Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea / William Outhwaite

Willian Outwaite atuou, por 34 anos, como professor de sociologia, coordenador do Programa de Pensamento Político e diretor do Centro de Teoria e Crítica Social na Universidade de Sussex. Autor de extensa obra sobre teoria social, é professor emérito de sociologia na Universidade de Newcastle, desde 2015.

Com o intuito de apresentar uma síntese da teoria social e o quanto essa ciência pode contribuir para a compreensão das grandes questões do mundo contemporâneo, a obra resenhada divide-se em oito capítulos. No primeiro, intitulado Origens, o autor promove uma reflexão sobre as origens das desigualdades sociais e os ideais, tão presentes hoje, que levaram às revoluções. Em Capitalismo, retoma o pensamento de Marx e Engels para analisar essa controversa forma social e econômica que, na atualidade, molda a vida da maior parte dos seres humanos. Em Sociedade, Outhwaite, objetivando examinar o desenvolvimento das sociedades – das formas simples às modernas – recorre a Herbert Spencer e Émile Durkheim. No quarto capítulo, Origens do capitalismo e teorias da ação social, o autor focaliza as precondições e consequências culturais do capitalismo.

Para introduzir o quinto capítulo e responder à pergunta “Como a sociedade é possível?”, o autor recupera o pensamento de Georg Simmel, cujo interesse por fenômenos culturais inspirou e inspira trabalhos em sociologia sobre a teoria “pós-moderna”. Em A descoberta do inconsciente, Outhwaite discorre sobre como a análise da psique de Freud moldou a compreensão da realidade, delineando as implicações desses estudos na cultura contemporânea. No capítulo Teoria social e política, a maneira pela qual alguns teóricos sociais tentaram explicar a política moderna recebe destaque. Por fim, em Questão pendente, temas relevantes na contemporaneidade que, até pouco tempo, eram negligenciados na teoria social são abordados, tais como gênero, relações internacionais e guerra, raça, colonialismo e crise ambiental.

O primeiro capítulo, concentra-se nas questões propostas por Rousseau e Montesquieu, no século XVIII, sobre a origem das desigualdades nas sociedades e a distinção entre moral e crítica social. Recorrendo a exemplos, o autor ilustra como esses temas permearam debates posteriores. Estabelece, desse modo, um paralelo entre as relações de poder, a histórica e crescente desigualdade social e, em se tratando de desigualdade natural, como nas sociedades capitalistas os olhares se voltaram à equidade. Nesse sentido, ressalta-se como as críticas de Rousseau ao excesso e ao luxo ou, nas palavras desse filósofo do iluminismo, a distinção entre a vontade conectada ao bem público e a vontade relacionada aos interesses individuais é extremamente relevante para a compreensão da política moderna.

Ainda sobre a política moderna, o autor retoma o pensamento de Montesquieu que, em O espírito das leis (1748), enfatiza a necessidade de um legislador, tanto quanto um arquiteto, conhecer bem o terreno antes de elaborar projetos, visto que o terreno pode não suportar o peso do que foi planejado. Em outras palavras, regimes políticos encontrarão solo seguro quando adequados à sociedade, não impostos. A aguda percepção de Montesquieu acerca da interação entre eventos acidentais e causas estruturais de longo prazo é, portanto, um bom ponto de partida para estudos que tem por fim compreender a relação entre o papel dos indivíduos e as estruturas mais amplas da história.

O autor finaliza este capítulo retomando a ideia de Montesquieu acerca do “espírito geral” e sinalizando como a mesma, além de encontrar eco no que Durkheim chamou de “consciência coletiva”, se mostra nuclear nos dias atuais para analisar-se as desigualdades, a democracia e os perigos do conformismo ou, numa expressão de Tocqueville, da tirania de uma maioria.

No segundo capítulo, Outhwaite, promove uma incursão na obra de Marx e Engels. De acordo com esse professor de sociologia, as análises realizadas por esses dois teóricos germânicos sobre os antagonismos das classes e as formas de produção são, até hoje, a forma mais consiste para pensar-se a estrutura social e econômica vigente na maior parte do globo terrestre: o capitalismo.

Começando com conceitos presentes em O capital (1867), é-se apresentado ao que Marx chamou de “valor de uso”, valor de troca”, “fator sensação”, “equivalente universal” e “mais valia”. Outhwaite assinala que a exploração do trabalho assalariado é tão intrínseca ao processo capitalista quanto os conflitos entre os que detêm os meios de produção e os que dispõe da força de trabalho. Lembrando que o lucro decorre do fato dos trabalhadores receberem em seus salários um valor bem distante do equivalente à produção por eles realizada, e os conflitos, por sua vez, resultam desse valor recebido mal suprir as necessidades de sobrevivência de quem detém a força de trabalho.

