Posts com a Tag ‘Sociedade moderna’
O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna – NEUMANN (C-FA)
NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013. Resenha de: PROL, Marques Flavio. O Império do Direito e a liberdade: uma teoria crítica do direito e do Estado. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.21 Jan./Jun., 2013.
Foi publicada em português a tradução do livro O Império do Direito, de Franz Neumann. Escrito em 1936, na Inglaterra, para obtenção do segundo doutorado do autor, sob orientação de Harold Laski, a versão em livro foi publicada cinquenta anos depois, em 1986.
Alemão, Neumann foi advogado trabalhista e do Partido Social Democrata. Ao longo da década de 1920, ainda na Alemanha, escreveu sobre direito do trabalho e direito econômico, e os principais textos do período estão reunidos em duas coletâneas publicadas em italiano.1 Diante da ascensão do nazismo ao poder, em 1933, foi obrigado a se exilar.
Após a estadia na Inglaterra, dirigiu-se aos Estados Unidos, onde iria escrever o livro pelo qual é mais conhecido: Behemoth2, que apresenta um estudo do regime nazista. Nele, Neumann critica o conceito de capitalismo de estado, controvérsia estabelecida com Friedrich Pollock. Foi também nessa época que ele se tornou colaborador do Instituto de Pesquisas Sociais, estabelecido no exílio.3
A publicação de O Império do Direito ilumina uma parte relevante da obra de Neumann.4 Nesse texto, o autor apresenta uma interpretação específica a respeito do direito moderno, do Estado e da sua relação com a liberdade humana. Em termos críticos, essa preocupação com a liberdade talvez possa ser traduzida como interesse pela emancipação, embora Neumann não tenha afirmado isso explicitamente.
O livro apresenta quatro teses distintas a respeito do desenvolvimento do direito moderno. Ele se insere nos principais debates a respeito da natureza do direito, tanto da perspectiva filosófica, com críticas a Schmitt, Kelsen e Austin, como da perspectiva sociológica, com a referência central sendo Max Weber.
Para apresentar a relação estabelecida entre direito moderno e a realização da liberdade, este texto está organizado da seguinte forma: (i) inicialmente, apresento a estrutura geral do livro e suas principais teses; (ii) na sequência, ressalto como o vínculo que o autor estabelece entre direito e democracia permitiria a realização, ainda que parcial, da liberdade. Ainda nessa parte, demonstrarei como Neumann desenvolveu posteriormente sua concepção de liberdade.
1.Estrutura geral do texto e suas principais teses
Neumann divide o seu texto em três partes: ( i ) “introdução e a base teórica”; ( ii ) “soberania e império do direito em algumas teorias políticas racionais (o desencantamento do direito)”; ( iii ) “a verificação da teoria: o império do direito nos séculos XIX e XX”.
Na sequência dessa seção, apresentarei inicialmente o ponto de partida teórico do texto de Neumann, para só então apresentar as quatro teses que o autor defende ao longo do livro.
1.1 Sociologia do direito. Elementos contraditórios do Estado e do direito
O livro discute a relação entre direito, ciência política e economia, razão pela qual a sociologia do direito é o principal ponto de partida para análise. Por sociologia do direito, Neumann entende a compreensão das relações entre direito e a “subestrutura social”5
Afastando concepções meramente econômicas das instituições jurídicas, que reduziriam a subestrutura social do direito a uma análise economicista, Neumann entende que a tarefa central da sociologia do direito é demonstrar como o direito e o Estado possuem tanto um desenvolvimento histórico autônomo enquanto forma específica de ordenação das relações sociais, como um desenvolvi mento condicionado a determinações sociais oriundas da religião, da economia e da política.
Por Estado moderno, Neumann entende “toda instituição socio logicamente soberana” (p. 64). A soberania, por sua vez, corresponde ao poder jurídico mais elevado de determinar normas que valem coercitivamente para todas e todos em um determinado território. Ao afirmar que a soberania é, em última instância, um poder jurídico, Neumann tenta escapar tanto de um reducionismo jurídico, que equacione soberania e direito, como de um reducionismo político-sociológico, que identifique soberania e poder.
