Covid-19, Sociedades e Tempo Presente / Cadernos do Tempo Presente / 2020

Vivemos tempos terríveis. Tempos sombrios, dias entristecidos. Em várias partes do Mundo, ruas, avenidas e praças desertas, escolas fechadas, hospitais lotados. O advento da pandemia de covid-19 promoveu mudanças bruscas na rotina de diferentes povos. De repente, até mesmo ritos fúnebres precisaram ser modificados. A resposta a um mal comum, no entanto, foi diversificada.

Como se cada país pretendesse, às pressas, encontrar uma saída, teve início uma corrida desenfreada por vacina, por paliativos e medicamentos. Junto com tal esforço, uma série de informações desencontradas ascendeu também. Uma inesperada onda negacionista se manifestou e procedimentos de profilaxia foram menosprezados por líderes políticos em diferentes lugares. O pedido por isolamento social, a necessidade de manter distância e proteger a si para também salvar os outros foi ridicularizada, atacada e inesperadamente desobedecida a partir de discursos inflamados de chefes de Estado como Donald Trump e Jair Bolsonaro.

A covid-19 se configura como o maior desafio à humanidade nas primeiras décadas do Século XXI. Em meio à tragédia, um grupo de intelectuais se coloca para oferecer reflexões iniciais sobre os desdobramentos da pandemia pelo Globo. O dossiê aqui apresentado reúne contribuições de pesquisadores de diferentes lugares: da Argentina à Alemanha, da Espanha ao Oriente Médio, chegando ao Brasil, o dossiê contém reflexões de pesquisadores, eles mesmos testemunhas, sobre a história em movimento de uma tragédia mundial.

Abrindo a edição, Karl Schurster e Michel Gherman nos provocam com a pergunta: Como Lidar com os Fascismos Hoje? Os autores analisam as práticas discursivas e o agir político dos variados tipos de fascismo no tempo presente. Refletindo sobre a instrumentalização política da pandemia, e partindo da crise das instituições democráticas e do avanço de políticas da chamada direita radical, Schurster e Gherman buscam compreender quais as características desse “novo” fascismo e como ele se desenvolve, utilizando para isso o campo teórico clássico e contemporâneo e a metodologia comparativa. O itinerário do texto os leva a problematizar categorias como conspiração, negacionismo, negação da alteridade, guerra permanente e disseminação do ódio como fundamentais para o “novo” fenômeno político e histórico.

Em seguidaFrancisco Carlos Teixeira da Silva analisa de que maneira a “novilíngua bolsonarista”, em clara inspiração Orwelliana, se aplica à covid-19, empacotada num mesmo molde de padronização que já vinha se aplicando à caracterização da homossexualidade e da pobreza. Normalizando a violência e naturalizando o desumano, a novilíngua bolsonarista é utilizada no cotidiano de tortura e violência sofridas pelos “judeus” do bolsonarismo e na construção do perfil do líder da extrema-direita brasileira. Sendo assim, observa o autor, a partir da violência dispensada aos homossexuais e estabelecendo um padrão, é construído o paradigma para a morte por covid-19 no Brasil.

Lorena López Jáuregui propõe um glossário da pandemia de covid-19 a partir da língua alemã. A autora procura explicar o contexto germânico nos últimos quatro meses, refletindo sobre a crise instalada na Alemanha, lembrando que o país está em estado de emergência nacional desde março de 2020, devido à pandemia. Jáuregui léxico discute como a crise expressa a reação social local a esse problema global e nela as palavras tornam-se, então, uma expressão em mutação.

Emmanuel-Claude Bourgoin Vergondy, Óscar Ferreiro Vázquez e Ramón Méndez González abordam a Espanha diante da pandemia de covid-19, contemplando a evolução da situação de emergência, bem como as repercussões em diferentes áreas da sociedade. Em seu texto, o trio de pesquisadores observa como a comunidade internacional reagiu de maneira irregular, acreditando que algo assim não seria mais possível no século XXI, o que deixou claro que nenhum país está adequadamente preparado para ameaças biológicas fora das estruturas conhecidas.

No artigo El Consejo de Cooperación de Estados Árabes del Golfo en el marco de la pandemia de COVID-19: cooperación sanitaria versus tensiones en el ámbito político, Ornela Fabani levanta como problema a situação do surgimento da pandemia de covid-19 como uma nova ameaça, de natureza não tradicional, que coloca em xeque a segurança dos Estados do Golfo. Fabani analisa a resposta do bloco ao surgimento do surto do novo coronavírus. Bruno Sancci analisa a agenda política e econômica de uma Argentina em crise, desafiada pelo novo coronavírus. Conforme Sanci, a quarentena e o momento que vivem os argentinos agem como catalisadores das tendências relacionadas à própria estrutura da sociedade argentina.

