (CLARKE, 1977); das abordagens distribucionais (DUNNELL, 1992) ao estudo das paisagens vividas e simbólicas (TILLEY, 1994; THOMAS, 2001). Essa trajetória, muito diversa, é uma prova indiscutível da sua energia, bem como do seu grande fôlego teórico e metodológico.
É admirável o projeto de perseguir uma definição ou paradigma que dê conta de abordar a paisagem pela Arqueologia da paisagem (ANSCHUETZ et al., 2001; ASHMORE, 2004) ou pela Geoarqueologia (GOLDBERG; MACPHAIL, 2007). É, todavia, inegável, e para além desse projeto, que é justamente dessa diversidade, em certo sentido difusa, que emana a sua vitalidade. É dentro desse entendimento que o dossiê Arqueologia e Paisagem foi organizado. Sua proposta fundamenta-se na ideia de que é a partir dos seus variados percursos que se abrem possibilidades para novas ideias, percepções e diálogos. Tendo isso em mente, nosso objetivo foi reunir trabalhos envolvendo a paisagem por meio de abordagens arqueológicas, sem que tivéssemos um compromisso estrito com recortes regionais, temporais, teóricos ou metodológicos. Traz essa proposta a vontade de transpor fronteiras tradicionalmente estabelecidas e, com isso, nos fazer olhar para o lado. Nossa crença é que a partir desse tipo de experiência podemos encontrar outras maneiras de interpretar as interações das pessoas com a paisagem.
Dos textos aqui reunidos, e levando em conta essa proposta, emergem alguns pontos que merecem ser destacados. O primeiro, bastante evidente no conjunto, diz respeito à capacidade da Arqueologia da paisagem para operar, seguindo uma prática corrente na Arqueologia, em conjunto com uma enorme variedade de campos dsciplinares. Alinham-se neste dossiê discussões desenvolvidas na interface com a geociências, botânica, arquitetura, museografia, etnologia e conservação.
É igualmente relevante a diversidade em termos dos conceitos empregados, que neste volume são claramente multidirecionais. Em Paisajes geoculturales de la region Este de Uruguay, Caffa, por exemplo, emprega o conceito de ‘paisagem geocultural’, de modo a buscar manifestações do binômio cultura / ambiente na região de Laguna Merín, Uruguai, tendo como foco a evolução geomorfológica da ecozona que favoreceu a ocupação e mobilidade dos grupos humanos. Em Bitucas e a materialização do equívoco: Qurna e suas paisagens potenciais, Pellini utiliza o conceito de ‘paisagens múltiplas’, no sentido de voltar-se às percepções locais de paisagem e, com isso, reconhecer mundos e experiências outros e alternativos à cosmovisão ocidental. Em Caminhos que levam à Glória: Villa Aymoré – apontamentos arqueológico-paisagísticos de um sítio histórico, Macedo e Andrade utilizam uma matriz conceitual denominada ‘arqueologia histórico-paisagística, que é voltada à análise de espaços edificados e baseada na capacidade da paisagem para produzir sentidos. Ao lado do uso desses conceitos, identifica-se neste dossiê análises clássicas e contemporâneas sobre a paisagem, com discussões que incluem temas como economia, território, mobilidade, constituições simbólicas, memória, poder, entre outros.
Destaca-se entre essas análises a capacidade para revelar práticas, processos e formas de constituição social insuficientemente explorados até aqui ou envolvendo sujeitos antes invisibilizados. Esse, por exemplo, é o caso das discussões realizadas por Pellini, que expõe o afastamento forçado da população qurnawi, que vive em Qurna, Egito, com vistas a atender interesses turísticos associados ao passado faraônico. Em A floresta como esconderijo: arqueologia da paisagem na mata Atlântica do Rio de Janeiro, Oliveira, Patzlaff e Scheel-Ybert revelam algumas das práticas associadas aos carvoeiros, que integrando os extratos menos favorecidos da sociedade brasileira nos séculos 18 e 19, tiveram suas trajetórias invisibilizadas nas fontes documentais. Nesse caso, esses autores se valem da grande capacidade da Arqueologia da paisagem para pensar a constituição de experiências espaciais ligadas a segmentos ou classes sociais particulares no Mundo Moderno (MROZOWSKI et al., 1989; SHACKEL; PALUS, 2006; O’KEEFE, 2009).
