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Saturação – MAFFESOLI (ER)
MAFFESOLI, Michel. Saturação. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010. Resenha de: DORNELES, Malvina do Amaral. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 627-632, maio/ago., 2011.
Pode-se dizer que o politeísmo teórico que caracteriza a Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é referência da diversidade de pontos de vista que podem ser compartilhados numa instituição educativa e apresentam-se como múltiplos portais de mundos e possibilidades do conhecimento. Mostra uma vocação institucional de pensar, o fazer e o pensar, do fazer pedagógico em espaços escolares e não escolares referidos às complexidades do estar-junto nas diferentes dimensões que compõem as socialidades dos seres humanos. Uma incomensurável ancestralidade intelectual mostra-se e adquire carne e consubstancia-se nas mentes, nos corpos e nos espíritos daqueles que os estudam, os debatem, os acolhem, em seus estudos e pesquisas, em suas atitudes, em suas manifestações do viver e conviver. É nesse banquete pagão que Michel Maffesoli, nela presente em diversos estudos e pesquisas em educação, pode ser devidamente, e confortavelmente, apresentado.
Esse pensador francês é conhecido e respeitado pelos seus estudos sobre a Pós-Modernidade, o Imaginário, a Cultura, no contexto da Sociologia do Cotidiano, da qual pode ser considerado um dos maiores entre os seus fundadores.
É professor da Université de Paris-Descartes – Sorbonne, secretário geral do Centre de Recherche Sur L’Imaginaire, vice-presidente do Institut International de Sociologie (IIS), membro do Institut Universitaire de France (IUF), autor de algumas dezenas de livros traduzidos em várias línguas, grande parte disponível na língua portuguesa.
Nesse cerimonial delicado, o de decifrar a dizibilidade de um livro, a publicação de 2010, pela Editora Iluminuras Ltda., de São Paulo, e o Observatório Itaú Cultural, traduzida por Ana Goldberger, pode encarnar um apresentar-se de Michel Maffesoli aos leitores iniciados e não iniciados. Intitulado Saturação, o livro junta dois textos, editados originalmente pela CNRS Éditions, na forma de dois livros, cada um com título próprio: Apocalipse e Matrimoniun: pequeno tratado de ecosofia. O primeiro foi publicado, também em 2010, pela Editora Sulina, de Porto Alegre, sob o título Apocalipse: Opinião Pública e Opinião Publicada. A iniciativa brasileira de reunir os textos foi acolhida pelo autor, que lhe conferiu o título Saturação e acrescentou um Prefácio à Edição Brasileira. Neste, explica o significado da palavra título:
“[…] processo, quase químico, que dá conta da desestruturação de um dado corpo e que é seguida pela reestruturação desse corpo com os mesmos elementos daquilo que foi desconstruído […] vida e morte ligadas numa combinação íntima e infinita” (Maffesoli, 2010, p. 12).
Autor polêmico, inovador, provocador, revolve com elegância a etimologia, adentra sem pudor pela semântica, criando neologismos instigantes, profundos, abissais, que compõem, com lirismo e leveza, uma cosmovisão paradoxal da tragédia de seres humanos sem qualidades, comuns, ordinários, que criam, pela ética da pertença, a estética do viver societário. Sua forma singular de pensar o Cotidiano, a Cultura, apresenta como fundamento uma disposição de ver o mundo assim como ele é e não a partir de um julgamento “daquilo que existe em função do que deveria ser” (p. 48).
Sem ser otimista, mostra um olhar generoso, que aprecia o que está sendo vivido; que privilegia a dimensão trágica do dizer sim à vida, ao que existe, ao estar-junto ético-estético-afetualemocional; que “substitui a perfeição pela completude” na “aceitação do claroescuro da existência” (p. 63). Tudo isso num tempo paradoxal, desconcertante, tribal, em que os fenômenos para existir precisam apresentar-se, rompendo com as “costumeiras representações filosóficas” (p. 90). Daí a prevalência, nas suas obras, da apresentação das coisas sobre a sua representação, da sua mostração sobre a demonstração. No entanto, “[…] retornar ao simples, àquilo que é simplesmente a vida, necessita uma forma de conversão do espírito” (p. 97). Para Maffesoli, nada mais, nada menos, do que deixar de odiar o presente, abandonar o ressentimento, o desprezo e a hostilidade por aqueles que negam este mundo, por achá-lo imundo, infame, por recusá-lo assim como existe.