Fechando o dossiê, Ian Kisil Marino, Pedro Telles da Silveira e Thiago Lima Nicodemo, refletem sobre os impactos das tecnologias digitais nas formas de arquivamento contemporâneo e apresentam a perspectiva de atuação elaborada no âmbito do projeto Memória Covid-19 Brasil, através do trabalho conjunto dos integrantes do Centro de Humanidades Digitais IFCH-UNICAMP e do projeto DéjàVu, da mesma instituição.

Por fim, Liliane Costa Andrade oferece a resenha do livro “O Cinema vai à Guerra”.

Em tempos de pandemia, os Cadernos do Tempo Presente se apresentam para colaborar no esforço de entender a tragédia. Vivemos tempos terríveis, sim. Os textos aqui contidos significam o esforço em oferecer interpretações, sugerir caminhos e, de alguma forma, poder nos ajudar para que a travessia por dias tão tristes seja um pouco menos dolorida.

Os Editores.


Editores. [Covid-19, Sociedades e Tempo Presente]. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, v.11, n.1, 2020. Acessar publicação original

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Rios e Sociedades / Revista Brasileira de História / 2019

Movimentos dos rios / movimentos da História

Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas.

Heráclito, fragmento 12, 2012, p. 47.

A relação estreita entre o desenrolar da história humana e os movimentos das águas na superfície terrestre, especialmente os movimentos dos rios que cruzam os continentes para além dos espaços litorâneos, pode ser pensada, de início, por meio de algumas poderosas metáforas. Heráclito de Éfeso, no século VI a.C., usou o rio como imagem da história em seu sentido mais amplo: o próprio fluxo da existência. A renovação permanente das águas do rio, que ao mesmo tempo persiste como uma unidade definida pelas suas margens, indica o jogo complexo entre mudança e continuidade que pode ser observado no acontecer do mundo. Milênios mais tarde, em seu livro clássico, publicado em 1946, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Fernand Braudel também usou o movimento das águas como metáfora para os diferentes níveis de profundidade em que se pode analisar a História, apresentando os “acontecimentos” como “cristas de espuma levantadas pelo poderoso movimento das marés” (Braudel, [1946]1995, p. 25).

Essas metáforas, assim como várias outras que poderiam ser mencionadas, adquirem um sentido humano concreto nas inumeráveis situações em que sociedades interagiram de maneira intensa com sistemas fluviais, de modo que estes últimos se tornaram agentes importantes para definir a localização geográfica e o próprio devir da vida cultural, social e econômica. Pensando apenas no mundo contemporâneo, pode-se observar como a proximidade e a relação intensa com rios de tamanho significativo ou, em sentido mais amplo, com bacias hidrográficas, estabeleceram padrões recorrentes no desenvolvimento de grandes cidades, de complexos agrícolas (em grande parte dependentes de obras de irrigação) e de estruturas industriais (que se valem dos rios para construir intrincados fluxos e metabolismos socioambientais que passam pela entrada constante de matéria e energia e pela saída de produtos mercantilizáveis e dejetos poluentes). Além dos exemplos acima, poderiam ser mencionados inúmeros outros casos históricos em que assentamentos humanos, dinâmicas de transporte, movimentos de lazer e turismo, expressões culturais e artísticas e crises de saúde pública, entre outros, passaram por uma interação aturada com sistemas fluviais.

No caso do território brasileiro, foco do presente Dossiê, é importante ressaltar que não se pode entender a formação da sociedade nacional, em sua grande diversidade, sem levar em conta o espaço continental onde o país foi construído, marcado por enormes e complexas redes fluviais. A vida social aqui existente, em sua variedade geográfica, econômica e cultural, interagiu de maneira acentuada com esse movimento incessante das águas, seja em termos de mobilidade, de processos de territorialização, de práticas culturais ou de dinâmicas de exploração econômica. Os rios também estiveram muito presentes nos conflitos armados e nas disputas por domínio político regional, assim como na própria construção objetiva do Estado nacional e de suas instituições. Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país, inclusive nos seus espaços litorâneos.

