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Etnicidade e as políticas das identidades nas sociedades Antigas / Hélade / 2017
Etnicidade: cultura e política
De alguma maneira, a Antiguidade ressoa com bastante frequência quando o debate sobre o problema das etnicidades se enuncia. Não tanto pelo viés fonético, por mais que seja impossível dissociar, no plano da etimologia, a forma moderna do conceito do étimo grego que está na base de sua formulação. O vocábulo ἒθνος, a bem da verdade, possui um escopo semântico assaz versátil: pode ser entendido como “raça”, “povo”, “nação” (BAILLY, 1963), como “pessoas que vivem juntas”, “companhia”, “corpo de homens” (LIDDELL & SCOTT, 1996) e como “grupo mais ou menos permanente de indivíduos” e, em alguns casos, “povos estrangeiros”, “bárbaros” (CHANTRAINE, 1977). Em todas as definições, ἒθνος parece se referir a grupamentos humanos (apesar de se referir, também, a animais) com características particulares, capazes de exibir algum tipo de distinção quando comparados a outros. É uma versatilidade inquestionavelmente oportuna e constantemente evocada.
No entanto, para além do plano gramatical, ressoa a memória que se constrói acerca de eventos que, pela lente do mundo contemporâneo, parecem assumir um caráter fundante de diferenças étnicas observáveis tanto em escala regional quanto global. Refiro-me, nesse caso, à lógica sob a qual se opera a bem conhecida dissensão entre Oriente e Ocidente nos termos que Edward Said propõe no clássico Orientalismo (1978): discurso estratégico, politicamente estruturado no marco de um projeto imperialista. Na pista proposta por Kostas Vlassopoulos (2013, p. 1-2), vale recordar a controversa remissão à Batalha de Maratona, ocorrida no verão de 490 a.C., como o evento que teria fundado o longo histórico de embates entre Ocidente e Oriente e que, dentre outras coisas, segundo a leitura rápida de alguns, culminou com o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em Nova Iorque em setembro de 2001. Observe-se, por exemplo, a difícil afirmação de Anthony Pagden, também mencionada por Vlassopoulos:
Maratona marcou o fim da primeira Guerra Greco-Pérsica. Fez descer a cortina do primeiro ato do grande drama trágico de Heródoto acerca do conflito entre Europa e Ásia, entre Gregos e Bárbaros. A partir de então, Maratona passou a ser aceita como um turning point na História da Grécia e, posteriormente, de toda Europa. Foi um momento de resiliência de uma forma política incomum – a democracia – e a confiança dos gregos em sua particular noção de liberdade foi posta à prova e emergiu triunfante (PAGDEN, p. 25).
Não é difícil reconhecer nessa narrativa a célebre e cada vez mais questionada lógica de herança que parece atribuir à Antiguidade – e à Antiguidade Clássica, em particular – toda sorte de legados históricos que amparam um movimento de naturalização de disposições sociais que, por sua vez, seguem insolúveis por força do desejo preclaro de não os solucionar. Resiste, por força de uma disposição frequentemente criticada pelas análises pós-coloniais (e, mais recentemente, pelo “giro decolonial”), a lógica de produzir estereótipos que fundam a imagem de um “bárbaro” tiranizado, escravo de suas paixões, excessivo e indisponível para o diálogo, mais especificamente para o diálogo democrático. Afinal, no mundo contemporâneo, não estamos mais diante dos persas liderados por Xerxes, mas de uma política que toma a História antes como a algema com que se ata as próprias mãos do que como um espaço de problematização para refletir sobre nossos conflitos e colocá-los em perspectiva.
É precisamente pela resistência a um tipo de lógica civilizacional2, marcadamente de caráter Iluminista, que parecia utilizar a cultura como símbolo diacrítico evocado para hierarquizar modos de vida, que o tema da etnicidade – um conceito que o pensamento social abraçou de modo entusiástico principalmente a partir da década de 1970 – propõe entender a cultura não como um fim em si, mas como um elemento politicamente reivindicado. Afinal, “a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto” (CARDOSO, 2005, p. 186). O que está na base, portanto, das recentes análises do fenômeno da etnicidade, são os usos políticos da cultura, e não apenas o caráter fronteiriço que ampara processos de diferenciação social livres de toda sorte de conflito. Há, nesse ponto, um esforço cada vez mais insistente de resistência, no plano teórico e empírico, aos princípios que outrora ligavam perigosamente o conceito à ideia de raça e, portanto, a um viés essencialista, bem como ao primado do subjetivismo por longo tempo explorado a partir da sociologia weberiana. É por esse traçado que se torna menos usual tratar as identidades (em particular, as identidades étnicas) como algo que responde por si, como um objeto ligado aos sujeitos e alheio à influência das estruturas sociais. Pensar etnicidade implica, por princípio, uma reflexão sobre a política das identidades. Afinal, como bem observou Todorov (2010, p. 64), “o bárbaro não é, de modo algum, aquele que acredita na existência da barbárie, mas quem está convencido de que uma população ou um indivíduo não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que ele recusaria resolutamente aplicar a si mesmo”. É precisamente por isso que, ainda segundo o autor, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (TODOROV, 2010, p. 15). Trata-se – insisto – de um fato político culturalmente justificado.
Não sem razão, a proposta do dossiê Etnicidade e as políticas das identidades nas Sociedades Antigas teve uma excelente acolhida. A variedade de povos antigos analisados pelos autores que submeteram suas propostas é um poderoso indicativo para pensarmos a amplitude do problema, as inúmeras possibilidades de abordagem, a diversidade de documentos passíveis de estudo, bem como os métodos que permitem a construção de críticas de inegável qualidade acadêmica. Também indica o caráter contemporâneo da questão, posto que este é o estopim para que nossos interesses e projetos políticos convirjam para o estudo das sociedades históricas.
Notas
2. Como sinalizou Todorov em sua crítica (2012, p. 36), “Barbárie e civilização assemelham-se não tanto a duas forças que lutam pela supremacia, mas a dois polos de um eixo ou a duas categorias morais que nos permitem avaliar os atos humanos particulares”
Referências
Dicionários
BAILLY, A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librarie Hachette, 1950.
CHANTREAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grècque. Paris: Librarie C. Klincksieck, 1963.
LIDDELL and SCOTT’S. An intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.
Bibliografia
CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.
PAGDEN, A. Worlds at War. The 2,500-year struggle between East and West. New York: Random House, 2008.
TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
VLASSOPOULOS, K. Greeks and Barbarians. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).
MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]