A palavra Apocalipse, de origem grega kaliptô (cobrir, encobrir, ocultar) e apó (descobrir, desvendar, revelar), toma o sentido de revelação. É esse entendimento que conduz todo o seu argumento. Ao afirmar que, “quando uma civilização já deu o melhor de si mesma, ela sente a necessidade de retornar a sua origem” e que, “invertida, ela se transforma em cultura” (p. 21), ele mostra o design da sua reflexão: é como se fosse um bordar em ponto cheio. Ao mesmo tempo em que introduz a agulha com linha (a da crítica) no tecido (quando, por exemplo, afirma (p. 14) que as “[…] fundações arquitetônicas do mundo ocidental – Indivíduo, Razão, Economia, Progresso – estão saturadas”), puxa a mesm agulha com seu fio de linha, compondo uma trama, bordando o argumento para esse “misterioso ectoplasma que é a crise” (p. 21), apresentando um novo ponto de vista para este mundo que aí está. Crise esta que “[…] acontece nos momentos em que, em seguida a uma aceleração ou mesmo intensificação da energia, o corpo (físico, social, individual, místico) alcança seu apogeu”, e que, “por um curioso paradoxo, inverte-se em hipogeu”, ou seja, “retorno ao subterrâneo, retorno ao túmulo, símbolos de uma reconstrução futura” (p. 21). Por isso, “[…] nos períodos de mudança é urgente encontrar palavras, […] que, pouco a pouco, (re)transformam-se em palavras fundadoras, ou seja, garantem a instalação do estar-junto que está emergindo” (p. 19).
Essa crise apocalíptica decorre da saturação de três dimensões sociopolíticas preciosas à Modernidade: a opinião pública, a sociedade e o contrato social. Para o autor, “[…] a economia da salvação, depois a economia stricto sensu, a história da salvação, depois a história consolidada em si mesma, terminando, nesse esquema, na primazia do Político” (p. 30), resultou numa opinião pública confundida com opinião publicada. Esta, “[…] não deixa de ser uma opinião, mas pretende ser um saber, uma competência, até mesmo uma ciência” (p. 20). Ao mesmo tempo, a opinião pública, enquanto tal, “tem consciência da sua fragilidade, de sua versatilidade, em suma, de sua humanidade” (p. 20). É uma nova opinião pública emergente, cuja vitalidade irreprimível transfigura o político através de uma ética da estética, onde “o jogo das paixões, a importância das emoções, a pregnância dos sonhos” (p. 28) constituem o cimento coletivo. A primazia da estética “é tão evidente que a própria política teatralizou-se” (p. 31).
Sua afirmação de que “a época trocou de pele” (p. 26) é uma provocação aos sistemas de interpretação, cujas evidências intelectuais se ressentem de saudades onipresentes, sejam as de um paraíso perdido, sejam as de um paraíso futuro. Para o autor, evidente é o fato de que o estar-junto em curso “neste mundo e não num outro porvir” (p. 23) não é mais o “[…] simples social de dominante racional, tendo por expressão o político e o econômico, mas sim uma outra maneira de estar junto, em que o imaginário, o onírico, o lúdico, justamente, ocupam um lugar primordial” (p. 27). A essa outra maneira de estar-junto denomina de societal, constituída pelas socialidades das tribos pós-modernas. Nestas, o predomínio do presente, do instante, tem pouco a ver com a ideologia moderna de projeto. O presenteísmo privilegia a estética, presta atenção ao ethos local, ao lugar. Pode ser “uma ética, às vezes imoral, que se manifesta nas inúmeras efervescências da vida social” (p. 25). Se a isso se acrescenta “[…] a tônica colocada no qualitativo, a recusa da pilhagem produtivista, a rebelião contra a devastação dos espíritos” (p. 29), esse estar-junto ético-político, inspira temor, engendra uma opinião publicada que estigmatiza, principalmente, as tribos dos bairros distantes e das diversas periferias urbanas.
