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Imagem e som / História Social / 2005
Imagens e sons. Ex-votos, música anarquista, matinas e aves-marias, o documentário do Estado Novo que se transforma numa arte do coletivo, cinema e história, fotografia e história. Esses temas estudados são matéria de sentimento, de emoções. São matéria de arte.
Justamente: um historiador debruçado sobre o objeto artístico, tentando compreendê-lo segundo diversas configurações históricas, poderá deparar-se com duas sensações imprecisas e frustrantes.
A primeira é a de um poço sem fundo. Por menos que se ofereça vazão às associações livres, por mais que se restrinja aos quadros de percepção de uma ou outra época, por rigorosos que sejam os parâmetros determinados para a análise, sobrará a convicção de que, mesmo dentro dos limites impostos e escolhidos, a matéria examinada é instável e não se revela por inteiro.
A segunda é de que, sejam sutis, fluidos e finos os instrumentos abstratos empregados nessa tarefa, eles se mostrarão grosseiros e desproporcionados diante do objeto fugacíssimo.
Essas constatações, banais em princípio, levam-nos a perceber a inadequação do conceito diante da obra. Embora não haja remédio, a faculdade discursiva, as formas articuladas do pensamento só se podem fazer através da generalidade conceitual, e a razão, esquelética, esquemática, esquadrada, conduz à compreensão da densidade espessa, protéica, própria à arte.
Mas, justamente, de que compreensão se trata? Se nos colocarmos na óptica da razão, a obra de arte é antes de tudo um objeto a ser destrinchado. O poder compreensivo e racional emana em mão única. A obra-objeto subordina-se ao sujeito que a cataloga, define, classifica, sintetiza, analisa, interpreta. A natureza da razão é ativa, ela dá existência, pelos seus meios, a objetos que sem ela estariam num limbo, fora, ou à espera do batismo cognitivo que ela determina.
Casos caricaturais, porque mais grosseiros, mas tão correntes, levam ao extremo uma tal situação. Um processo interpretativo possui sua bela lógica, sua forte coerência. Se é estático, parece ter previsto todas as categorias possíveis; se é dinâmico, avança no tempo, revela uma história necessária, demonstra todo o sentido do passado, prevê sem falhas o futuro e vive de transições.
Poderíamos dizer simplesmente que o emprego de conceitos teóricos, intérpretes e ordenadores, não basta: “Hay que poner talento”. Mas não se trata aqui apenas de uma virtuosidade instrumental.
Ao contrario, é preciso compreender que o objeto não é mais explicado, ele é explicante. Ou melhor, ele é o sujeito do qual uma observação minuciosa, fiel, atenta, busca extrair lições.
Portanto, não objeto, em realidade, mas sujeito, e sujeito pensante, com o qual é preciso aprender, como se aprende com o mais intrincado e profundo sistema teórico. Não, entretanto, com os mesmos meios. E preciso aceitarmos que existe um pensamento, uma reflexão sobre o mundo, sobre o homem, sobre as coisas, que não se dá no âmbito do conceito e da razão.
Racionalistas puros e duros traçarão a linha divisória e denominarão, com pejo, o oposto, o avesso, como aquilo que não é o que sou: irracional. A razão possui alguma coisa de militar, necessariamente sempre alerta contra os inimigos que nos rodeiam, informes, anormais, perigosos. A nostalgia de uma razão impossível, sucumbida diante dos delírios, possui a angústia vã da vigília, o medo certeiro do descanso: é assim que o pintor nos ensina — o sono da razão produz monstros.
A obra de arte, entretanto, fala dos monstros, da noite, do terror, e também do harmônico, do luminoso, do calmo — e mesmo do racional, mas a seu modo. Nada se passa numa inteireza franca ou numa transparência, nada se reduz à definição — quando ele existe, o raciocínio rigoroso está comandado por algo que o ultrapassa e que pode revelá-lo como falácia.
No exterior da razão, esse algo é indizível, pelo menos através das palavras corretas e próprias às construções interpretativas. A inteligência exigida e secretada pela obra de arte, sua lucidez específica, são diversas. Elas estão contidas num gesto, numa inflexão da voz, num olhar, numa rima, no tom de um céu, no volume de um seio, nas proporções de uma janela, numa metáfora, no som do violino ou do trombone. Esses e infinitos outros são momentos de um todo que adquire sentido através de uma percepção sensorial, de uma intuição. Um veículo indispensável são as emoções, em todas as suas gamas; é a experiência insubstituível. Nós compreendemos através delas, e não pelo recado do conceito.