Apesar da existência de farta documentação sobre o mundo dos rios em diferentes países, além da sua presença marcante em inúmeras descrições da vida social em diferentes latitudes, a atenção específica e explícita ao tema fluvial por parte da historiografia foi relativamente modesta até as últimas décadas. Em meados do século XX, no entanto, foi possível observar um esforço de inovação no recorte dos objetos de análise histórica, para além daqueles baseados em países e regiões definidos segundo um critério essencialmente político. Dentro dessa abertura, onde se situa o recorte da Zona da Mata nordestina como objeto de análise por Gilberto Freyre em 1937, ou do Mar Mediterrâneo por Fernand Braudel (no livro já citado de 1946), um importante precedente foi estabelecido por Lucien Febvre e Albert Demangeon com a publicação em 1935 de seu livro O Reno: Problemas de História e de Economia. Ironicamente, no entanto, uma iniciativa semelhante foi realizada quase ao mesmo tempo pelo escritor e jornalista Emil Ludwig, que em 1937 publicou um livro sobre a história de vida do rio Nilo (Ludwig, 1937). É natural, porém, que a obra de Febvre, por apresentar uma densidade de pesquisa bem mais sólida, tenha marcado com muito mais relevância a cena historiográfica. É certo que o trabalho foi escrito com uma clara perspectiva antropocêntrica, procurando descartar qualquer vestígio de determinismo geográfico. A ideia central é a do rio forjado pela história humana, mais do que pela natureza. O foco são as questões político-econômicas, servindo o rio como uma espécie de espelho geográfico para pensar, por exemplo, a transformação das fronteiras nacionais na Europa.

No período mais recente, já sob influência da nova história ambiental que emergiu a partir da década de 1970, a literatura histórica específica sobre os rios cresceu muito, tanto em termos quantitativos quanto no aspecto da diversidade temática. Não seria o caso de resumir essa literatura no curto espaço desta Apresentação.[1] De toda forma, uma tendência que se pode ressaltar na literatura recente, mesmo que de maneira muito geral, é a de considerar os rios em si mesmos, na sua materialidade biofísica e sociotécnica. Ou seja, ir além da visão do espelho exógeno que serve mais que tudo para observar diferentes aspectos da vida social. Os rios, nessa perspectiva, são introduzidos no corpo da história, nos seus movimentos endógenos. A materialidade dos rios, incluindo suas transformações ao longo da história, expressa em si mesma a rede de interações sociais, tanto culturais quanto tecnoeconômicas, que com ela vem interagindo. Essa mesma materialidade, porém, inclusive nos seus aspectos biofísicos e ecológicos, participa e influencia no destino dessa rede complexa (que vem sendo conceituada mediante expressões como sócio-natureza ou devir biocultural). Um trabalho de grande influência, que abriu importantes horizontes dentro dessa nova perspectiva, foi o livro de Richard White The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River (White, 1995). Nesse livro, o rio Columbia é visto como uma paisagem híbrida construída pela natureza e pelas diversas intervenções sociotécnicas e culturais ao longo do tempo. A materialidade do rio, além disso, expressa as diferenças de concepção e de interesse dos vários atores sociais que com ele interagiram, tornando-se ao mesmo tempo um fenômeno material e um espaço em disputa.

Em que momento os historiadores se debruçaram sobre a história das intricadas relações entre rios e populações no Brasil? Talvez, uma historiografia muito centrada no litoral e na sua oposição ao sertão, como matriz fundante de uma ideia de nação (notadamente, a partir de finais do século XIX), tenha subestimado essa temática. De toda forma, uma historiografia mais explícita e substantiva com relação ao tema dos rios começou a emergir no país em período recente, na virada para o século XXI – o que não significa dizer que não existia nada de relevante no passado. Ao contrário, existe uma interessante herança intelectual a ser redescoberta nesse campo. É possível encontrar, em alguns historiadores do século XX, importantes análises indiretas que, sem tomar os rios como eixo do recorte analítico, perceberam muito bem a sua presença marcante em diferentes momentos da história do país. Cabe destacar, por exemplo, as fortes descrições de Gilberto Freyre na década de 1930, no livro já mencionado (Freyre, [1937]2004), sobre as dinâmicas de envenenamento dos rios do Nordeste pelos resíduos das usinas de açúcar. Ou então, de maneira ainda mais notável, os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, nas décadas de 1940 e 1950, sobre a centralidade da navegação fluvial nos movimentos de exploração dos sertões do Centro-Oeste partindo de São Paulo. O livro Monções, de 1945, em especial, apresentou elegantes e inovadoras análises sobre as relações entre rios e sociedades naquele contexto, particularmente pelo conceito de “estradas móveis”, que foram pensadas, de maneira próxima das tendências mais recentes, em sua própria materialidade, considerando detalhadamente as corredeiras e cachoeiras, os períodos de cheias etc. Ainda em 1948, inspirado pelo tema da expansão paulista e pelo trabalho de Emil Ludwig, o poeta Humberto de Mello Nóbrega publicou um livro que recortava de forma inovadora, ao menos no contexto nacional, um rio específico como objeto de análise histórica. Apesar de não ser uma análise profunda, o livro História do Rio Tietê (Mello Nóbrega, [1948]1981) é bastante abrangente e informativo, discutindo diferentes aspectos da relação entre a sociedade paulista e aquele rio – desde os esforços para promover sua navegação até, por exemplo, seu papel como inspirador de arte e literatura. Na formulação do próprio autor, porém, o rio é visto “ora como cenário, ora como comparsa”, já que o protagonismo é sempre do homem.

