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Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926) – BRITO (VH)
BRITO, Jonas. Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926). Salvador: EDUFBA, 2019. 267 p. SOUZA, Felipe Azevedo. A Bahia e a República contra o café com leite. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 70, Jan./ Abr. 2020.
Já se contam décadas desde que caiu em descrédito a tese que interpretava a política na Primeira República como um estável e previsível pacto entre as oligarquias paulistas e mineiras. A produção historiográfica recente apresenta um cenário sensivelmente diverso. Ainda que entre elites, a construção da ordem se inscrevia em um imbrincado jogo de alianças voláteis e coalizões de curto prazo envolvendo lideranças de vários estados da federação. A inconstância das negociações entre grupos de interesse estaduais não raro resultou em intervenções militares e instauração de estados de sítio. Turbulências sociais e dificuldades para acomodar os interesses de elites fragmentárias eram frequentes no caminho da governabilidade. Em Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920-1926), Jonas Brito capta a intensidade dessas transações através de uma operação historiográfica que articula os estratagemas de bastidores e o influxo de intempéries socioeconômicas que persistentemente sacudiram os governos e os tensos processos sucessórios presidenciais.
O recorte temporal relativamente curto, de 1920 a 1926, foi pródigo em tumultos e viradas de mesa. Iniciando-se após um vigoroso ciclo de greves, aqueles anos foram pontilhados por conflitos armados envolvendo revoltas estaduais e a ascensão do tenentismo. A onda contestatória ressoou no primeiro escalão da política com a formação da Reação Republicana que, como a campanha civilista, buscou emplacar um presidente oriundo das hordas oposicionistas a partir da articulação de uma profusa campanha eleitoral baseada em uma plataforma programática crítica ao governo e às instituições do sistema representativo. Os influxos por mudança, concentrados principalmente na disputa presidencial de 1921/1922, atravessam o livro através do exame esmiuçado de um processo de ruptura intraoligárquico que foi fundamental para selar os destinos da Primeira República.
Outrora retratada em torno de imagens de “paralisia e marginalidade”, a Bahia era, como pontua o título da obra, um ás na mesa do jogo da Primeira República (NEGRO; BRITO, 2013). As teses inovadoras de Eul-Soo Pang e Cláudia Viscardi já situavam o estado em seu proeminente papel de eixo de estabilidade do regime (PANG, 1979; VISCARDI, 2001). Jonas Brito disseca esse plano de poder evidenciando o domínio de ação dos construtores dessa almejada estabilidade. Como quem lê sobre os ombros austeros das lideranças republicanas, Brito conduz os enredos do livro a partir das correspondências de eminências como Nilo Peçanha, Arthur Bernardes, Otávio Mangabeira, Washington Luís, os irmãos Pedro e Góis Calmon. É de se destacar também a cuidadosa utilização de fontes diplomáticas, de onde o autor extrai algumas sínteses conjunturais lapidares. Através de um rigoroso mapeamento das movimentações públicas e reservadas de grupos que se realinhavam negociando interesses particulares e pautas públicas, o autor dimensiona o papel dos baianos no tabuleiro da política nacional.
O início dos anos 20 representou o fim de um período de jejum da Bahia em relação ao círculo de poder do Palácio do Catete. Até aquele momento as disputas entre Rui Barbosa e José Joaquim Seabra dividiam o cenário político estadual entre “ruistas” e “seabristas”. O contínuo boicote mútuo que um grupo infligia a outro acabou por esmaecer o potencial de liderança do estado junto ao poder central. O pacto entre as facções veio com a formação da coalizão oposicionista da Reação Republicana, e o fato de Hermes da Fonseca ter sido um dos principais articuladores para a adesão de Rui (seu destacado oponente em disputas anteriores) é mais um sintoma de que aquela campanha era extraordinária.
A unidade política da Bahia foi resultado do esforço conjunto de estados insatisfeitos com a candidatura bernardista que era fundeada em interesses de grupos paulistas e mineiros. Sem uma Bahia forte não haveria lastro para uma oposição capaz de enfrentar o poderio do governo. Como o autor aponta, “a atitude da Bahia impossibilitou o isolamento do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, dois estados já resistentes à candidatura de Bernardes” (p.249). Os baianos têm destaque nesta narrativa, mas este foi um processo nacional e o livro de Brito não encontra barreiras geográficas para analisar o que estava em jogo; suas páginas excedem a história da Bahia a todo tempo. O autor acompanha os próceres oposicionistas que naquela campanha deixaram seus gabinetes e saíram em caravana pelo país em carros, embarcações e trens. É especialmente relevante a maneira como essas expedições eleitorais são exploradas, a análise joga luz sobre o papel das oposições em um contexto competitivo como esse em tela – temática, vale dizer, ainda subestimada na literatura sobre o tema.
Artur Bernardes venceu aquelas eleições, mas teve diante de si um país inflamado em conflitos e rivalidades estaduais. Na Bahia, vivia-se situação diversa: a ascensão de Goés Calmon, eleito governador em 1923, foi um elemento de conciliação entre as elites. Ocupando o vácuo de influência deixado pela morte de Rui Barbosa, Calmon foi habilidoso em montar uma base fiel ao seu projeto de governo e em acomodar potenciais dissidentes a partir de um fino cálculo de distribuição de recursos políticos e de divisão de poder.
Naquele momento, a Bahia restaurava seu antigo papel de sustentação do poder central, conjuntura argutamente explorada a partir do episódio de recepção ao príncipe italiano Umberto di Savoia, cuja passagem pelo Brasil esteve a um triz de ser gorada. Cariocas e paulistas batiam cabeças com insurreições armadas em seus territórios, coube então à Bahia, sob os auspícios da aristocrática família Calmon, receber a comitiva. A pompa e circunstância ostentadas naquela recepção foram elevados a emblema da Bahia dos Calmon, tempos de solidez institucional e alinhamento com o Catete.
Em seu livro de estreia, fruto de dissertação em História defendida na Universidade Federal da Bahia, o jovem historiador já demonstra destacada habilidade para dar sentido à confusa conjuntura da época através de uma escrita límpida. A atenção que volta às articulações internas de poder, evidenciando o contínuo movimento de acomodação e ruptura das oligarquias, dá ao livro ímpeto de obra de referência, de onde pesquisadores do tema podem sempre voltar para se esclarecer sobre essa fundamental quadra do Brasil republicano. É, portanto, livro para se ter na estante.
Referências
NEGRO, Antonio Luigi; BRITO, Jonas. Mãe paralítica no teatro das oligarquias? O papel da Bahia na Primeira República para além do café-com-leite. Varia Historia [online]. 2013, v.29, n.51, p.863-887. [ Links ]
PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1889-1943. A Bahia na Primeira República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [ Links ]
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias. Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]
Felipe Azevedo Souza – Departamento de História, Universidade Federal da Bahia, Estrada de São Lázaro, 197, Federação, Salvador, BA, 40.210-730, Brasil. felipeazv.souza@gmail.com.