Apreender a obra ou fazê-la são atos que pressupõem ou que dependem do mistério. As certezas científicas de nosso tempo, os racionalismos pouco sábios, não toleram a idéia de que algo lhes escape, temem as trevas e crêem na luz universal, tão enganadoramente torva. Entretanto, é inútil excluir o mistério — ele está em nós e em torno de nós. E as obras de arte nos ensinam — dura tarefa — a conviver com ele.
Da mesma forma, muitos pensamentos suficientes e autoritários decidiram terminar de uma vez por todas com a idéia insuportável de gênio. Não podemos explicá-lo, portanto, ele não existe. Fruto de um obscurantismo perverso ou de um idealismo reacionário, além de não existir, ele deve ser insultado. Os antigos, os renascentes, os românticos, com enfoques diversos, sabiam, porém, que a criação artística provém do inexplicável. E que os artistas, maiores ou menores, assenhorearam-se de um poder que não é concedido a todos, e que, eles próprios, artistas, dificilmente conseguiriam no-lo descrever.
Genialidade e mistério, noções incômodas em tempos de causalidades explicativas. Mas contidas nas obras de arte, que nos fazem penetrar nos negrores da não-razão.
Os românticos foram direto ao cerne. Deram-nos a experiência das trevas, do sem destino, do sem sinal. Mostraram-nos que todos os sinais são falsos, não em nome de um sentido superior, mas porque não há sentidos. Lançaram-nos na angústia do mistério, onde certas vozes falam mais sabiamente que outras: as da loucura, as da criança, as da mulher, as do povo, as do demônio, todos esses seres que não foram iluminados pela razão, mas que sabem exprimir as falas das trevas.
As situações inverossímeis multiplicam-se na música, na pintura, na literatura românticas, o comportamento incoerente dos personagens, movidos por paixões que não se explicam — que, exatamente, não possuem razões. Tudo é inteiro e denso, e só pode entregar-se assim. Toda tentativa de esmiuçamento, de recorte, de detalhe, está fadada ao fracasso. Torna-se muito diflcil, precedidos por práticas analíticas que exigem cadeias causais e a abolição de todo acaso, aceitarmos hoje esse amálgama disparate de ações sem sentido.
O incompreensível é absurdo, dirão as análises racionais. Que mecanismos psicológicos, que situações sociais, históricas, econômicas, políticas dão conta de tais quimeras? A atitude romântica justamente, por sua vez, denuncia: eles não dão conta. E, ao afastamento determinado pela razão, faz emergir, torna visível, palpável, presente, a espessura do desconhecido, a experiência do terrível, através dos choques, das comoções, dos arrepios.
Mas haverá aqui uma oposição entre o racional e tudo o que está fora da razão? Visto do lado da ortodoxa positividade lógica não há dúvida: o irracional é o não-ser da razão, que o recusa e estigmatiza. Fora de tais parâmetros, entretanto, não descobrimos o terrível inimigo das justezas racionais, os implacáveis espíritos negando e ameaçando sem trégua o reino harmonioso dos universais que regulam o bem. Descobrimos apenas que se trata de não-razão, isto é, de um outro domínio, pelo qual podemos ser levados a perceber o mundo e os seres, a uma sabedoria que não cabe nas equações. Atinamos que os caminhos emocionais, intuitivos, são modos também de conhecimento, mais profundos até, embora impronunciáveis, ou tão pouco, ou de outro modo. Poderíamos chegar ao princípio de uma razão dilatada, uma razão que desconfiasse dos seus próprios silogismos, e que aprendesse a respeitar, senão como superiores, pelo menos como iguais, essas outras sendas de saber.
Talvez pudéssemos ir mais longe, e pensar mesmo os grandes sistemas filosóficos sob a forma de obras de arte, considerando que, tanto quanto a definição dos conceitos, contam a riqueza das metáforas, o vigor do estilo, a beleza da arquitetura dos raciocínios. O conceito não seria mais nem meio instrumental, nem transparência — existiria numa densidade rica, infinita, de possíveis. Um grande romance e uma grande teoria explicam o mundo — sem que haja verdadeira diferença de natureza entre eles.