Ainda falta, contudo, esclarecer melhor o que o autor entende por direito e por poder. Para ele, o elemento de direito e o elemento de poder contidos em sua definição de soberania e de Estado moderno são contraditórios. Esta é a primeira tese do texto. A soberania absoluta, no sentido do poder irrestrito do Estado para emitir normas de qualquer conteúdo, não se reconcilia com a afirmação histórica de âmbitos de liberdade diante do Estado na forma jurídica (“Império do Direito”).
Para Neumann, a definição de direito deriva da contradição entre esses dois elementos. É por isso que teórica e historicamente percebe-se uma dupla noção de direito: uma política e outra material.
Segundo a noção política, qualquer decisão do Estado seria direito, fosse ela justa ou injusta. O direito e a lei seriam apenas voluntas.
Por outro lado, de acordo com a noção material, “as normas do Esta do são compatíveis com os postulados éticos definidos, sejam postulados de justiça, liberdade ou igualdade, ou qualquer outro” (p. 98).
Ou seja, deve haver identidade entre as normas emitidas pela autoridade estatal e certo conjunto de valores externo ao direito para afirmar que as normas emitidas pelo Estado são “direito”.
A segunda tese do texto deriva dessa primeira. Para Neumann, a justificação secular e racional do Estado e do direito pode ter um aspecto revolucionário sob certas circunstâncias históricas. A superação histórica de justificações do Estado e do direito que se baseavam na religião ou no direito natural fortalece concepções de mudanças do status quo. Essa justificação secular e racional implica que o Estado e o direito “são simplesmente instituições humanas originadas da vontade ou da carência dos homens” (p. 73). Assim, a exigência da noção material de direito de uma justificação independente do direito e do Estado não pode depender senão de argumentos que se referem e são construídos pela própria sociedade.
Neumann então apresenta sua terceira e principal tese: a afirmação histórica e teórica de um Império do Direito garantidor da liberdade tem um efeito desintegrador em uma sociedade baseada na desigualdade (p. 40). A terceira tese é uma especificação da segunda: a justificação secular e racional do Estado e do direito, na modernidade, assume a forma da defesa de um Império do Direito geral. Este Império do Direito expressa o estabelecimento de certas esferas de liberdade em face do Estado. E essas esferas de liberdade permitem que os grupos minoritários ou desprivilegiados de uma sociedade desigual reivindiquem direitos por meio do próprio Império do Direito e de acordo com uma justificação secular e racional. Mas esse processo ameaça as posições de poder estabelecidas e, consequentemente, ou o poder aceita essas demandas ou ele abandona a justificação secular e racional. O exemplo da República de Weimar, mais abaixo, ilustra esse fenômeno.6
1.2 “Desencantamento do direito” e instituições jurídicas
As três teses são desenvolvidas ao longo de todo o texto. A segunda parte do livro apresenta o desenvolvimento da contradição entre soberania absoluta e Império do Direito na obra dos principais pensadores racionais do Ocidente – de Cícero a Hegel. Neumann analisa suas distintas teorias do Estado e do direito para demonstrar como a contradição está invariavelmente presente. Paralelamente, Neumann apresenta como progressivamente ocorre a superação teórica de justificações transcendentais do direito em favor de concepções que se baseiam nas vontades e nas carências dos homens – processo que ele chama de “desencantamento do direito”.
É também nessa parte do texto que Neumann apresenta sua quarta tese: “o reconhecimento da liberdade e igualdade em uma es fera leva ao postulado da liberdade e igualdade nas outras” (p. 118).
Para ele, a justificação secular e racional do Estado e do direito per mite e estimula o reconhecimento jurídico progressivo da liberdade e da igualdade, embora o risco de regresso seja constante.
Essa tese, junto às demais, será novamente objeto de estudo na terceira e última parte do livro, quando Neumann analisa a evolução histórica das instituições jurídicas na Alemanha e na Inglaterra dos séculos XIX e XX. Nesse ponto, Neumann estuda a relação entre direito, política e capitalismo.
Ele defende que a sociedade liberal e competitiva do século XIX, ao compartilhar uma concepção individual de liberdade política e econômica, determinava que o direito só fosse válido se exercido por meio de leis gerais aplicadas por juízes independentes por meio de um processo de subsunção lógico-formal.