Ainda na atualidade, a ideia de receber o “valor total de seu trabalho” permanece tão incompatível com a manutenção do sistema capitalista que, em 1995, Tony Blair retirou do verso das carteiras dos trabalhadores a famosa clausula quatro do estatuto do Partido Trabalhista, que reconhecia como justo “Assegurar aos trabalhadores braçais ou intelectuais os plenos frutos de sua indústria e a mais equitativa distribuição possível deles, com base na propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca” (OUTHWAITE, 2017, p. 31).

Outra questão que merece destaque é a crítica de Marx à religião, por promover reflexões sobre a estreita relação entre os antagonismos de classes nas sociedades modernas e as ideologias. Para Marx, a insatisfação com as condições políticas e sociais levava o povo a refugiar-se nas ilusões da religião. Sob esse prisma, ao puxar o fio da religião, desmancham-se as bases que legitimam ideologicamente as desigualdades e a exploração.

Antes de encerrar o segundo capítulo, a autor ressalta como pode-se observar, no pensamento de Marx e Engels, a importância de uma relação harmônica entre seres humanos e, indubitavelmente, como essa necessidade de harmonia deve ser estendida a toda a natureza. Esses elementos abrem espaço para argumentar-se que a obra desses dois teóricos da filosofia e da sociologia, implicitamente, oferece bases para reflexões sobre desenvolvimento sustentável nas sociedades humanas. Tanto que, perto do final do século XX, na esteira do pensamento desses revolucionários socialistas, emergem movimentos anticapitalistas combinados a novos movimentos sociais, abordando temas como a desigualdade de gênero, a exploração baseada na etnicidade e a crise ambiental.

Em Sociedade, ao analisar o pensamento de Herbert Spencer – pioneiro da teoria social evolucionista –, o autor ilustra a problemática presente na ideia de “sobrevivência dos mais aptos”. Desta forma, sugere que para realizar-se um exame, por exemplo, do esgotamento do comunismo, tem-se que considerar um feixe de elementos que perpassam por questões econômicas, ideológicas e culturais.

Ao avaliar o contraste entre o que os teóricos marxistas chamam de ideologia e o que Durkheim nomeia como sistemas de valores compartilhados, Outhwaite lembra que Durkheim, no final do século XIX, em sua obra O suicídio (1897), analisou as diferentes taxas de suicídio e promoveu reflexões sobre o valor das crenças compartilhadas, bem como sugeriu a importância dos laços sociais. Esses estudos instigam questionamentos sobre o modelo globalizado e fragmentado da sociedade em que vivemos.

No quarto capítulo, é apresentado o pensamento contido na obra de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). Destaca-se a análise sobre o modelo da ética econômica protestante e os quatro tipos principais de ação identificadas por Weber: a ação tradicional, a ação guiada pela emoção, a ação irracional em relação aos fins e a ação racional em relação aos valores.

O autor finaliza o quarto capítulo focalizando no trabalho de Georg Lukács, Theodor Adorno e Habermas as conexões entre as formas de ação social, no nível mais básico, e os processos mais amplos de desenvolvimento social e histórico.

Em como a sociedade é possível, Outhwaite descreve ligações entre comportamentos cotidianos e processos estruturais mais amplos, tendo como base o pensamento de Georg Simmel, Erving Goffman, Harold Garfinkel, e a obra de Norbert Elias, O processo civilizador (1939). Nas palavras do autor, em razão do extenso exame que Simmel realiza das precondições e das consequências intelectuais, culturais e psicológicas da economia monetária em A filosofia do dinheiro (1900), essa obra poderia, sem dúvida, ter por título “sociologia do dinheiro”. Para esse sociólogo alemão, individualismo, nervosismo e economia monetária se relacionam estreitamente com a vida urbana, sendo o desgaste compensado pela atitude blasé.

A obra de Goffman, por sua vez, tem como foco a dimensão da representação no desempenho de papeis sociais, ou seja, de acordo com esse sociólogo norte americano, as pessoas se adequam aos papeis prescritos pela sociedade para não serem excluídas. O pensamento de Harold Garfinkel se aproxima da abordagem de Goffman, já que para o primeiro a manutenção da ordem é produto do trabalho interpretativo dos atores sociais.

Após destacar o paralelo estabelecido por Norbert Elias entre as transformações, nos primórdios da Europa moderna, das estruturas de personalidade e dos comportamentos individuais e a origem do Estado moderno, Outhwaite, recorre a Zygmunt Bauman e Luc Boltanski para expor a magnitude dos desafios da sociedade contemporânea.

Partindo da premissa de que a análise que Sigmund Freud fez da psique moldou totalmente a compreensão que tem-se da humanidade e, consequentemente, da cultura e da sociedade, Outhwaite inicia o sexto capítulo ponderando acerca do papel do recalcamento de pulsões conscientes e inconscientes na construção da cultura humana. Para defender sua tese, recorre às teorias de Freud, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Louis Althusser.