Nas décadas seguintes, alguns ensaios foram publicados sobre rios emblemáticos, como no caso do São Francisco e do Amazonas,[2] mas trabalhos situados no quadro de uma historiografia acadêmica, com maior elaboração teórica e metodológica, só irão aparecer nas portas do século XXI. É o caso do belo trabalho de Victor Leonardi sobre o complexo do rio Negro e suas cidades abandonadas: Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira (Leonardi, 1999); do amplo estudo de Haruf Espindola sobre a ocupação histórica de um importante vale fluvial entre Espírito Santo e Minas Gerais: Sertão do Rio Doce (Espindola, 2005); do estudo de Janes Jorge sobre o rio Tietê na cidade de São Paulo, mostrando a relevância de aproximar história urbana e história fluvial: Tietê – o rio que a cidade perdeu (Jorge, 2006); por fim, da rica e diversificada coletânea organizada por Gilmar Arruda com o título de A natureza dos rios (Arruda, 2008). Esses trabalhos, já participando de um diálogo aberto com a historiografia internacional e com a perspectiva da história ambiental, abriram caminho para o tipo de historiografia profissional e mais rigorosa, apesar da sua variedade de enfoques, que poderemos encontrar nos autores que responderam ao chamado para o presente Dossiê. Uma historiografia que se aproxima da temática dos rios a partir de diferentes dimensões e recortes, explorando as ricas conexões ecológicas, geográficas, socioeconômicas e culturais que podem ser observadas com relação ao mundo dos rios em diferentes momentos e lugares da história do Brasil.

O artigo de André Vasques Vital recupera a história do Território do Acre de princípios do século XX, no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na Amazônia brasileira. Com base em uma discussão com bibliografia recente, o autor discute os limites da agência histórica pensada apenas a partir da ação humana. Seu texto aprofunda uma importante reflexão sobre o papel do rio Iaco, suas dinâmicas de cheias e vazantes e as consequências e imprevisibilidades desse regime na ação humana. Assim, os tumultuosos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos no Território do Acre, depois de sua anexação ao Brasil, ganham novos sentidos também pela atuação (imprevisível muitas vezes) do rio e pelas implicações das dinâmicas fluviais (como o incremento de doenças decorrentes das águas empoçadas). O rio Iaco é aqui uma “coisa-poder”, nas palavras do autor, fundamental para compreender as articulações políticas locais da região.

Ana Lucia Britto, Suyá Quintslr e Margareth da Silva Pereira abordam a transformação da região da Baixada Fluminense entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX. Apoiadas em uma sólida reflexão sobre os rios na historiografia, tanto no campo da história ambiental como no campo da história dos sistemas sociotécnicos, as autoras desvendam como os rios da região foram alvo de diversas formas de intervenção ao longo do tempo. Mais ainda, examinam os impactos dessas intervenções desde finais do século XIX. Trata-se de entender como se articularam as dinâmicas fluviais com as dinâmicas sociais, entendendo os rios como “sistemas tecnológicos e ambientais”. É a partir de meados do século XIX, com a introdução da ferrovia, que a região e seus rios sofrem transformações significativas. De região rica passa a ser considerada área insalubre e improdutiva, o que ensejará, nas primeiras décadas do século XX, diversas intervenções, no sentido de sanear a região e torná-la produtiva. Esse processo, levado a cabo pelo Estado, dá ensejo ao surgimento de uma “hidrocracia” responsável pelas políticas de intervenção nos rios da Baixada Fluminense.