As novas socialidades mostram realidades que obrigam a constatação da heterogeneidade, do politeísmo de valores, da “[…] reafirmação da diferença, dos diversos localismos, das especificidades das línguas e das culturas, das reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, dos vários agrupamentos em torno de uma origem comum, real ou mitificada” (p. 38). É o tempo das tribos, que ocupam o espaço público e celebram um “vínculo social fundado na disparidade, no policulturalismo, na polissemia” (p. 39). Constituem uma coerência aberta que o termo medieval unicidade parece designar melhor, em lugar do ideal unitário e identitário em processo de saturação. Maffesoli as promove a um novo paradigma, caracterizado por um potente imanentismo, onde “o hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências” constituem a aceitação de um mundo como ele é, “com tudo que isso comporta de trágico (amor fati), bem como de alegria” (p. 35). Nessa perspectiva, a política transfigurada se converte em doméstica, transforma-se em ecologia, designa o domus, o oikos, a “moradia comum que convém proteger da devastação a que fomos acostumados pela modernidade” (p. 36). Para o autor, um pensamento amplo, “que esteja altura de apreender as novas configurações sociais”, exige que os intelectuai abdiquem de “criar o mundo à imagem daquilo que se quer que ele seja” (p. 39).
A magnitude do que é proposto por Maffesoli é estonteante pelo paradoxo que compõe ao juntar a antiga noção de tribo com as mais diversas formas de solidariedades e sensibilidades emergentes, nelas incluindo todas as possibilidades apresentadas pelas novas tecnologias da informação e comunicação, as redes sociais, a vida on-line. Uma das suas definições para a pós-modernidade é a de que esta se constitui pela “sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico” (p. 40). Ao acompanhar a lógica argumentativa do autor, nem sempre fácil, pois se caracteriza por um pensamento em espiral (a espiralidade é uma característica do mundo vegetal, e também representa o elemento feminino), que foge da linearidade, chega-se ao âmago da sua disposição ético-política-afetual (mesmo não explicitada por ele como tal) para o que entende como sendo o estarjunto ético-político das socialidades presentes no mundo atual.
A exuberância dessas socialidades, que priorizam o sentimento de pertencer, a experiência vivida em comum, o enraizamento no aqui e agora, “[…] quer seja no território stricto sensu, quer nos territórios simbólicos que são os sites comunitários na Internet” (p. 53), acontece no contexto de múltiplas formas de pacto tribal (pacto ecológico, pacto governamental, pacto político, pacto afetivo, e tantos outros). Há a prevalência do envolvimento sobre o desenvolvimento: as tribos urbanas, “[…] com seus piercings, seus cabelos rebuscados e multicoloridos, com suas roupas em que o étnico disputa com o sofisticado” (p. 86), suas invenções de linguagem, sua abertura para o mundo anunciam um jogo de aparências, bem diferente da geração perdida ou cristalizada em devoções econômicas.
No entanto, enquanto “[…] a mãe terra, ‘Gaia’, recupera sua honra e a lei dos irmãos, feita de horizontalidade, tende a reencontrar alguma força e vigor” (p. 53), enquanto a verticalidade da “[…] lei do Pai, de um Deus único, ou do Estado onipotente, a do patriarcado e da predominância masculina, está superada” (p. 52), pergunta-se, então, onde está o consenso necessário a toda a vida em sociedade? Sua resposta é categórica: “[…] o consenso (cum sensualis) não se reduz à racionalidade, mas comporta uma forte carga emocional, […] põe em jogo paixões e afetos diversos” (p. 52). Daí ser significativo “o deslizar das palavras, do contrato ao pacto” (p. 53). Ao lembrar que o contrato social é “causa e efeito de um estarjunto puramente racional” (p. 46), o autor mostra seu desencanto e apresenta uma crítica implacável às elites intelectuais, constituídas de falsos professores e verdadeiros bandidos. Falsos professores porque “[…] aproveitando-se de sua posição – eles detêm o poder legítimo para dizer, publicar, escrever, agir, organizar – continuam a instilar e a pôr em prática as ideias de um mundo que acaba, cegos que são para o mundo que começa” (p. 46). Verdadeiros bandidos porque “[…] ao fazer isso, de uma maneira um tanto irresponsável, são eles que provocam as várias explosões, os comportamentos antissociais e as diversas formas de violência que pontuam a vida de nossas sociedades” (p. 47).