Ainda nesse capítulo, o autor estabelece associações entre e as ideias de Freud e as de Marx; entre o modelo de autoridade carismática de Weber e os sentimentos inconscientes – estudados por Freud – de quem segue essa espécie de liderança; e, por fim, entre a ênfase de Freud na regulação e o que Durkheim denominou ausência de normas na sociedade moderna. Destaca-se o impacto da psicanálise na interpretação de textos literários e na análise de produções cinematográficas, em especial, as análises de Hanns Sachs, Gilles Deleuze e Slavoj Žižek.

No capítulo intitulado Teoria social e política, Werner Sombart, Robert Michels e Norbert Elias são referências para o debate sobre o quanto uma concepção do social ou de sociedade pode ter potencial para promover a compreensão de problemas que a abordagem política não consegue alcançar. Outhwaite lembra que esses teóricos sociais propuseram análises significativas da política e, para ilustrar, retoma suas ideias sobre a permanente oposição entre a teoria das elites e a teoria da sociedade de massas; a exposição das massas urbanas às elites demagógicas; a abertura da teoria crítica às questões culturais e à teoria freudiana; a oposição entre as explicações centradas no Estado e centradas na sociedade; bem como sobre as teorias da globalização e suas dimensões econômica, social e cultural.

Sobre as teorias da globalização, finaliza esse capítulo lembrando que essas não podem se deter aos aspectos econômicos, pois envolvem dimensões sociais e culturais mais amplas. Nesse sentido, o autor propõe a reflexão sobre as formas atuais de política democrática em meio a relativa imobilidade das estruturas políticas e os avanços das técnicas de manipulação das massas, destacando o controle exercido pela televisão e ascensão de partidos populistas.

Outhwaite, em Questão pendente, avalia que, apesar da relevância da teoria social, algumas áreas foram tardiamente tratadas pela sociologia, como, por exemplo, as relações internacionais e a guerra. De acordo com pesquisas realizadas por esse autor, a palavra conflito – relacionada à conflito internacional e guerra – pouco aparece nas produções acadêmicas do final do século XX. Além disso, pouca atenção foi dada às noções grosseiras de competição evolutiva aplicadas ao social e aos movimentos “verdes” que, nas palavras do autor, não podem continuar sendo negligenciados pela sociologia.

A teoria pós-colonial tem se mostrado mais forte nos estudos literários que nas ciências sociais e, sobre essa sociologia que emergiu de uma cultura imperialista e desconsiderou o mundo colonizado, o autor afirma ser urgente sua revisão. Considera, também, que os debates em torno da modernidade e pós-modernidade não podem mais ignorar os modos como a democracia foi transformada em algo próximo a um teatro, no qual a política é protagonizada pelos que controlam as finanças e os meios de comunicação.

Para além de proporcionar uma viagem panorâmica pelos tópicos que interessam à teoria social e uma breve abordagem das análises realizadas pelos seus principais pensadores, nesse livro, pode-se avaliar o papel da teoria social e sua possibilidade de iluminar, em conjunto com as ciências sociais e a filosofia, questões latentes no século XXI.

Considera-se que, em um cenário contraditório, de aumento de pobreza, desemprego e exclusão, de violência urbana e de inquestionável expectativa de pertencimento ao mundo, tem-se como escolha a negação de acondicionamento ao existente. Nesse sentido, o conhecimento que advém desse livro pode ser uma excelente contribuição para instigar reflexões sobre e ações direcionadas às possibilidades de construção de, como coloca Gohn e Hamel (2003, p. 118), um “(…) novo modelo civilizatório, em que a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis”.

Referências

GOHN, Maria da Glória; HAMEL, Pierre. Movimentos sociais e mudanças na democracia. In: ROMÃO, José Eustáquio; SANTOS, José Eduardo de O. Questões do Século XXI, tomo I. São Paulo: Cortez, 2003.

Régia Vidal Santos – Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE).


OUTHWAITE, William. Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 142p. Resenha de: SANTOS, Régia Vidal. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.32, p.126-131, jan./jul., 2018. Acessar publicação original. [IF].

Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea – MINAYO et al (TES)

MINAYO, Carlos; MACHADO, Jorge Mesquita Huert; PENA, Paulo Gilvane Lopes. (Orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011, 540 p. Resenha de: LEÃO, Luís Henrique da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10 n. 2, p. 347-351, jul./out.2012.

Esta obra oferece ao leitor uma revisão do campo da saúde do trabalhador no Brasil considerando suas dimensões teórico-conceituais e político-institucionais, bem como apresenta dilemas, desafios e perspectivas teóricas e práticas para a área diante das transformações econômicas e sociais da atualidade.