Gabriela Segarra Martins Paes analisa o mito dos negros d’água do rio Ribeira de Iguape, na região do Vale do Ribeira. Trata-se de recuperar e compreender as matrizes culturais e os significados atribuídos pela população da região à existência desses seres encantados aquáticos geralmente identificados com um rapaz negro de baixa estatura, muitas vezes com pés e mãos de pato. O mito relaciona-se com a presença de africanos escravizados na região, desde o século XVII, e com as modernas comunidades remanescentes de quilombo. A autora aprofunda a sua reflexão, mostrando a relação histórica entre os escravizados da região do Vale do Ribeira e a África Centro-Ocidental, onde estavam enraizadas crenças acerca de espíritos das águas. Revela assim os diversos pontos em comum entre as crenças dos dois lados do Atlântico, como o local de habitação dos seres encantados e os temas do sequestro de mulheres, do sentido ventura-desventura e da relação e interferência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Na realidade, o mito dos negros d’água remete ao tráfico negreiro e à escravidão. De fato, envolve a travessia de águas e o renascimento num novo mundo (muitos negros d’água teriam sido capturados e gerado descendência na região), mas também a violência (seus pés e mãos eram cortados), o aprendizado de uma nova língua, a relação entre seres diferentes e o uso do sal associado ao batismo. Enfim, para Gabriela Paes, o enraizamento do mito na região decorre da sua capacidade de “servir de metáfora” da experiência da viagem atlântica e da própria escravidão.

O texto de Henri Acselrad retoma as experiências dos atingidos pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará, nos anos 1970 e 1980. O barramento do rio Tocantins implicou não somente a inundação de uma imensa área para conformação do lago da usina. Teve, de fato, inúmeras implicações do ponto de vista ambiental (como a decomposição da matéria orgânica que ficou debaixo da água), por ensejar o aparecimento de pragas de mosquitos, por exemplo, mas igualmente do ponto de vista social. Inúmeros grupos populacionais que havia séculos viviam no e do Tocantins tiveram sua vida alterada, sendo deslocados para outros espaços ou para novos espaços criados pelo barramento. Essas populações heterogêneas, que viviam ao longo do curso do rio, mobilizaram-se contra autoridades públicas e empresariais, ligadas ao empreendimento, para denunciar os desmazelos, a negligência e a violência que significou esse processo. O texto, entretanto, não examina exatamente esses movimentos, mas sim, de maneira muito original, o processo de produção escrita dessas populações atingidas, por meio de manifestos, cartas, boletins e cordéis. A produção e circulação de impressos por parte de uma população vinculada majoritariamente à tradição oral permitiu transformar “um caso em uma causa”. Isso significou o aparecimento de um “novo autor” da história do rio – os atingidos pela barragem. O escrito produzido e publicado pelos diversos grupos afetados permitiu, assim, não somente a produção de um registro sobre a memória do rio Tocantins, mas também a produção de um registro para a ação. A força do “artefato impresso” reside na duração que lhe permite ser “recebido e reconhecido”. Nesse sentido, os impressos produzidos pelos atingidos pela barragem do rio Tocantins fizeram parte de suas lutas e serviram como forma de rememoração dessas próprias lutas.

Iane Maria da Silva Batista e Leila Mourão Miranda retomam a questão dos rios da Amazônia, mas a partir de uma perspectiva distinta do texto de Acselrad, embora se referindo ao mesmo contexto. As autoras partem de uma reflexão sobre os usos e representações das águas e de como essas formas se transformam ao longo do tempo. Assim, notadamente a partir da segunda metade do século XX, os rios se reconfiguram em recursos naturais por parte do Estado e de interesses privados. Disso deriva, desde os anos 1950, o seu reconhecimento para os planos de desenvolvimento da região, principalmente, relacionados aos projetos de exploração das riquezas minerais da Amazônia. Esse processo de comoditização da água, por meio da construção de usinas hidrelétricas na região amazônica, fez os rios se tornarem lugares de “hidronegócios”. Ora, argumenta-se no texto, esse tipo de representação e uso da água dos rios da região vai de encontro a outras relações, construídas secularmente pelas populações da região. Mais ainda, a transformação da água dos rios em mercadoria tem causado enormes impactos socioambientais. As implicações da reconfiguração da água dos rios em mercadoria nos obrigam, desse modo, a repensar a relação que construímos com a água nas últimas décadas.

