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Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe – BIANCO (RFMC)
BIANCO, Giuseppe. Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe. Paris: PUF, 2015. Resenha de: SOUZA, Herivelto P. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 141-146, n.1, 2016.
- Como se escreve a história (da filosofia)?
Em Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe, o pesquisador Giuseppe Bianco apresenta uma versão reduzida e modificada de seu trabalho de doutorado, no qual a recepção da obra de Henri Bergson no pensamento francês contemporâneo — com especial ênfase à “prosa de ideias”, ou seja, ao âmbito filosófico — é exposta de maneira minuciosa e bem documentada, destrinçando e alinhavando os mais diversos fatores que compõem aquilo que se pode chamar de “a herança intelectual” dessa que se tornou uma figura maior do cânone filosófico. O assunto convoca logo de saída questões metodológicas que podem perturbar adeptos de uma historiografia da filosofia mais, digamos, ortodoxa (à la Gueroult ou Goldschmidt), uma vez que experiências intelectuais que deram ensejo a importantes posicionamentos filosóficos são retratados não em sua coerência sistêmica autorreferenciada, mas em meio a teias de relações reconstruídas e analisadas a partir de uma abordagem que retoma instrumentos da história das ideias e da sociologia do conhecimento1 . Uma das conquistas mais evidentes desse tipo de postura é a de se retirar o discurso filosófico de um suposto lugar aquém (primeiro, mais fundamental) ou além (último, mais acabado) de outras formas discursivas, de modo tal que conceitos possam mostrar a amplitude de sua eficácia histórica e teórica. Nesse sentido, é feliz a escolha de submeter o caso Bergson a esse tipo de escrutínio, já que se trata de um autor que mobilizou os mais diversos tipos de reação; e embora possa-se perguntar com qual grande filosofia o mesmo não ocorreu, fato é que o século XX francês foi palco de uma profusão teórica muito significativa, no qual comentário de texto e reflexão original não se apartaram, tendo a obra bergsoniana constituído aí um referencial incontornável. Mas para compreender adequadamente tal cenário, noções como as de autor, obra ou escola não podem não ser problematizadas, pois se não se leva em conta os modos pelos quais são remanejadas em cada caso, perde-se de vista boa parte das nuançadas vicissitudes pelas quais uma experiência intelectual pode mostrar seu impacto, sem que aí esteja pressuposto qualquer resquício de teleologia, o que tornaria inevitável a leitura de que a tal “glória” de Bergson estivera já prenunciada por tal ou qual fator que se queira destacar.
Dessa forma, o estudo de Bianco distanciase também de um tipo de reconstrução que se restringe a interlocuções privilegiadas, aquelas nas quais se tenta mostrar como a influência mais decisiva de um determinado autor é um determinado outro autor. Isso deverá causar uma certa estranheza a quem possa estar muito habituado a algo que se encontra de maneira recorrente em trabalhos de história da filosofia; logo nos primeiros parágrafos do livro explicita-se essa escolha metodológica:
A despeito da problematização de noções como as de autor, obra e de continuum biográfico, introduzida em história intelectual por Foucault, Barthes e Bourdieu, a ideia desacreditada de que a produção filosófica seja redutível a uma performance solitária vinculável a uma subjetividade criadora e cujo objetivo é o de construir uma obra ou um sistema permanece tenaz quando se chega à metodologia realmente utilizada pelos historiadores da filosofia. Nestas páginas, os personagens se comportam diferentemente: eles pensam e falam sempre, para retomar a expressão de Judith Schlanger, “com a boca cheia”. Cada um deles fala em seu nome, mas com a boca cheia das noções, dos conceitos, das torções, das expressões, dos tiques de linguagem, das posturas de outros. Tenta-se assim seguir um programa forte que visa fazer desaparecer, do ponto de vista metodológico, a distinção entre personagens principais e personagens secundários, entre os grandes e os pequenos, entre os indivíduos e os “dejetos’”, para retomar a terminologia de Böll. (BIANCO, 2015: 4)
Qualquer leitor do livro perceberá com qual seriedade o compromisso com tal programa metodológico é seguido, e a que ponto se adensa conceitualmente a imagem do campo intelectual no qual o bergsonismo se inscreve, ou melhor, o campo que o mesmo ajudar a compor, de maneira decisiva.