Nos últimos anos verifica-se um quadro de mudanças caracterizado por globalização dos mercados, reestruturação produtiva e incorporação de novas tecnologias, coexistindo com processos de trabalho tayloristas-fordistas, além da expansão do setor de serviços e do aumento de trabalho informal e exclusão social, ao lado dos problemas estruturais da formação social do Brasil.

Em face dessa conjuntura, que também modifica o perfil dos trabalhadores e a dinâmica do emprego/desemprego, o livro aborda questões essenciais para os horizontes científico e institucional da saúde do trabalhador.

Foi organizado por pesquisadores de significativa trajetória no surgimento e desenvolvimento desse campo no Brasil – Carlos Minayo Gomez, sociólogo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Jorge Mesquita Huet Machado, médico e tecnologista da Fiocruz e Paulo Gilvane Lopes Pena, médico e professor da Universidade Federal da Bahia – e reuniu pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa do país, favorecendo interlocuções férteis sobre o saber acumulado na área.

A origem do livro está relacionada às atividades do Grupo de Trabalho de Saúde do Trabalhador da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), que em 2007 realizou o I Simpósio Brasileiro de Saúde do Trabalhador (I Simbrast) no Rio de Janeiro, com a participação de vários pesquisadores. O objetivo foi fazer um balanço da área avaliando suas conquistas e avanços, assim como limitações e entraves. Ao mesmo tempo, buscou identificar carências e vislumbrar tendências à luz das transformações atuais.

Diversos textos apresentados e discutidos naquele encontro compõem o conteúdo deste livro, formando uma coletânea diversificada, dinâmica e coletiva que contribui para o processo de desenvolvimento desse campo no país.

O livro é iniciado, no texto introdutório, com uma reflexão crítica acerca da construção e trajetória da saúde do trabalhador, suas características, marco teórico-conceitual e impasses atuais. Minayo-Gomez problematiza a noção de ‘campo’ da saúde do trabalhador, com base nos pressupostos de Bourdieu, afirmando que esse conjunto de conhecimentos e práticas interdisciplinares, multiprofissionais e interinstitucionais nascido no contexto da redemocratização brasileira do início da década 1980, na verdade, se insere no campo das relações saúde-trabalho. Nele, a saúde do trabalhador, como perspectiva da saúde coletiva, supera dialeticamente concepções hegemônicas da medicina do trabalho e saúde ocupacional e noções reducionistas de causa e efeito ancoradas em modelos mono ou multicausais que relacionam doença a um agente ou a fatores de risco dos ambientes de trabalho. Além disto, considera o trabalhador como sujeito ativo nos processos e se baseia na compreensão da saúde como direito vinculando- se, como campo institucional, aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Sob essas premissas identificadoras do campo e a partir da noção de habitus, também de Bourdieu, Minayo-Gomez questiona se de fato existiria um grau de coesão teórica e prática entre os diversos pesquisadores e trabalhadores da área a ponto de compartilharem o mesmo paradigma. Ele constata que é preciso avançar bastante, pois o ‘campo’ está fragmentado e “não há uma verdadeira comunidade teórico-prática, com conceitos, categorias e planos de ação acordados, trabalhando com um único paradigma” (p. 32). Ao finalizar, ele chama a atenção para a necessidade de aprofundamento teórico, institucional e fortalecimento do movimento coletivo dos trabalhadores para a construção contínua da área.

O livro foi subdividido em quatro partes, iniciando com oito capítulos que analisam o estado das práticas com foco nas políticas públicas de prevenção e vigilância, e em algumas experiências institucionais.

Os autores discutem os desafios da política de saúde do trabalhador em direção ao desenvolvimento sustentável e a necessidade de considerar a categoria trabalho como determinante nos processos saúde-doença, apresentam os pressupostos da vigilância em saúde do trabalhador no contexto do SUS, avaliam a estratégia da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), mencionando fragilidades como o distanciamento do controle social e a baixa articulação intra e intersetorial.

São abordadas ainda a política nacional de humanização, a implantação das políticas setoriais de ergonomia, as lutas pelo controle do benzeno no Brasil e a potencialidade do conceito de território para análises e intervenções em saúde, trabalho e ambiente.

Esse conjunto de textos de caráter avaliativo e propositivo sinaliza diversos pontos críticos a serem superados para a efetiva institucionalização da saúde do trabalhador no Brasil e sugere caminhos para o fortalecimento das políticas e ações institucionais.

Os quatro capítulos da segunda parte tratam de outros fenômenos marcantes na realidade brasileira: os acidentes e os agravos à saúde relacionados ao trabalho. Questões cruciais são debatidas, tais como as dificuldades e possibilidades de dimensionamento do número de acidentes de trabalho no país, os impactos do modelo produtivo do agronegócio brasileiro à saúde e ao ambiente, e o desafio da caracterização das doenças dos trabalhadores.