Este dossiê abre-se também para a proposta de utilizar a Arqueologia da paisagem e a Geoarqueologia como um laboratório voltado ao desenvolvimento de abordagens regionais. Em A paisagem como elemento de análise: mesopotâmia dos rios Araguaia e Peixe, Goiás, Rubin e colaboradores apresentam alguns dos resultados de um projeto sobre as populações pré-coloniais do Brasil Central, examinando por meio de um ensaio teórico e de natureza exploratória, as alternativas interpretativas do estudo paisagístico dessa região. Considerando elementos advindos das fontes orais, arqueológicas, geoarqueológicas e etnográficas, buscam identificar percursos possíveis, com vistas ao desenvolvimento de novas interpretações dessa paisagem.
Um ponto de interesse em relação aos estudos da paisagem e que, no caso deste volume, merece ser destacado, diz respeito à possibilidade de construções no tempo longo, o que em última análise nos estimula a olhar com atenção as complexas relações estabelecidas entre pessoas, o espaço e o tempo. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho de Gonçalves, Abreu e Pereira intitulado Arrábida, território da espiritualidade: geologia, arqueologia e arte, no qual apresentam a longuíssima e impressionante trajetória do gênero Homo na Cordilheira da Arrábida, Portugal, e sua relação com essa paisagem ao longo do tempo. Em Aproximación geoarqueológica en los ciclos de poblamiento y abandono del Cauca medio colombiano, Echeverri estabelece uma correlação entre atividades vulcânicas, formação das paisagens, manejos de plantas e o povoamento inicial do médio curso do Rio Cauca, Colômbia, em um contexto em que eventos sísmicos também estão presentes.
Nas análises apresentadas neste dossiê, e ainda levando em conta a perspectiva do tempo, é relevante assinalar também as interpenetrações entre memória e paisagem, ou entre os elementos a eles relacionados. A paisagem pode inscrever processos de esquecimento e lembrança, pertencimento e negação, apropriação e controvérsia, aversão e afeto (DUNCAN; LEY, 1993; VAN DYKE; ALCOCK, 2003; JONES, 2007; KOHL et al., 2007). Isso implica diretamente a forma como se organiza, por intermédio da paisagem, o patrimônio material de uma dada sociedade, e interessa aqui notar que um dos fios condutores desses processos é o tempo. Pode-se perceber nas contribuições de Macedo e Andrade, bem como de Pellini, que a Arqueologia da paisagem não se apresenta apenas no sentido de revelar processos encobertos, mas também como uma ferramenta para a transformação, na medida em que é capaz de oferecer à sociedade elementos para novas formulações ligadas à memória. Em Museu, cultura material e gravura rupestre: a construção da paisagem no universo das coisas polidas, Marques, Veríssimo e Santos apresentam uma perspectiva também de interesse. Seu texto envolve o estudo de artefatos líticos pré-coloniais usados para polimento, encontrados na Serra Azul, Ceará, e que foram deslocados da paisagem, na medida em que alguns deles foram retirados do seu lugar de origem e expostos em um museu local. O estudo feito pelos autores, que é fundamentado em uma perspectiva simétrica, aponta para uma possibilidade interessante, na medida em que abre-se para a criação de uma narrativa que pode permitir inscrever lugares, artefatos e seus produtores em um mesmo regime de memória, sem perder de vista as suas trajetórias no tempo presente.
Associa-se ainda ao tempo as inúmeras relações entre as variantes que compõem um dado ambiente e a conservação de sítios arqueológicos. Em Paisagem, gravuras, problemas de conservação: um olhar sobre o sítio Poço da Bebidinha, Lage, Lage e Nascimento desenvolveram um estudo sobre a paisagem do Cânion do Rio Poti, situado entre o Ceará e o Piauí, e onde se localiza o sítio Poço da Bebidinha. A proposta dos autores na análise dessa paisagem foi entender os problemas de conservação que agem sobre esse tipo de sítio com o intuito de enfrentá-los.