Temos, portanto, uma história da filosofia cuja temporalidade não é linear, marcada pela regularidade de uma sucessão (de autores, doutrinas, etc.), mas plural, com diferentes escalas ou ritmos, uma temporalidade na qual o surgimento e consolidação de “-ismos” ou de “modas” podem ser postos em confronto com “a história dos programas, das instituições e das disciplinas” (2015: 7). O que muda? Para citar apenas um emblemático exemplo, a opinião um tanto aceita e repetida de que Bergson, até a publicação do livro de Deleuze de 1966, seria um “cachorro morto”, cuja obra sequer era lida ou vista como relevante, pode ser vigorosamente problematizada, se não rechaçada, mostrando-se 1) como antes mesmo de toda a celebração do centenário, em 1959, desde os anos 1940 aliás, obras como A evolução criadora e Matéria e memória já figuravam no programa da agrégation, e que, para professores “como MerleauPonty e Jean Hyppolite, os cursos de agrégation representam uma oportunidade para colocar Bergson em relação a outras correntes filosóficas contemporâneas” (2015: 258); 2) mostrando-se também que, mesmo durante os anos da hegemonia estruturalista, é possível encontrar menções a conceitos bergsonianos no interior de debates centrais. Ora, o livro oferece suficientes elementos de que seria muito mais justo falar em uma espécie de presença subterrânea de Bergson do que em sua ausência ou falta de relevância, pois fica claro que os conceitos bergsonianos foram sempre bastante frequentados e, é claro, muito criticados. Mas alguém ainda acredita que o impacto de uma experiência intelectual, ou a relevância de uma herança conceitual, efetiva-se apenas pela via do elogio? A frequentação de textos filosóficos fornece sem dificuldades exemplos de como, às vezes, quem se pretendeu o mais fiel seguidor tenha acabado por constituir, por assim dizer, um grande deturpador da obra de seu mestre, não porque haja um lastro que possa assegurar uma interpretação unívoca de um texto, mas justamente por causa da ausência da mesma.
- Uma aufhebung histórica do bergsonismo?
A reconstrução que o livro apresenta é escandida em três tempos, que segundo o autor correspondem, grosso modo, a três “momentos” da filosofia francesa contemporânea: o do “espírito”, o da “existência” e o da “estrutura”. Contudo, a divisão tripartite do livro não representa uma separação da recepção da obra bergsoniana em fases estanques, ou mesmo progressivas, na medida em que permite acompanhar as diferentes estratégias de apropriação dos diversos aspectos do pensamento bergsoniano. Nessa direção, o livro de Bianco é precioso, pois aspectos inauditos da centralidade do bergsonismo são trazidos à tona, não desacompanhados das referências a aspectos já há muito explorados, com diferentes níveis de aprofundamento: as críticas de Alain e alguns de seus principais seguidores – com destaque para o imbróglio que envolveu a participação francesa na primeira grande guerra -, bem como aquelas dos neokantianos franceses; as dívidas e rupturas dos existencialistas e fenomenólogos franceses; o estruturalismo e o papel de suas teses na rejeição do bergsonismo como uma espécie de psicologismo; a recepção por parte de um pensamento filosófico cristão, bem como a criação da “Sociedade dos amigos de Bergson”; a atenção que as assim chamadas “ciências psi” (psiquiatria, psicologia, psicanálise) deram à guinada introspectiva presente no pensamento bergsoniano; a importância que teve para vanguardas artísticas e literárias; a reviravolta desencadeada pela retomada deleuzeana da filosofia de Bergson. Como se pode vislumbrar, pouco escapa ao olhar atento de Bianco, embora, como já indicado, ele dedique fôlegos diferenciados a cada um desses diversos pontos.