Diante dos processos de saúde-produção-doença, que inclusive refletem históricos conflitos sociais brasileiros, os autores propõem a criação de meios para melhoria das condições de trabalho e vida dos trabalhadores, afirmando a necessidade de movimentos que “ponham fim à ideia de que mortes no trabalho, mesmo ‘no varejo’, sejam aceitáveis” (p. 223), e a importância de “problematizar a vida que se discute em saúde do trabalhador, porque alguns trabalhos, mesmo com todo o avanço tecnológico, permanecem matando lentamente, ou até abruptamente” (p. 290).

É pertinente destacar que uma importante contribuição dessas discussões foi a incorporação da temática ambiental, que trouxe para o debate a relação saúde, trabalho e ambiente, ampliando a principal categoria de análise da área – o processo de trabalho e sua relação com o processo saúde-doença – e demandando novas perspectivas de ação intersetorial e transversal com vistas à sustentabilidade ambiental e social.

Outras questões fundamentais para a saúde do trabalhador nas atuais conjunturas do mundo do trabalho são as relações entre subjetividade e trabalho. Crescem as demandas de sofrimentos psíquicos que desafiam a gestão, os profissionais do SUS e demais setores. Esse tema é aprofundado no terceiro bloco do livro. São seis capítulos que trazem reflexões críticas sobre o trabalho na atualidade com base em autores como Negri e Hardt, discutem criticamente sobre o ‘mental’ no trabalhar na perspectiva da ergologia, debatem as principais abordagens do campo da saúde mental e trabalho, como a psicodinâmica do trabalho, e expõem a diversidade de acepções dos construtos subjetividade e sofrimento na produção científica em saúde do trabalhador.

Essas discussões, embasadas em abordagens distintas e até mesmo conflitantes, enriquecem o campo da saúde do trabalhador e aprofundam conceitos para o processo de compreender intervir nas vivências dos trabalhadores.

Outras importantes contribuições podem ser percebidas na última parte, que em seus seis capítulos enfoca dimensões do trabalho em serviços e as questões de gênero. Neles são expostos os fundamentos teóricos sobre a noção de serviços e os desafios da saúde do trabalhador nesse contexto, as complexidades e condições de trabalho no setor saúde, as contribuições da ergologia para o campo da saúde pública, a divisão sexual do trabalho na educação e as características e desafios do trabalho em telemarketing.

Esses capítulos aprofundam as reflexões sobre a saúde do trabalhador diante da emergência de um novo paradigma produtivo centrado no setor terciário, que alterou o padrão industrial dos séculos XIX e XX. Fato relevante, pois historicamente o campo da saúde do trabalhador focalizou o paradigma industrial na academia e nas ações institucionais. As transformações dos processos e organização do trabalho do novo modelo calcado no setor de serviços desafiam a saúde do trabalhador e exigem inovadoras perspectivas de análise-intervenção. À luz dessas tendências, o livro realizou um importante trabalho de contextualização teórica e metodológica, contribuindo para a superação da ênfase dos estudos no setor secundário da economia que fora motivo de críticas ao campo.

Importante chamar a atenção também para o setor primário, uma vez que a agricultura é outra realidade desafiadora no Brasil. O país é um dos maiores exportadores de commodities, como soja, café e cana e apresenta sérios problemas no que tange às condições de vida e trabalho no mundo rural. Uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho e situações extremas como mortes por exaustão em canaviais são alguns exemplos. Os capítulos 6, 7 e 11, inclusive, apontam a necessidade de maior articulação acadêmica e política em prol da melhoria das condições nesse setor.

Percebe-se, portanto, que o livro analisa o trabalho em sua integralidade, considerando não apenas os riscos físicos, químicos, biológicos e mecânicos dos ambientes laborais, mas também as relações sociais. Além das condições de trabalho, a categoria organização do trabalho foi abordada, dando relevo às pressões, às hierarquias, às relações de poder, à divisão e conteúdo das tarefas nas novas dinâmicas produtivas do capitalismo.

Após expor os blocos temáticos do livro e suas contribuições, convém ainda ressaltar lacunas no campo da saúde do trabalhador, observadas pelos autores, que poderiam formar uma agenda de pesquisa. No âmbito acadêmico revela-se a falta de rigor conceitual sobre a relação do trabalho com o processo saúde-doença e ausência da interdisciplinaridade nas pesquisas, bem como a repetição de discursos simplificadores e a ênfase nos trabalhadores como objetos de estudo passivos. E, do ponto de vista institucional, verifica-se a falta de políticas integradas, poucas avaliações das ações, distanciamento entre pesquisadores, representantes de trabalhadores, gestores e formuladores de políticas, e dificuldades de um diagnóstico da real situação da classe trabalhadora.