Haruf Salmen Espindola, Eunice Sueli Nodari e Mauro Augusto dos Santos exploram um acontecimento recente, um desastre, ocorrido há quase 4 anos. Trata-se do rompimento da barragem de Fundão, que pertencia a dois grandes grupos de exploração mineral: as empresas Vale S.A. e BHP Billinton. Para os autores, é preciso compreender o termo desastre numa perspectiva ampla, uma vez que a fatalidade significou não somente o rompimento da barragem, mas uma série de acontecimentos que envolveram e ainda envolvem áreas rurais, áreas urbanas, rios, reservas e a zona costeira, impactando a vida de seres humanos, da flora e da fauna. O artigo revela a complexidade das consequências do desastre, uma vez que os efeitos (e as ações mitigadoras) foram diversos ao longo de toda a área afetada. O texto introduz, também, a noção de “incerteza” para se pensar a constatação de que a mineração industrial representa um “grande risco” (não há aqui como não pensar no recente caso do desastre de Brumadinho). A reflexão do texto finalmente aborda o problema da diversidade de narrativas sobre o acontecimento, envolvendo diferentes grupos e instituições, muitas vezes contraditórias entre si, ensejando o próprio aumento das incertezas.

Por fim, o texto de Cristina Brito examina, por meio dos rios, a relação das sociedades com os manatis, na América colonial. A partir de uma reflexão sobre o lugar dos rios, a autora busca compreender a relação histórica com esses animais, inclusive na sua dimensão simbólica. Para ela, os manatis (como os rios) se tornaram metáforas dos “ritmos naturais e sociais”. Assim, a autora examina diversas representações textuais e imagéticas desses animais, produzidas no período colonial, mostrando como a chegada dos europeus à América impactou as populações dos manatis e como se reconfiguraram as representações sobre eles (embora estas não tenham sido muito abundantes). Discutem-se no texto até mesmo os múltiplos usos e representações indígenas sobre os manatis, com base na documentação produzida por europeus. A reflexão de Cristina Brito insere-se numa discussão sobre a relação entre o mundo humano e o não humano. Trata-se aqui de frisar o próprio protagonismo desses animais aquáticos no seu percurso de interações com as sociedades indígenas e com a sociedade colonial. Segundo a autora, os rios (onde habitavam os manatis) podem ser pensados como lugares de confluência de interações entre seres humanos e entre eles e os animais, enfim, entre “pessoas e a natureza”.

Rio poder; rio saneado; rio metáfora; rio protesto; rio negócio; rio desastre; rio animais. Embora referindo-se ao mesmo objeto – a história dos rios e sua relação com as sociedades -, os enfoques apresentados pelos textos deste Dossiê não somente são muito diversos, mas igualmente dialogam com campos de conhecimento distintos. Mais ainda, tratam de espaços / tempos múltiplos: a América colonial, os vários rios da Amazônia, do século XIX ao século XX, o rio Ribeira de Iguape e a África, a Baixada Fluminense da virada do século, o rio Doce de “ontem”. O que articula as discussões presentes neste Dossiê é certamente a necessidade de incorporar os rios – na sua agência, nas suas representações, na sua simbologia, nos impactos da ação antrópica sobre eles, enfim, na sua complexidade – à reflexão dos historiadores. É que, para um país composto por uma intrincada rede de milhares de rios, oficialmente agrupados em 12 bacias hidrográficas, não há como esquecer que, embora em grande parte ignorada, a “fluvialidade” é parte fundamental da formação histórica do Brasil.

Notas

  1. Uma amostra bastante significativa, reunindo historiadores de vários países, pode ser encontrada em MAUCH; ZELLER, 2008.
  2. Vale mencionar, por sua qualidade, trabalhos como O Médio São Francisco(LINS, 1952), O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia (TOCANTINS, 1952) e Jângala: Complexo Araguaia (BERNARDES, 1994). Em período mais recente, é importante citar a informativa e interessante trilogia, com bastante material histórico, publicada pelo jornalista Marco Antônio Coelho: Rio das Velhas: memória e desafios (COELHO, 2002); Os descaminhos do São Francisco(COELHO, 2005) e Rio Doce: a espantosa evolução de um vale (COELHO, 2011).