Essa ideia formal de direito, por outro lado, pressupunha uma determinada estrutura econômica, social e política: uma economia não monopolizada, a inexistência de uma classe trabalhadora enquanto movimento independente que apresentava demandas ao Estado e ao direito e uma separação de poderes, no qual o direito era aplicado por um órgão independente do órgão de criação, sendo que um ou outro deveria ser dominado pela burguesia.
Contudo, quando o capitalismo se monopolizou e o proletariado passou a exigir o reconhecimento formal de direitos, ocupando lugar no Parlamento, essa estrutura jurídica formal entrou em xeque.
Neumann afirma que a justificação secular e racional do direito passou a ser reivindicada por uma nova classe social, organizada politicamente. E a possibilidade dessa classe exigir direitos formais democraticamente (a afirmação progressiva do Império do Direito por uma justificação secular e racional), entrou em contradição com o desenvolvi mento do sistema produtivo. A sociedade burguesa ficou ameaçada.
A solução encontrada na década de 1930, na Alemanha, foi o completo abandono de qualquer pretensão de racionalidade na justificação do Estado e do direito: a contradição entre soberania e Império do Direito foi resolvida em favor do primeiro elemento. Para Neumann, o direito da Alemanha nazista era uma simples técnica de transformação da vontade do líder em realidade constitucional. A característica própria do direito e do Estado, a contradição entre um momento de soberania e um momento de justificação racional e secular, foi deixada de lado em favor de uma justificação irracional e carismática do poder absoluto do Estado.
2.Vínculo entre direito e democracia.
Contudo, é possível defender, a partir de Neumann, que a “solução nazista” não era a única alternativa historicamente possível. Aqui talvez resida a maior contribuição do autor para o pensamento jurídico e político contemporâneo. Estabelecendo um vínculo entre democracia e direito, tanto da perspectiva teórica, a partir da análise de Rousseau, como da perspectiva histórico-institucional, a partir de sua análise sobre a República de Weimar, Neumann parece postular que seria possível garantir o contínuo reconhecimento de esferas de liberdade e igualdade por meio de um direito democrático, ainda que o risco de regressão estivesse presente.
Não há espaço para reconstruir o que interpreto como as duas linhas de análise sobre o vínculo de direito e democracia realizadas por Neumann. Por isso, apresentarei somente o que considero a sua compreensão sobre as transformações ocorridas na República de Weimar.
Neumann entende que a típica sociedade liberal do século XIX transformou-se radicalmente na Alemanha do início do século XX.
Além da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista, o autor afirma que a estrutura política também foi substancialmente alterada, sendo que a Constituição de Weimar tentou equilibrar o conflito de classe entre proletariado consciente e burguesia com base na ideia de paridade e com o sufrágio universal. As instituições políticas democráticas permitiram que todas as forças sociais participassem ativamente da criação do direito e do exercício do poder político.
Nesse contexto, a estrutura formal do direito do século XIX também foi transformada. A estrutura econômica de monopólios, o proletariado se constituindo enquanto classe social ativa e a participação de diversas forças sociais na criação do direito fizeram com que começassem a surgir inúmeras normas mais abertas que o padrão tradicional. O conflito social não permitia que o legislador decidisse de antemão qual a solução a ser adotada em um caso concreto. Cláusulas jurídicas gerais passaram a dominar o ordenamento jurídico, como as exigências da “função social da propriedade”, “interesse público” e “boa-fé”, que permitiam uma decisão diferente para cada caso concreto.
Para Neumann, essas cláusulas gerais só garantiram o equilíbrio de forças sociais enquanto todas puderam participar do processo de justificação. Enquanto existiu esse equilíbrio em Weimar, as forças sociais puderam participar ativamente da formação do poder político, porque a elas também eram reconhecidas esferas de liberdade em face do poder do Estado. Contudo, a partir de 1930, as cláusulas gerais passaram simplesmente a ser utilizadas como justificativa para proteção dos interesses monopolistas e da vontade política do Führer. As esferas de liberdade foram sacrificadas em favor da soberania estatal7
2.1 O elemento jurídico da liberdade e a realização da liberdade humana.
A consequência desse diagnóstico, para Neumann, é a de que o reconhecimento formal e jurídico de âmbitos de liberdade em face do poder do Estado é essencial para garantir a realização da liberdade humana, ainda que não a garantam definitivamente.