A primeira parte do livro persegue as vias pelas quais se constitui, no cenário filosófico francês dos dois primeiros decênios do século XX, uma polarização entre “intelecção” e “intuição”, ou seja, uma tensão opositiva entre o modo pelo qual os neokantianos retomam o trabalho de fundamentação das condições de possibilidade do conhecimento racional e os efeitos da proposição bergsoniana de um método para a metafísica centrado no acesso intuitivo ao imediato. Em jogo aí está a ressonância das ideias de Bergson e os modos pelos quais elas logo geraram reações críticas muito severas. Entre as primeiras que se configuraram, e que tiveram seu impacto no modo como Bergson foi lido no decorrer do século, merecem destaque da parte de Bianco: 1) o ensino de Alain no Liceu Henri-IV, ao qual estiveram vinculados, entre outros, Canguilhem, Hypollite e Simone Weil; 2) duas frontes dominantes na Sorbonne à época: o neokantismo, proeminentemente impulsionado por Léon Brunschvicg, e a escola durkheimiana capitaneada por Célestin Bouglé; e 3) a tomada de partido em favor da teoria da relatividade por ocasião do confronto da metafísica de Bergson com a física de Einstein, exemplarmente manifesta na obra de Bachelard. O livro defende que essas “três barreiras antibergsonianas […] se combinam e influenciam a elaboração de textos na fronteira entre filosofia e prosa de ideias em um momento no qual a filosofia universitária não oferece perspectiva de carreira aos novos ingressantes.” (2015: 108) Com efeito, trata-se de um conjunto de perspectivas críticas a partir das quais a obra bergsoniana se viu continuamente sob ataque, já que a consideração de que o método da intuição é insustentável — uma vez que acaba por deixar o pensamento sem uma efetiva ancoragem no objeto — tem incidência não apenas epistemológica (impossibilidade de dar conta das condições de possibilidade da objetividade dos juízos), como também ético-política (sem ponto de referência, a razão torna-se refém das paixões, enreda-se em um inaceitável relativismo). Levado a seu ponto extremo, esse psicologismo ressaltado como inerente à intuição redundaria nitidamente em solipsismo: o pensamento bergsoniano padeceria então de todas as desastrosas consequências daí oriundas.
Ao longo de páginas muito estimulantes, a segunda parte do livro aborda a face que o bergsonismo adquire no panorama intelectual do entre-guerras, período decisivo no qual eclode a filosofia existencialista, consolida-se a influência da fenomenologia, sem perder de vista como se movem algumas peças importantes do tabuleiro, como Canguilhem, Lacan ou Jankélévitch. Mas tudo isso aparece precedido pela exploração mais detida dos movimentos argumentativos contidos na peculiar obra de um autor que representou um verdadeiro ponto de referência intelectual: trata-se de Georges Politzer. E isso não apenas por que crítica epistemológica e crítica política encontram aí uma espécie de sintonia perfeita, a ponto de se tornarem inseparáveis, mas sobretudo pela potência conceitual resultante desse embate crítico, com a proposta de que uma psicologia epistemologicamente consistente deveria estar assentada na noção de concreto. Este é um ponto que exige muito cuidado, pois quem conhece a obra de Bergson sabe que a noção de concreto é mobilizada para criticar o modus operandi abstracionista da velha metafísica. Politzer faz tal crítica voltar-se contra o próprio Bergson, e Bianco faz questão de apresentrar detalhadamente o que está em jogo: o cerne da crítica politzeriana reside na leitura de que tudo o que a filosofia da duração consegue fazer é dinamizar um pouco a fixidez das hipóstases da psicologia clássica, uma vez que generalidades sobre o fluxo do tempo em sua dimensão qualitativa não são suficientes para desvencilhar-se daquele realismo criticado. Tomar o qualitativo como princípio de individuação, tendo o fluxo dos dados imediatos do vivido como solo do sentido, seria relegar a experiência concreta do indivíduo no mundo a uma mera espécie de registro introspectivo. Afinal, para Politzer, a clivagem entre prático e especulativo, entre inteligência e intuição, entre espaço e duração dá-se ainda dentro do horizonte realista da metafísica, de modo que a adesão bergsoniana a um dos lados da separação o mantém rigorosamente apartado do concreto.