Uma vez os preconceitos desfeitos, teríamos então uma densidade reflexiva e sensível. Os românticos, é bem claro, não inventaram o irracional, nem foram verdadeiramente seus adeptos. Apontaram distintamente para o irracionalismo da racionalidade que, tantas vezes, tomada de uma embriaguez triunfante, enlouquece. Muitos e muitos foram, na sua história, os momentos em que a ciência mostrou-se enlouquecida, em pecado de orgulho, em excessos trazidos pelo rigor de um raciocínio que se basta a si próprio, e que incide, universal e autoritário, em conseqüências desastrosas, sobre o mundo. A hybris da razão faz aflorar o germe irracional ali escondido.
Assim, diante do fracasso das etapas ordenadas, vence uma noção tão imprecisa quanto imponderável: o desejo. São noções dessa natureza com as quais, nesse âmbito, temos que lidar. Não há regras, ou lições teóricas para tanto. São laços criados por impulsos, por afetos, por adesões. Para que possamos aderir a elas, é preciso de algum modo atraí-las. Os românticos, ainda eles, sabiam os climas propiciatórios, as noites enluaradas, os lagos silenciosos, os ermos melancólicos. Pela saciedade, puderam estes transformarem-se em atributos caricaturais. É inegável, entretanto, que eles tiveram realmente poderes.
Baudelaire, Poe e Dostoiévski perceberam que as provações do corpo: o jejum, a febre, as fraquezas — ou os seus estímulos: as bebidas, as drogas, as excitações histéricas — podiam nos levar a estados privilegiados onde uma percepção superior surgisse.
Disso tudo, entretanto, o que permaneceu foram as obras de arte. Românticas ou não, elas enfeixam universos a serem explorados com essas vibrações emotivas, intuitivas. E se são as obras pensantes, como dissemos, elas nos indicarão as sendas, elas extrairão dos movimentos da alma os modos que nos levam às contemplações almejadas.
Volta aqui uma idéia, de antiqüíssima origem — a freqüentação, o contato constante, respeitoso e desvelado. Não esperemos chaves para portas fechadas, soluções para problemas armados. Surgirá, porém, uma progressiva modificação do espírito, que aprende por meio da própria metamorfose.
O ensino trazido pelas artes se faz por ascese, por iniciação, pelo olhar demorado, pela escuta atenta. Isso acarreta uma séria moralização à soberba dos conceitos e da teoria. Pois as obras gostam da nossa atenção. Mais e mais a elas nos consagramos, mais e mais elas nos devolvem sentidos ocultos, inimaginados. E com isso fogem constantemente ao rigor classificatório, escapam das camisas-de-força que lhes são impostas. Denunciam assim a estreiteza e a tirania dos sistemas. Indicam-lhes os limites.
Não é possível prescindir, nesses domínios, do trabalho da razão, da busca metódica, da exatidão comparativa ou analítica. Eles esclarecem, situam, permitem que o pensamento não enverede pela indignidade do arbitrário. Revelam-se também como modos da freqüentação. Está bem claro, porém, que eles não substituem o legítimo contato. Os imperceptíveis vasos comunicantes entre cada um e a sinfonia, ou o quadro, ou a estátua, ou o poema, o badalar do sino, a seqüência do filme, o segmento de mundo refeito pela fotografia, um romance de Zamiatin estabelecem-se por meio da relação privilegiada. Capaz de criar ainda laços invisíveis entre os espectadores, ouvintes, leitores, de uma mesma obra. Não exatamente os mesmos sentimentos, não os comportamentos unânimes, mas ligações complexas, possivelmente até emaranhadas e contraditórias. Com essa natureza específica, chegamos aqui ao centro de uma ‘religio artis’, no seu sentido mais precisamente etimológico.
Os instrumentos racionais, então, se prestam como uma das maneiras, e dentre as mais elevadas, da aproximação. Desde que eles se encontram submetidos ao principal, humílimos servos. Assim como o contemplador, que se submete e se entrega às trevas insondáveis.
Jorge Coli
COLI, Jorge. Apresentação. História Social. Campinas, n.11, 2005. Acessar publicação original [DR]