Neumann entende que a liberdade jurídica se diferencia da liberdade sociológica e filosófica. Enquanto a primeira é a ausência de restrição, a liberdade sociológica seria a possibilidade individual de livre escolha entre duas alternativas iguais. Neumann entende que a liberdade jurídica, conectada a instituições democráticas e a uma justificação secular e racional, permite a progressiva realização da liberdade sociológica, ao dar atenção crescente às diferenças sociais entre os homens. A liberdade jurídica, contudo, não garante a liberdade sociológica.
Finalmente, a liberdade jurídica e a liberdade sociológica simples mente tornam possível a “autoafirmação humana, o fim da alienação de si do homem” (p. 83), inspirando-se na filosofia do direito hegeliana.
A tentativa de formular uma “teoria da liberdade humana” nunca foi abandonada por Neumann. Em texto posterior, de 1953, Neumann retornará à questão.8 Nesse texto, ele afirma que o conceito de liberdade política possui três elementos constitutivos: jurídico, cognitivo e volitivo. O elemento jurídico é o reconhecimento de uma esfera de liberdade do cidadão e de organizações privadas em face do Estado.
Neumann diferencia sociedade civil e Estado e afirma que a primeira deve ser independente do Estado para permitir que as demandas sociais se formem autonomamente.
Desenvolvendo a afirmação realizada antes, Neumann afirma mais uma vez que o elemento jurídico é insuficiente. Dessa vez, contudo, apresenta dois novos motivos: a liberdade concebida enquanto ausência de restrições não permite explicar porque a democracia é o sistema político que maximiza a liberdade; a fórmula da independência da sociedade civil em relação ao Estado ignora que a liberdade pode ser ameaçada no interior da própria sociedade civil.
Assim, ele desenvolve o elemento cognitivo e o elemento volitivo da liberdade política, que complementam o elemento jurídico. O elemento cognitivo reconhece que a sociedade humana acumula progressivamente conhecimento a respeito da natureza e do próprio homem. Nesse sentido, ele permite a realização efetiva da liberdade, ao possibilitar ao homem a compreensão das relações naturais e sociais nas quais está inserido. Ao mesmo tempo, também permite que o homem reforme a estrutura institucional para adequá-la ao conheci mento adquirido.
Por fim, o elemento volitivo (ou ativista) da liberdade é a vontade humana de ser livre. É por meio dele que se defende a superioridade da democracia enquanto forma histórica de realização da liberdade. O vínculo entre direito e democracia fica ainda mais evidente no texto de 1953, porque Neumann defende que somente a democracia institucionaliza a oportunidade do homem escolher livremente entre oportunidades iguais. E o cidadão – individualmente ou em grupo – só pode escolher livremente se tem esferas de liberdade reconhecidas juridicamente.
Em The concept of political freedom, portanto, Neumann desenvolve a teoria apresentada inicialmente em O Império do Direito. Os três ele mentos da liberdade – jurídico, cognitivo e volitivo – conformariam um desenho institucional e social mínimo para que uma sociedade moderna possa ser livre, ainda que o risco de regressão esteja presente. A análise da República de Weimar realizada nos últimos capítulos de O Império do Direito demonstra o risco do abandono do Império do Direito.
Nesse contexto, acredito que os estudos de Franz Neumann podem contribuir significativamente com a reflexão contemporânea a respeito do direito e da democracia. Sua análise sobre o desenvolvimento da racionalidade jurídica apontou para a superação da dicotomia direito formal-material, no sentido de um direito procedimental democrático.9 Por outro lado, Neumann também apontava para a necessidade de congregar outros elementos, além do jurídico, para a sociedade moderna realmente permitir a efetivação da liberdade.
Notas
1.FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982, NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.
2.NEUMANN, F.Behemoth : the structure and practice of national socialism 1933 1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.
3 A relação entre Neumann e o Instituto não é contínua. Sobre o assunto, ver JAY, M.The dialectical imagination : a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.