Ora, a leitura politzeriana será fortemente empregada por diversos autores que, mesmo antes do impacto do estruturalismo na filosofia e nas ciências humanas, criticarão incisivamente Bergson por todo seu descrédito com respeito às capacidades da linguagem em dar conta do objeto do pensamento. Ela será ainda uma ferramenta preciosa nas mãos de autores como Lacan, Foucault e Althusser, quando cada um, a seu modo, posicionar-se contra uma tendência ecletista na psicologia. Para Lacan, por exemplo, será ocasião de responder a uma série de críticas recebidas, as quais ele rotula, em 1935, como “intuicionismo bergsoniano”, colocando em relevo as consequências irracionalistas do mesmo. Por outro lado, o livro acompanha a série de mediações teóricas que levam a uma virada na avaliação da filosofia de Bergson por Canguilhem, o qual, enquanto jovem alainista, seguia de perto as críticas de seu mestre, mas que retorna mais tarde ao textos bergsonianos, encontrando neles elementos importantes para pensar as relações entre técnica e ciência sobre o pano de fundo de uma consequente reflexão filosófica sobre o vivente.
A leitura canguilhemiana não será desprovida de consequências para as formas pelas quais Bergson será lido em seguida. Ao lado daquela empreendida por autores como Jean Hyppolite, Raymond Aron ou Paul Ricœur, os quais tinham como uma questão central a história, a terceira parte mostra como a noção de vida é importante para a crítica do humanismo como resquício de uma metafísica a ser abandonada, problema que o pensamento francês articula a partir do influente texto heideggeriano de 1947.
Mas eis que a trama de reconstituição teórica da herança intelecutal bergsoniana enfim trata da “criança monstruosa” resultante da leitura à contrapelo realizada por Gilles Deleuze. Aqui, temos ocasião não apenas de ponderar elementos do percurso formativo que permitiram a configuração desse modo muito peculiar de se debruçar sobre a história da filosofia, como também – e, com isso, alcançamos talvez o ponto alto do livro – somos colocados em presença de uma articulação teórica decisiva a partir da qual da noção de diferença advirá uma espécie de centro de referência para a vindoura constelação conceitual deleuzeana, que se estabiliza, por assim dizer, com Diferença e Repetição. Destaque-se a atenção dedicada a escavar a gênese desse problema a partir de dois textos aparentemente menores, mas que ganham uma importância inaudita quando inseridos no desenvolvimento da produção teórica deleuzeana: a resenha de um livro de Hyppolite sobre Hegel e o artigo sobre a concepção de diferença em Bergson. Se Deleuze elogia o esforço interpretativo de Hyppolite em desvincular o sistema hegeliano de uma impostação antropológica, em favor da ontologia como dimensão mais fundamental, seu confronto com o bergsonismo o fará ressaltar aí essa passagem como já algo acabado, isto é, como uma filosofia cujos conceitos nos permitem pensar a diferença em si mesma, em sua imanência ao real, e não a partir de um quadro de projeções que a prenderiam, na experiência e, consequentemente, em certo regime de pensamento, como um sistema fixo de oposições. Ora, a operação deleuzeana é muito hábil em elevar a problema central esse tema da diferença, que, a rigor, “é totalmente ausente da obra de Bergson” (2015: 293), sem que se trate, no entanto, de uma imposição arbitrária à mesma: afinal, uma tal “singular perversão do bergosnismo” (2015: 296) envolve mostrar como a intuição pode ser rigoroso “método de compreensão do real” (2015: 298), uma vez que a consistência do real é durativa, isto é, “se diferencia imediamente consigo mesma” (2015: 301).