Uma questão de ordem teórica ligada à relação cultura-natureza merece ainda ser contemplada, sobretudo em função da sua importância crescente na disciplina. Atualmente, dois desafios têm se apresentado aos estudiosos da paisagem na Arqueologia, sobretudo em algumas regiões das Américas. O primeiro desafio, que gradualmente vem sendo rompido, envolve o uso diferencial de paradigmas teóricos nas arqueologias histórica e pré-colonial, uma vez que, na primeira, têm predominado abordagens com uma orientação humanista, subjetivista e contextual, geralmente abrigadas no amplo guarda-chuva da arqueologia pós-processual, enquanto na segunda, têm predominado abordagens com uma orientação positivista, objetiva e cientifica. O segundo desafio, intimamente conectado a esse problema e cujas bases são claramente ontológicas, envolve, por um lado, uma preferência da Arqueologia histórica por análises envolvendo a denominada ‘paisagem social’, que geralmente está limitada ao ambiente edificado e onde quase que invariavelmente a cultura parece triunfar sobre a natureza. Por outro lado, na Arqueologia pré-colonial verifica-se uma predileção por análises voltadas ao que poderia ser denominado de ‘paisagem natural’ e que, muitas das vezes, dão aos elementos presentes no meio-ambiente um peso mais decisivo, na medida em que eles geralmente aparecem influenciando ou complicando certas práticas culturais ou sociais (SOUZA; COSTA, 2018).
A dicotomia cultura / natureza está não apenas presente na origem da Antropologia enquanto área do conhecimento, mas também no fulcro da constituição moderna (COLLINGWOOD, 1945; LATOUR, 1991). Seu enfrentamento na arqueologia passa, por exemplo, pelas escolhas que têm orientado os estudos sobre a paisagem nos termos acima expostos, o que, no nosso entendimento, precisa ser desafiado, em benefício de todos. Parte do problema reside no fato que, independente do contexto ou período que está sendo tratado, cultura e natureza se inter-relacionam de uma forma recíproca, permeável e sempre mutante. Para seu enfrentamento, faz-se necessária a compreensão de que a experiência na paisagem envolve, fundamentalmente, interações amplas entre as pessoas e o mundo. Conforme pontuado especialmente por Ingold (2000, 2011), nossa experiência na paisagem é um processo de coprodução que ocorre por meio de transformação mútuas e contínuas. Nos termos por ele colocados, o mundo é um local de misturas e entrelaçamentos. Nos cabe, portanto, analisá-las, não em termos de influências ou trocas, mas de constituições recíprocas, essencialmente híbridas.
No que se refere a essas questões, este dossiê oferece alguns elementos muito interessantes para repensarmos o que até aqui temos praticado. O trabalho realizado por Oliveira e colaboradores, por exemplo, traz para a Arqueologia histórica uma vertente, ainda que bem conhecida na Arqueologia pré-colonial, pouquíssimo explorada nesse campo e que inclui o estudo de espécies vegetais. Quando examinada de perto, a vegetação, ou em termos mais abrangentes, a ‘paisagem natural’, mostra-se para o caso dos contextos históricos, assim como em outros tantos, como um mosaico ecológico de usos pretéritos e, a nosso ver, parte indissociável da experiência moderna. Igualmente importante é a perspectiva assumida por alguns autores que levam em conta a ideia de coprodução entre pessoas e coisas, como nas discussões elaboradas por Rubin e colaboradores no seu trabalho sobre a paisagem dos rios Peixe e Araguaia, e Marques, Veríssimo e Santos, na sua análise sobre a Serra Azul.
Convidamos então os leitores a percorrerem este dossiê. Nossa proposta, em especial, é que façam isso pensando para além dos seus interesses de pesquisa mais imediatos. Estamos certos de que assim procedendo irão encontrar novas e produtivas possibilidades para pensar a paisagem por meio de uma perspectiva arqueológica.
Referências
ANSCHUETZ, Kurt F.; WILSHUSEN, Richard H.; SCHEICK, Cherie L. An archaeology of landscapes: perspectives and directions. Journal of Archaeological Research, v. 9, n. 2, p. 157-221, 2001.
ASHMORE, Wendy. Social Archaeologies of Landscape. In: MESKELL, Lynn e PREUCEL, Robert W. (ed.): A companion to social archaeology. Oxford: Blackwell, 2004. p. 255-271.
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WILLEY, Gordon R. Prehistoric Settlement Patterns in the Virú Valley. Bulletin. Ethnology, Bureau of American. Washington D.C., 1953.
Marcos André Torres de Souza – Doutor em Antropologia por Syracuse University, EUA. Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Professor Adjunto do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq). Pesquisador do CNPq. E-mail: torresdesouza@yahoo.com
Julio Cezar Rubin de Rubin – Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2002). Graduado em Geologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1988). Professor Adjunto I na Pontifícia Universidade Católica de Goiás dos cursos de graduação em Arqueologia e Biologia e dos Mestrados em Ciências Ambientais e Saúde e História. E-mail: rubin@pucgoias.edu.br
SOUZA, Marcos André Torres de; RUBIN, Julio Cezar Rubin de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.2, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]