A estas limitações soma-se a fragilidade do movimento de trabalhadores organizados como sujeitos ativos e impulsionadores das políticas. Refreou-se a sua atividade protagonista na definição de linhas de ação conformando uma atuação de ‘controle social’ dos governos, em instâncias instituídas como conselhos de saúde, comissões intersetoriais, entre outras.

Alguns capítulos abordam essa importante temática, demonstrando a necessidade de debater academicamente a questão da participação dos trabalhadores e fomentar maiores articulações para que esse movimento coletivo, ora fragilizado, seja protagonista das ações.

Lacunas como essas, segundo os organizadores do livro, “só serão superadas por meio da intensificação da articulação entre as análises teóricas, as propostas políticas e as ações de intervenção, conforme tem sido a tradição desse campo” (p. 21).

Em síntese, o livro traz reflexões cruciais sobre as principais questões da saúde do trabalhador, empreendidas com lucidez, perspicácia, rigor científico e compromisso com a transformação da realidade, marca histórica da área. Constitui-se como obra de referência para interessados no tema, oferecendo um ‘estado da arte’ das políticas e das práticas da saúde do trabalhador na atualidade, cuja relevância e pertinência são inegáveis. Os enriquecedores subsídios teórico-metodológicos trazidos contribuem para a solidez do campo e convoca pesquisadores, trabalhadores, técnicos e demais atores sociais a um renovado compromisso coletivo com um bem inalienável: a vida, a saúde dos trabalhadores.

Luís Henrique da Costa Leão Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. E-mail: luis_leao@hotmail.com

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Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais – HONNETH (C)

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. Resenha de: SALVADORI, Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

A figura mais proeminente dentre os teóricos da terceira geração de Frankfurt é Axel Honneth. Os seus estudos concentram-se nas áreas: filosofia social, política e moral, tratando ,principalmente, da explicação teórica e crítico-normativa das relações de poder, respeito e reconhecimento na sociedade atual.

O objetivo central de Honneth na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, é mostrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. Isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo e não por autoconservação, como salientavam Maquiavel e Hobbes. As três formas de reconhecimento são as seguintes: o amor, o direito, e a solidariedade. A luta pelo reconhecimento sempre inicia pela experiência do desrespeito dessas formas de reconhecimento. A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando há, na experiência de amor, a possibilidade de autoconfiança, na experiência de direito, o autorrespeito e, na experiência de solidariedade, a autoestima.

Honneth, inspirando-se no conceito de reconhecimento do jovem Hegel, busca fundamentar a sua própria versão da teoria crítica. Com isso, ele pretende explicar as mudanças sociais por meio da luta por reconhecimento e propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos.

A primeira forma de reconhecimento consiste nas emoções primárias, como o amor e a amizade. Para investigar essa esfera, o autor volta-se aos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. O ponto de partida dessa primeira forma é uma fase de simbiose, chamada por Winnicott “dependência absoluta”. A mãe e o filho estão em um estado de indiferenciação. As reações do filho são percebidas pela mão como um único ciclo de ação. Winnicott chama isso “intersubjetividade primária”, em que há uma unidade de comportamento. Porém, para ampliar o seu campo social de atenção, a mãe começa a romper a sua identificação com o bebê. Com isso, o bebê aprende que a mãe é algo do mundo e que não está à sua inteira disposição.

Essa segunda fase é chamada “dependência relativa”. É nesse período que a criança desenvolve a sua capacidade para uma ligação afetiva. A criança reconhece o outro como alguém com direitos próprios, independente. Para Winnicott, a fim de alcançar essa independência do outro, a criança tem que desenvolver dois mecanismos psíquicos: destruição e os fenômenos e objetos transicionais. A destruição (mordidas no corpo da mãe) consiste em atos que a criança pratica quando descobre a independência da mãe. Eles se tornam positivos quando o bebê reconhece a independência da mãe, amando-a sem as fantasias de onipotência. Os fenômenos e objetos transicionais (travesseiro, brinquedo, dedo polegar) são elos de mediação entre a fase da fusão e a da separação.

A criança somente alcança a criatividade quando fica sozinha com os objetos transicionais. Isso é possível devido à dedicação emotiva da mãe, mesmo estando distante da criança. Essa confiança na dedicação materna faz com que a criança desenvolva a autoconfiança. Nessa análise de Winnicott, pode-se concluir que o amor é uma forma de reconhecimento e, por meio dele, o indivíduo desenvolve uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de autorrealização pessoal.

Para Honneth o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento.

O amor se diferencia do direito no modo como ocorre o reconhecimento da autonomia do outro. No amor, esse reconhecimento é possível, porque há dedicação emotiva. No direito, porque há respeito.