Ainda que por menções breves, mas sem jamais cair em generalizações grosseiras, Bianco deixa registrado como o confronto com Bergson será profícuo e se estenderá até o final do percurso intelectual de Deleuze, o qual coincide com os últimos decênios do século XX, do qual o livro nos fornece um panorama sucinto, com ênfase no papel do bergsonismo dentro do debate entre Deleuze e Badiou acerca da teoria das multiplicidades.
- Experiência ou conceito?
Ao fim da leitura surge uma estranha impressão de ter passado por todo um livro sobre o bergsonismo sem se deparar com qualquer citação do próprio autor. O curioso é que não se deve esperar do livro um comentário textual de Bergson, pois seu propósito é reconstruir os diversos modo de apropriação de uma obra em um determinado contexto histórico. Assim, possíveis críticas de que tenha faltado entrar no mérito da análise textual dos argumentos são descabidas na medida em que isso foge ao escopo do estudo. De fato, como o próprio autor aponta logo de saída, o livro não é bergsoniano. Mas não conter análise e citações de Bergson parece estratégico, pois permite tornar manifesta uma certa “ausência do autor” que coloca em relevo as modalidades discursivas de apropriação que justamente configuram a complexa feição de determinado autor.
Ora, tal feição é o resultado de textos em confronto com textos, e a nitidez dela dependerá de como esse entrelaçamento textual é apreendido. Ora, Bianco sabe muito bem que a trama aí é bem intrincada, na medida em que os textos não são apenas unidirecionalmente voltados para Bergson, mas se atravessam e dialogam entre si, extrapolando a referência ao autor privilegiado pelo recorte. E se há todo o esforço de dar conta das relações entre eles, em certas ocasiões alguns elementos poderiam ser mais explorados, como o papel de Koyré no contexto das críticas epistemológicas, ou mesmo nomes como Ruyer e Simondon, que não apenas eram leitores atentos de Bergson, mas tiveram uma parcela não negligénciável de importância para autores bem mais conhecidos como Canguilhem, Deleuze e Lacan (no caso do primeiro). Não se trata, é claro, de apontar tal ou qual aquela referência faltante, e sim de ressaltar em que medida o assunto é complexo, dada a profusão de experiências intelectuais originais em jogo, e de como a tarefa de realizar um retrato consequente é muito mais árdua do que pode parecer.
De qualquer forma, o livro não se destina apenas a quem quer conhecer melhor o contexto histórico de recepção da filosofia bergsoniana, mas deverá interessar bastante a pesquisadores dedicados a compreender o aparato conceitual da mesma, na medida em que tais conceitos são empregados em problemáticas diversas. Particularmente rico é o lugar atribuído a Bergson na oposição, tornada famosa por Foucault, entre experiência e conceito, pois Bianco dedica uma seção a mostrar, retomando o que já havia analisado de maneira mais demorada anteriormente2 , como tal oposição é incapaz de dar conta do que representou o bergsonismo, tanto em uma insidiosa influência subterrânea, quanto em seu recente interesse renovado para discussões muito próximas de problemas científicos.
Conta-se que o Prof. Bento Prado Jr. costumava dizer, acerca da filosofia francesa contemporânea, que todo mundo havia lido Bergson. Com este livro de Bianco podemos compreender melhor o como e o porquê daquela afirmação.
Notas
1 Na Introdução várias páginas são dedicadas às devidas considerações e justificativas metodológicas, nas quais as escolhas de certos instrumentos e objetos de análise é explicada — como, por exemplo, a forma pela qual textos bergsonianos são introduzidos na composição de programas, disciplinas, discussões, etc. Do ponto de vista de alguém interessado na minuciosa reconstrução sistemática da obra de um autor, tais justificativas podem não parecer convincentes de saída. Cabe ressaltar, no entanto, que o desenvolvimento do livro deixa bastante claras as dinâmicas de funcionamento do “campo filosófico” relevantes para o assunto, aí inclusas suas tensões e transformações em um período de muita reviravolta política e efervescência cultural, de modo que o “retrato de grupo” resultante possui uma notável densidade histórica, com a devida descrição da trama teórica envolvida.