Maffesoli deixa claro que suas palavras não são mera provocação e que, tampouco, vê como sendo um paradoxo a impertinência de uma elite que se repete, que não encontra mais as palavras pertinentes, e mantém, impunemente, uma ficção da representação da realidade, através de teorias incendiárias, cuja defasagem não só envia alguns ao front, mas constitui “[…] o pavio curto da guerra civil latente que é um elemento notável da época” (p. 47). De maneira quase feroz, estilo incomum nos seus escritos, critica alguns métodos sociológicos voltados para a educação, principalmente aqueles presentes nas escolas de formação de professores, que, afirma, formam para o totalitarismo (ao julgar aquilo que existe em função do que gostariam que fosse), semeando o desprezo por este mundo e incitando, a priori, sempre dizer não ao que existe. Mesmo assim, apesar e para além, “o contracânone que opera no inconsciente coletivo” (p. 51) mantém-se como sensibilidade panteísta, a qual, no contexto de um pacto tribal, todos “[…] se dedicam a aproveitar como podem aquilo que se deixa ver e aquilo que se deixa viver” (p. 51). Eis aí um espetacular paradoxo, bem ao gosto e ao estilo do autor.
Como fundamento a esse contracânone, Maffesoli apresenta a noção de invaginação do sentido, para designar o retorno à natureza essencial das coisas, “ao nada fundador, ao vazio natural, ao dado protetor e matricial” (p. 107), característica também do espírito do tempo. Com o trocadilho (p. 59) “só tem sentido (significação) aquilo que tem um sentido (finalidade)”, define o ambiente específico da modernidade ocidental, em seu sentido etimológico, como espermático, projetivo, referendado em expressões filosóficas como logos spermatikus, ratio seminalis. Por outro lado, sua compreensão da metamorfose em curso pede um esclarecimento retrospectivo, um retroceder do derivado ao essencial, “[…] passar de um progressismo (que foi vigoroso, que deu bons resultados, mas que se torna um pouco doentio) para uma progressividade que reinveste em ‘arcaísmos’ povo, território, natureza, sentimentos, humores” (p. 62).
Ao citar uma inscrição que viu num muro de subúrbio, em Porto Alegre, Brasil – “A crise passa. A vida continua” (p. 61) – argumenta que “[…] o que está em jogo é uma forma de concordância com o ser do mundo em sua realidade múltipla” (p. 63). Não vê mais lugar para as quimeras relacionadas à noção de Progresso (e seu utilitarismo) com seu enfoque na imperfeição, alisando as dobras do ser, mas sim na noção de progressivo que as implica e as aceita (a imperfeição e as dobras). Tratase de “um sim, apesar de tudo àquilo que é” (p. 63). Uma aceitação, como atitude afirmativa, que confere, ao animal humano, a dimensão trágica de ser natureza.
Busca em Fernando Pessoa a definição de “sociologia das profundezas” para expressar, dar forma, “àquilo que, vindo de muito longe, fala através de nós” (p. 61), onde se encontra os arquétipos fundadores, sendo a “Grande Mãe, Terra Mãe, Gaia”, (p. 83) um deles. Esse seria o fundamento inconsciente da sensibilidade ecológica que, ao contrário do antropocentrismo, coloca em evidência aquilo que no homem “ultrapassa o homem” (p. 65); anuncia o vigor selvagem, ancestral, que “[…] reencontra uma nova vitalidade nas atividades dos jovens, nas multidões esportivas, nas histerias musicais e outras reuniões religiosas” (p. 64).
Apresenta-se sob a forma de um paganismo contemporâneo que se expressa no sucesso dos produtos bio, orgânicos, e na intensificação de valores relacionados ao terreno, ao território, ao lugar, onde “o lugar faz a ligação” (p. 104). E que traz consigo o chamado a uma qualidade de vida, uma vida cotidiana onde o bem-estar nada significa diante do “melhor-estar existencial em que a Mãe-Natureza desempenha um papel não negligenciável” (p. 86).
É o retorno a uma organicidade cósmica, uma geossociologia, cujas forças subterrâneas constituem as “origens de todos os adventos” (p. 97), e compõem “[…] essa atitude instituinte, em estado nascente, que se pode qualificar de holística, termo utilizado por Durkheim para designar o aspecto global da vida social” (p. 99). Talvez, essa lógica da conjunção, da copertença, esse matrimonium, seja um conhecimento que renasce “como uma espécie de ecosofia que ainda não sabe como nomear-se” (p. 101), mas que se capilariza nas práticas da vida corrente, na moradia, na alimentação, na vestimenta, mesclando corpo e espírito. Para Maffesoli, “mais vividas do que pensadas” e “pouco reconhecidas pelas instituições sociais” (p. 102).
Malvina do Amaral Dorneles – doutora em Ciências da Educação pela Universidad Católica de Córdoba. É professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Políticas e Gestão de Processos Educacionais e o Núcleo de Estudos da Educação e Gestão do Cuidado. E-mail: malvina@edu.ufrgs.br