Referências

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José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jpadua@terra.com.br http: / / orcid.org / 0000-0002-4524-5410

Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de História, Belém, PA, Brasil. E-mail: rafaelch@ufpa.br http: / / orcid.org / 0000-0003-1150-5912


PÁDUA, José Augusto; CHAMBOULEYRON, Rafael. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.81, mai / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Sociedades em fronteiras: abordagens e perspectivas / Fronteiras – Revista de História / 2019

As pesquisas no que tange às fronteiras têm se ampliado de forma significativa na última década, basta uma rápida pesquisa no Catálogo de teses e dissertações da Capes para comprovar isso. O que, entretanto, é a representação de apenas um repositório possível de pesquisa e que reflete, de alguma forma, as pesquisas em curso nos Programas de Pós-Graduação no Brasil.

A ampliação dos estudos sobre fronteiras pode ser identificado como resultado de três fatores, entre outros possíveis, que tenham impactado nessa temática, quais sejam: a ampliação e interiorização dos Programas de Pós-Graduação no Brasil, o que tem estimulado estudos em / sobre regiões fronteiriças de forma muito mais acentuada; as mudanças que envolvem as Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação – TDIC, que tem possibilitado o acesso a documentos escritos, o contato entre pesquisadores da área e uma aproximação maior de pessoas e comunidades a serem investigadas; e, por fim, certamente um dos mais importantes, que é o contexto da constante ebulição das disputas no espaço fronteiriço, e que tem chamado a atenção e se mantido sob os holofotes da mídia internacional por inúmeros fatores que marcam o início do século XXI. Leia Mais

Ciências, Tecnologias, Sociedades / Tempos históricos / 2009

Os dois primeiros termos que conformam a temática do dossiê Ciências, Tecnologias, Sociedades, que corresponde ao volume 13, número 2, da Revista Tempos Históricos, só tão usuais no cenário das sociedades atuais que tendem, ás vezes, a tornarem-se sinônimos da contemporaneidade. De meados do século XIX, quando começa a se esboçar o advento da Revolução Científico-Tecnológica, mais comumente denominada Segunda Revolução Industrial, ao século XXI no qual vivemos ainda em meio as incertezas dos caminhos da chamada Revolução Informacional, ou Terceira Revolução Industrial, o mundo sofreu intensas transformações, comumente creditadas ao avanço das ciências e das tecnologias.

A aplicação das descobertas científicas e das novas tecnologias ensejadas por estas, nos processos produtivos, no combate ás doenças, na produção e conservação de alimentos, na captação, transmissão e distribuição de informações, nas formas e equipamentos de lazer, para ficar em alguns exemplos, parece traçar um caminho inexorável no progresso das sociedades contemporâneas. Porém, se as ciências e as tecnologias contribuem no sentido de melhorar a vida de muitos de nós, não podemos esquecer que elas também servem como instrumento de sustentação de práticas destrutivas, que se servem do conhecimento e do aparato científico-tecnológico- ou dos possíveis usos que se possa fazer dele- para provocar destruição e morte. Bons exemplos disto são as recentes guerras ao terror envolvendo os Estados Unidos da América e nações identificadas por esse contentor e seus aliados, como pertencentes ao eixo do mal. Justificadas pelo uso que se poderia fazer de armas químicas e bacteriológicas, não conseguem esconder interesses expansionistas e a necessidade de domínio estratégico, seja de territórios, seja de matérias-primas fundamentais à sustentação da sociedade de consumo.

Vivemos assim, tempos históricos demarcados pela força social de diferentes ciências e tecnologias, força esta que tanto pode potencializar mudanças positivas, individuais ou coletivas, quanto pode atuar de forma a permanecer conservadora de privilégios, estabilizadora ou mesmo desagregadora. Neste sentido é fundamental a compreensão da historicidade das relações que entrelaçam ciências e tecnologias com as sociedades contemporâneas; os movimentos destas na tentativa de moldá-las e controlá-las para atender interesses diversos e muitas vezes conflitantes; o papel dos sujeitos, das instituições, das práticas, dos procedimentos na constituição dos conhecimentos e sua aplicação. Longe de tomar o partido da ciência e da tecnologia como símbolos do progresso, parte-se do princípio de que estas são produtos da cultura, frutos muitas vezes de disputas e tensões, e como tal são modeladas enquanto teoria e prática.

Tal entendimento parece-nos ser o eixo agregador dos trabalhados aqui apresentados. Deste modo estes, apesar de diferenças em torno de objetos, referências teóricas, metodologias, estilos e ênfases, procuram deslindar e compreender as relações culturais- não desprezando é certo, outras relações como as políticas e econômicas- que marcam emergências, transformações, disputas e impasses, entre produção de conhecimento científico-tecnológico e sociedades em contextos históricos variados.