2 Cf Bianco, G. Experience vs. Concept? The Role of Bergson, in Twentieth-Century French Philosophy, in: The European Legacy, vol. 16, n. 7, p. 855-872, 2011.
Herivelto P. Souza – Professor do Departamento de Filosofia UnB.
Conhecimento e imaginário social – BLOOR (TES)
BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. Tradução de Marcelo do Amaral Penna–Forte. São Paulo: Editora Unesp, 2009, 300 p. Resenha de: SPIESS, Maiko Rafael. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.8, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2010.
Em diversas áreas do conhecimento, existem obras clássicas que são amplamente reconhecidas e discutidas, e cuja importância e influência persistem após muitos anos de sua publicação original. O livro Conhecimento e imaginário social, de David Bloor, lançado originalmente em 1976, é certamente uma destas obras. Desde seu lançamento, este livro – curiosamente, muitas vezes mais comentado do que propriamente lido – é considerado como uma das principais portas de entrada para a então nascente sociologia do conhecimento científico, que, sob a influência de pensadores como Mannhein, Kuhn e Wittgenstein, possibilitou a análise da produção científica através de uma perspectiva distinta da tradição mertoniana. De fato, a partir do marco simbólico representado pela obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (1962), o foco de análise sociológica sobre a atividade científica foi sendo gradativamente alterado: ao invés da investigação sobre os mecanismos de interação e as normas internas dos cientistas, a sociologia passou a investigar também o próprio ‘conteúdo’ da ciência. Em outras palavras, a atividade científica passou a ser analisada como o resultado de determinadas práticas sociais específicas, mas não privilegiadas ou intrinsecamente distintas das demais atividades humanas e, portanto, um objeto passível de análise sociológica (Knorr-Cetina & Mulkay, 1983). Neste sentido, Conhecimento e imaginário social contribuiu fundamentalmente para o processo de consolidação desta abordagem ao conhecimento científico.
De fato, na ocasião do lançamento da segunda edição em inglês do livro, em 1991, a possibilidade de análise social a respeito da ciência já havia se institucionalizado, resultando na emergência de um prolífico campo multidisciplinar, conhecido internacionalmente como Science and technology studies.1 Neste contexto, os leitores de Conhecimento e imaginário social eram sociólogos, filósofos, historiadores, antropólogos e até mesmo cientistas de áreas exatas e aplicadas, que compunham este campo de estudos e reconheciam a obra de Bloor como uma das principais inspirações para sua área de atuação. Sobretudo, convém salientar que os quatro princípios estabelecidos para o ‘programa forte da sociologia do conhecimento’ (causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade), compartilhados pelos colaboradores de Bloor na ‘Escola de Edimburgo’, e delineados no primeiro capítulo do livro, influenciaram, direta ou indiretamente, diversos autores seminais deste campo, tais como Harry M. Collins e até mesmo Bruno Latour. Assim, dado o contexto de seu surgimento e sua influência posterior, torna-se impossível negar o alcance e importância desta obra.
Por conta de seu conteúdo e ineditismo, a edição lançada recentemente pela Editora Unesp, com tradução de Marcelo do Amaral Penna-Forte, serve tanto ao leitor brasileiro das áreas de filosofia e epistemologia, quanto ao leitor familiarizado com os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Trata-se de uma obra instigante (mas também um tanto árdua para leitores menos familiarizados com certos debates filosóficos), que se dedica principalmente à construção da legitimidade da análise sociológica do ‘conteúdo’ do conhecimento científico, justamente através da descrição daquilo que o autor chama de ‘programa forte’, e de sua aplicação aos casos mais extremos possíveis: a ‘lógica’ e o ‘conhecimento matemático’, ambas disciplinas consideradas exemplos de objetividade e neutralidade.