Em ambos, somente há autonomia quando há o reconhecimento da autonomia do outro. A história do direito ensina que, no século XVIII, havia os direitos liberais da liberdade; no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. De modo geral, essa evolução mostra a integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades, que caracterizam a pessoa de direito. Nessa esfera, a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável ao desenvolver sentimentos de autorrespeito.

A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores.

A passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade.

Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.

As mudanças sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade.

Portanto, a lógica dos movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social. Honneth, seguindo as ideias de Hegel, afirma que a eticidade é o conjunto de condições intersubjetivas, que funcionam como condições normativas necessárias à autodeterminação e a autorrealização.

A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. A identidade dos indivíduos é formada pela socialização, ou seja, é formada na eticidade, inserida em valores e obrigações intersubjetivas. Portanto, não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento.

Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento.

Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna.

Mateus Salvadori – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: mateusche@yahoo.com.br

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Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea – ROSSO (TES)

ROSSO, Sadi Dal. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p. Resenha de: TEIXEIRA, Márcia Oliveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v. 6 n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

Nas últimas semanas, enquanto aguardávamos o desfecho do segundo turno das eleições municipais de 2008, embaladas entre outros indicadores pelos constantes recordes no volume de empregos com carteira assinada, o país viveu uma paralisação nacional dos bancários. Seria mais uma greve, caso não fosse simultânea à crise deflagrada por quase duas décadas de hegemonia das teses neoliberais e sua apologia à desregulamentação dos mercados, à transnacionalização e à financeirização do capital.

Seria mais uma greve caso sua pauta de reivindicações não nos permitisse vislumbrar algumas características do mundo do trabalho contemporâneo – a sobreposição de diferentes formas de vínculos e de contratação, a terceirização, a flexibilização, as novas competências e atribuições.

Estes temas e eventos estão em sintonia com as reflexões de Sadi Dal Rosso, em especial com o seu mais recente livro Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea, lançado pela Boitempo Editorial no âmbito da coleção Mundo do Trabalho. Sadi Dal Rosso é professor titular da Universidade de Brasília e sociólogo com formação em filosofia, com passagens por centros de pesquisa europeus e norte-americanos, além da intensa produção de artigos, capítulos em coletâneas e livros. Suas pesquisas analisam as metamorfoses recentes do mundo do trabalho no ocidente capitalista, com destaque para temáticas associadas às condições de trabalho e à jornada de trabalho, essa última compreendendo discussões sobre a história, a flexibilidade, a intensidade e a redução de jornadas, além de uma série de estudos sobre o movimento sindical. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea aborda uma dimensão muito presente nos estudos acadêmicos (e nas pautas sindicais) sobre o trabalho na contemporaneidade ocidental, porém nem sempre aprofundada – a intensificação do trabalho.

Dal Rosso organiza sua análise sobre o processo de intensificação e a categoria de intensificação do trabalho em duas seções. Na primeira, uma discussão teórica da intensificação do trabalho, também desdobrada em duas partes – uma análise do conceito de intensidade do trabalho que abarca a discussão das teorias do trabalho e da mais-valia, seguida de uma descrição dos sistemas de organização do trabalho (taylorismo, fordismo, toyotismo). Ambas as partes são acompanhadas de uma breve, porém cuidadosa, revisão dos estudos contemporâneos da teoria de mais-valia, da produtividade e da intensidade do trabalho.

A discussão da teoria de mais-valia destaca-se no desenvolvimento da argumentação de Dal Rosso. De fato, ele parte da necessidade ou não de atualização da teoria diante das mudanças na acumulação e na reprodução do capital e, por conseguinte, das relações de trabalho. Mudanças geradas no intenso processo de deslocamento da base produtiva do setor industrial para o setor de serviços, com predomínio do capital financeiro. Nesse sentido, a compreensão da intensificação propugnada por Dal Rosso envolve uma revisão crítica de todas as categorias afetadas pelo processo de reestruturação do capital e associadas à teoria do valor trabalho – trabalho morto e trabalho vivo, trabalho material e imaterial.

Dal Rosso constrói sua argumentação em torno da possibilidade de tomar a intensificação como categoria diferenciada da produtividade.

Para consecução desse objetivo, o autor se lançará ao exercício de delimitar o fenômeno da intensificação. E, em contrapartida, de operar uma delimitação na própria categoria de produtividade.

A intensidade, segundo o autor, descreve um processo histórico correlato, mas individuado e, nesse sentido, delimitado histórica e socialmente em sua relação com outros fenômenos, mas em especial com aqueles descritos pela categoria de ‘produtividade’. Por conseguinte, Dal Rosso argumenta que a capacidade compreensiva das relações de trabalho no mundo produtivo contemporâneo é restrita, caso se considere a intensificação como fenômeno subsumido à categoria produtividade. Ou seja, a atribuição de um novo estatuto à intensificação implica o tensionamento da categoria produtividade.