Quatro artigos formam o dossiê “Ciências, Tecnologias, Sociedades. Foram escritos por autores que, se por um lado espelham o eixo comum da formação nos limites da disciplina histórica, por outro demonstram em seus artigos a diversidade de possibilidades interpretativas que o tema enseja.

O artigo que abre o dossiê “ A ‘Viagem de Aperfeiçoamento Técnico’ de José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara pelas regiões mineiras da Europa central e setentrional (1790-1800) ”, de Alex Gonçalves Varela, apresenta aos leitores uma reflexão a partir de uma documentação pouco conhecida, ou seja, os manuscritos de José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Câmara. Personagens conhecidos na História do Brasil, mais comumente por seus perfis de homens públicos e atuação no período da Independência do Brasil, os autores mostram nos manuscritos estudados uma faceta quase desconhecida: a de estudiosos e pesquisadores do mundo natural. Arregimentados pelo governo português, os ilustrados realizaram diversas viagens pela Europa setentrional e central, num período de dez anos, durante o qual visitaram escolas de minas e regiões mineiras e produziram reflexões sobre a administração das minas e diversos minerais até então desconhecidos. O objetivo de Varela é o de recuperar a História do empreendimento, destacando objetivos, locais percorridos, textos produzidos, desdobramentos para a trajetória dos estudiosos e a importância para o projeto reformista ilustrado político-científico do governo mariano que visava modernizar o Império português.

“Ciência médica e poliomielite no Brasil na primeira metade do século XX”, de André Luiz Vieira de Campos, é o segundo artigo a compor o dossiê. Neste, o autor analisa os dilemas de médicos, cientistas e autoridades sanitárias no Brasil, durante toda a primeira metade do século XX, diante da ameaça da poliomielite, doença infecciosa viral atualmente erradicada no Brasil, mas que ainda hoje é considerada endêmica, em alguns países, pela Organização Mundial da Saúde. O modelo explicativo da doença, hegemônico até o início da década de 1950, fundamentava-se nos métodos e procedimentos da bacteriologia e fora elaborado por Simon Flexner, na década de 1910. Tal modelo, segundo Campos, apresentava muitas fragilidades e, no Brasil, modelos diversos -que combinavam variáveis dos sistemas explicativos da contaminação e da configuração- serviam para explicar a doença e responder à ansiedade coletiva, especialmente em momentos epidêmicos. Tal dilema durou até a década de 1950, quando a bacteriologia elaborou um novo modelo e uma vacina eficaz para a doença.

Moema de Rezende Vergara em seu artigo, ”Ciência e território em uma revista literária nos primeiros anos da República”, o terceiro do dossiê temático, analisa como a questão do território- um dos mitos fundadores da nacionalidade brasileira- foi vista por cientistas e literatos, que escreveram na Revista Brasileira, em um período de instabilidade política, como foi o do início da República. Para a autora, os periódicos científico-literários do final do século XIX são fontes fundamentais para compreender a relação entre público e ciência, pois, muito provavelmente, era através destas publicações que os leitores tomavam conhecimento das atividades dos cientistas, bem como as revistas serviam para que a comunidade científica brasileira em formação soubesse das expectativas da sociedade. Neste sentido, defende que o tema do território nacional é privilegiado por permitir analisar como esta dupla determinação se articulou em um momento matricial do pensamento social brasileiro.

O artigo “Passa(n)do em Revista Polytechnica: na trilha das mulas… os (des)caminhos da modernidade paulista”, de Nelson Aprobato Filho fecha o dossiê, com uma reflexão sobre o processo de implantação e imposição para o país de um modelo tecnológico paulista. Buscando compreender e interpretar tal processo o autor utiliza como fontes, principalmente artigos publicados, no início do século XX, pela Revista Politécnica da Escola Politécnica de São Paulo. O Brasil, para os engenheiros que participaram da revista, era visto como um campo vasto, selvagem e lucrativo. Para eles, tudo estava em latência ou atraso aguardando a força da tecnologia para alcançar o progresso. Consequentemente, os ˙únicos capacitados para assumir semelhante empreitada seriam os engenheiros e a “modernidade” paulista. Contudo, inúmeros elementos rurais e coloniais existentes em todo o Brasil, inclusive em São Paulo, muitas vezes mostravam-se mais fortes do que as modernas tecnologias.

Yonissa Marmit Wadi– Doutora em História; Professora do CCHS e do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE. Pesquisadora do CNPq.


WADI, Yonissa Marmit. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.13, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

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