O livro está dividido em três grandes partes. A primeira parte, composta pelos quatro capítulos iniciais, refere-se ao programa forte da sociologia do conhecimento científico, seus preceitos, fundamentos e sua relação com a filosofia da ciência e também com as demais disciplinas científicas. Nestes primeiros capítulos, o autor procura demonstrar que, para além da superação das acusações de ‘idealismo’ e ‘subjetivismo’, o sucesso da sociologia do conhecimento científico está relacionado, de fato, com a adoção de uma postura científica tradicional, incorporando “os mesmos valores assegurados em outras disciplinas” (p. 21).
Aparentemente, Bloor estava consciente das possíveis consequências desta postura de ‘estudo científico da ciência’: ele reconhece que a ideia de uma sociologia da ciência pode parecer uma heresia, ou um ataque à ciência moderna, e sugere que a postura tradicional dos cientistas, de ausência total de questionamentos sobre a ciência, assemelha-se à manutenção da sacralidade do conhecimento religioso, conforme estudado por Durkheim. A aura quase impenetrável destas formas de conhecimento deve ser mantida por seus praticantes, sob pena de a investigação sistemática de seu funcionamento acabar com seu caráter privilegiado. Em especial, para o autor, esta postura de preservação da ciência é justamente a causa do ocultamento da influência dos demais fatores sociais sobre a produção científica.
Apesar dos possíveis ataques e críticas de cientistas e filósofos, Bloor insiste que
A poderosa imagem de Durkheim pode ser empregada com a suposição de que, quando pensamos sobre a natureza do conhecimento, o que estamos fazendo é, indiretamente, refletir sobre os princípios segundo os quais a sociedade é organizada. (p. 85)
Desta maneira, é possível concluir que se todo conhecimento diz algo a respeito da sociedade onde ele foi criado, então o conhecimento religioso e o conhecimento científico, ou as crenças ‘corretas’ e ‘erradas’ podem ser consideradas de modo ‘simétrico’, pois possuem valor explicativo semelhante:
O mundo pode ser povoado por espíritos invisíveis em uma cultura e por partículas atômicas sólidas e indivisíveis (mas igualmente invisíveis) em outra (p. 70).
Em outras palavras, este tratamento simétrico exposto acima e a busca pela ‘causalidade’ do conhecimento científico permitem construir uma perspectiva em que a disciplina sociológica e os fatores sociais não sejam aplicados apenas para explicar os erros e distorções no conhecimento científico, mas principalmente para compreender a determinação do contexto social sobre as descobertas e enunciados científicos, o papel da natureza e da experiência empírica no processo de construção consensual da ‘verdade’, e até mesmo as condições para a existência do próprio conhecimento sociológico.
Uma vez expostas estas premissas do programa forte, a segunda parte da obra apresenta uma análise do conhecimento matemático, procurando identificar diversos aspectos da influência social em seu conteúdo. O quinto capítulo inicia-se apresentando a ideia da autoridade moral imposta pelo caráter autoevidente e persuasivo dos enunciados e sequências lógicas da matemática. A partir disso, procura desconstruir esta autoridade, discutindo a ‘natureza’ das construções matemáticas, opondo e reordenando as ideias de pensadores como Mill e Frege, de modo a agrupar argumentos que possibilitem identificar os diversos elementos de causalidade do conhecimento matemático (p. 160).
No capítulo seguinte, Bloor expande esta perspectiva, discutindo a ideia de que pode existir “variação na matemática assim como há variação na organização social” (p. 163), utilizando-se de exemplos de ‘matemática alternativa’, tais como o estilo cognitivo diferenciado da matemática grega antiga (p. 167) ou as condições sociais que permitiram o surgimento da noção dos números irracionais (p. 184). Com isso, afirma que existe a possibilidade de variações no pensamento matemático, que podem ser explicadas através de causas sociais, ao mesmo tempo em que nega a existência de uma realidade matemática definitiva, exterior aos indivíduos. Este raciocínio se aprofunda no capítulo sete, dedicado ao processo de ‘negociação’ da lógica matemática, especialmente em relação aos contra-exemplos e processos de construção de provas de determinados teoremas. Por exemplo, ao utilizar-se da análise de Lakatos sobre o teorema dos poliedros de Euler (p. 219), Bloor demonstra o caráter negociado das definições matemáticas:
A invenção de novas ideias de prova ou de novos modelos de inferência pode alterar radicalmente o significado de um resultado lógico informal ou matemático informal. (…) Essa abertura à invenção e negociação, com todas suas possibilidades de reordenar a atividade matemática anterior, significa que qualquer formalização pode ser subvertida. Ou seja: quaisquer regras podem ser reinterpretadas e desenvolvidas de novos modos (p. 228).