4 A preocupação de Neumann com o direito foi analisada nos seguintes textos: RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann, São Paulo: Editora Saraiva, 2009; PROL, F. e RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes. In: RODRIGUEZ, J. e SILVA, F., Manual de Sociologia Jurídica, São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp. 61-79.RODRIGUEZ, J. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004. RODRIGUEZ, J.Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo.In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008. KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann. New York: Oxford, 2003. SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.
5.Neumann se baseia nos estudos de Karl Renner. Ver: RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.
6.Acredito que é a partir desta tese que Rodriguez afirma a atualidade do diagnóstico de Neumann, por meio da expressão “fuga do direito”. A afirmação histórica do Império do Direito e do reconhecimento de diversas esferas de liberdade jurídicas faz com que as forças produtivas e o exercício puro do poder assumam outra roupagem social, não jurídica. O direito moderno democrático impõe restrições ao exercício do poder. Para mais, ver RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito.
7.Rodriguez diferencia a “forma direito” dos “modelos de juridificação”. A ideia de “forma direito” ele retira da própria tensão entre soberania e direito que Neumann afirma ser característica das sociedades modernas. Por “modelos de juridificação”, Rodriguez diferencia como cada sociedade concretiza essa tensão em sua organização específica. A “forma direito” ganha potencial emancipatório quando está conectada a um procedimento democrático.Justamente o que foi abandonado na Alemanha nazista. Para mais, ver: RODRIGUEZ, J. Fuga do Direito, pp. 69-85; p. 95-120; pp. 129-135.
8.NEUMANN, F. The concept of political freedom.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953, pp. 901-935.
9.Algo que Habermas, por exemplo, realiza em seus textos sobre direito e democracia. HABERMAS, J.Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 vols.Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
Referências
FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982.
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 vols. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
JAY, M.The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.
KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann New York: Oxford, 2003.
NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.
_______.Behemoth: the structure and practice of national socialism 1933-1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.
_______.O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013.
_______. “The concept of political freedom”.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953.
PROL, F.; RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes.
In: RODRIGUEZ, J.; SILVA, F. (orgs.).Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.
RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
_______. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004.
_______. Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo. In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008.
SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.
Flávio Marques Prol – Doutorando na Faculdade de Direito da USP e pesquisador do NDD-CEBRAP.
A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica – REPA (C-FA)
REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008. Resenha de: MATTOS, Fernando Costa. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jan./Jun., 2010
A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa, é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno – os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo as principais balizas desse caminho de transformação: essas três noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990.
Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo” Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências sociais.1
Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu livro com uma citação d’ O discurso filosófico da modernidade em que Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia 2 : é um ótimo ponto de partida para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica, se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade, colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em relação ao momento presente.3
Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das assim chamadas ciências do espírito), 5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a possibilidade da emancipação.
Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez, o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade: ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais, apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam afirmar-se contra os meramente instrumentais.
Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele “olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano: o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2) pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”).
Nas palavras do próprio autor,
com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam, de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6
De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as transformações conceituais com que ele responde a essas críticas: deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira da tradição marxista frankfurtiana 7 –, Habermas se verá forçado a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da técnica 8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade – elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10 E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno, acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais.
É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos, assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1) à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela “filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos 1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo, quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo, o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12
De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a Henrich 13 ): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant, segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal, seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder inteiramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez as esperanças da filosofia.14
A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir. Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante, é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência, dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15
É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca esse conceito.17
Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução, interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas.
Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as ciências:
Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia, tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”, uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (…) precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas como uma espécie de medida de processos evolutivos.18
Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua “ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa, quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho.
Notas
1.Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”. in: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p 83-117, jul.-dez,.2009.
- REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13.
3 Idem, ibidem.
4 Idem, p. 15.
5 Idem, p. 14.
6.Idem, p. 17.
- Idem, pp. 76 e ss.
- Idem, pp. 85 e ss.
- Idem, p. 71 (nota 151).
10.Idem, p. 166 e ss.
11 Cf. idem, p. 229.
12 Idem, p. 175.
13 HABERMAS, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269.
14 REPA, L.A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 217 e ss.
- É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade”?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p. 101-3.
- Cf. HABERMAS, J.Pensamento pós-metafísico, p. 14-5.
- Cf. =ies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65.
- REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177
Fernando Costa Mattos – Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.