O capítulo oito apresenta sinteticamente as conclusões decorrentes das reflexões teóricas e dos exemplos empíricos apresentados: inicialmente, Bloor insiste no caráter socialmente determinado do conhecimento, da lógica e da noção de objetividade. O conhecimento é concebido, afinal, como conjectural e relativo, tão subordinado ao contexto social de sua produção, quanto à realidade material que ele analisa. Além disso, o autor reafirma a necessidade de associar as ciências sociais, tanto quanto possível, ao método das ciências tradicionais; afinal, a ciência é a “nossa forma de conhecimento” (p. 240), e somente assim a sociologia do conhecimento poderia encontrar seu devido lugar entre as demais ciências.
Finalmente, na terceira parte do livro (apresentada na forma de posfácio), Bloor analisa algumas das críticas à primeira edição da obra, notadamente em relação às acusações recorrentes sobre a ingenuidade, idealismo, imparcialidade do programa forte. Sem grande surpresa, Bloor indica que muitas das críticas são baseadas em entendimentos incorretos a respeito das teses do livro, decorrentes principalmente da resistência generalizada ao processo de dessacralização da ciência, possivelmente decorrente das aplicações do programa forte. De modo significativo, o autor volta-se para a própria obra para defendê-la, tornando o posfácio uma parte interessante e historicamente relevante, mas realmente dispensável para a compreensão geral das teses do livro.
Em relação à edição brasileira, o projeto gráfico é agradável e a tradução é fiel ao tom original da escrita de Bloor. Todavia, é necessário ressaltar a existência de alguns poucos erros de tradução e digitação como, por exemplo, na página 131 onde se lê “Questão mais controversa é se a sociologia pode atingir o âmago do conhecimento sociológico [sic, grifo nosso]”, quando na realidade o original refere-se ao conhecimento matemático. 1
Em linhas gerais, para o leitor brasileiro contemporâneo, Conhecimento e imaginário social é uma obra importante para a compreensão da emergência e consolidação de uma área especializada das ciências humanas, os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Mais especificamente, para o leitor pouco familiarizado com este campo, ou para aqueles que abordam a questão através da filosofia ou da matemática, trata-se de um livro desafiador, que faz jus às ciências exatas, ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas particularidades e inconsistências internas, que normalmente são obscurecidas pelas reconstruções históricas de seus próprios praticantes.
Notas
1 No Brasil, este campo ficou conhecido como “Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia” (ESCT).
2 “A more controversial question is whether sociology can touch the very heart of mathematical knowledge” (Bloor, 1991, p. 84).
Referências
BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. [ Links ]
KNORR-CETINA, K; MULKAY, M. Introduction: Emerging Principles in Social Studies of Science. In: KNORR-CETINA, K; MULKAY, M (Ed.). Science Observed. Perspectives on the Social Study of Technology. Sage Publications: London/Beverly Hills/New Delhi, 1983. [ Links ]
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. [ Links ]
ROOSTH, Sophia; SILBEY, Susan. Science and Technology Studies: From Controversies to Post-Humanist Social Theory. In: TURNER, Bryan S. The New Blackwell Companion to Social Theory. London: Blackwell Publishing Ltd, 2009. [ Links ]
Maiko Rafael Spiess – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: spiess@ige.unicamp.br
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