Tensionar sua capacidade analítica dos fenômenos contemporâneos. Fenômenos produzidos pela reestruturação produtiva e pelas relações de trabalho.

Do exercício de formalização, para usar uma expressão do próprio autor, resulta compreender a intensidade como produção de mais trabalho (maior volume de produção e/ou valor de troca) tomando um mesmo período de tempo. O grau de intensidade está, por seu turno, no epicentro da luta de classes entre trabalhadores e capitalistas detentores dos meios de produção.

Os sistemas de organização do trabalho, aos quais Dal Rosso dedica o segundo capítulo, desempenham uma posição destacada não apenas na reprodução do capital produtivo, mas também no enfrentamento das resistências dos trabalhadores à intensificação (e não exatamente à produtividade).

Chamo a atenção do leitor à ênfase dada por Dal Rosso à matriz econômica (ou economicista) do conceito de produtividade. É importante conquanto ele atribui uma matriz sociológica à intensidade, implicando uma maior atenção às relações, às normas de conduta e aos padrões que participam do processo social e histórico de intensificação do trabalho. Assim, as duas categorias envolvem elementos instituintes distintos e possuem estatutos diversos. Essas diferenças ficam patentes quando o autor explicita a produtividade. Diz Dal Rosso: “trabalho é considerado mais produtivo quando seus resultados no momento t2 (depois) são maiores do que no momento anterior t1 (antes)” (p. 25). Produtividade é uma categoria da ordem da quantidade, do aumento de volume e de escala. Ela nos permite gerar medidas precisas. Ela é quantificável e comporta como tal a quantificação da atividade e dos produtos em um determinado período de tempo. Desta feita, é uma categoria afinada com os sistemas de organização da produção e do trabalho, notadamente o taylorismo e o fordismo. E mais: ela é uma categoria própria a uma configuração do capitalismo baseada na hegemonia da produção industrial.

Para Dal Rosso a insuficiência analítica da produtividade manifesta-se quando indagamos como o aumento ocorre, ou seja, quando procuramos compreender o fenômeno em si do aumento de produtividade. Segundo ele, a única situação onde ocorre aumento da produtividade sem envolvimento da intensificação do trabalho é quando “há resultados que decorrem de avanços efetuados tão-somente nos meios materiais com os quais o trabalho é realizado” (p. 25). Tese que lhe permite caracterizar a produtividade como um conceito restrito àquelas situações nas quais os efeitos das transformações tecnológicas são prevalentes (p. 29).

“Um trabalho é considerado mais intenso do que outro quando, sob condições técnicas e de tempo constantes, os trabalhadores que o realizam despendem mais energias vitais, sejam físicas, emocionais, intelectuais ou relacionais, com o objetivo de alcançar resultados mais elevados quantitativamente ou qualitativamente superiores aos obtidos sem acréscimo de energias.

A categoria intensidade do trabalho é reservada para descrever o fenômeno que reúne distintas formas e maneiras de fazer com que o trabalhador produza resultados quantitativa ou qualitativamente superiores, mantidas constantes as condições técnicas, a jornada e número de funcionários. (…) Trabalho mais intenso distingue-se de trabalho mais produtivo à medida que os resultados mais elevados do trabalho são obtidos mediante o acréscimo de energias adicionais do trabalhador e não resultados de ganhos mediante avanços técnicos, como acontece quando se emprega o conceito de produtividade” (p. 196-197).

Dal Rosso parece estabelecer uma forte aliança entre a categoria de produtividade e tudo aquilo descrito como trabalho morto; enquanto a intensidade descreve situações e fenômenos sob a égide do trabalho vivo. Portanto, a categoria intensidade goza de uma maior amplitude analítica para lidar com fenômenos da fase atual da produção capitalista precisamente pela sua relação com a categoria de trabalho vivo. Ao destacar o estatuto sociológico e o fato de ser fixada em regras e normas de conduta, ele parece tomá-la como uma categoria própria para designar atividades do setor de serviços e aquelas afetadas pela reestruturação produtiva, seja pelas mudanças na base técnico-científica ou nos mecanismos gerenciais. Trata-se, assim, de formas de trabalhos transformadas no processo de transição do fordismo para formas de organização e de produção ditas pós-fordista; processo, em geral, designado como reestruturação produtiva. Do ponto de vista teórico, a intensidade tal qual propugnada pelo autor, parece ampliar a capacidade analítica de trabalhos e arranjos produtivos imateriais. Talvez por isso Mais trabalho! esteja recheado de exemplos retirados do setor de serviços.

Entretanto, devemos sempre duvidar de esquemas fáceis, mormente quando está em jogo a teoria do valor trabalho. O próprio Dal Rosso parece resistir à idéia de considerar que o estatuto da categoria intensidade foi transformado pelos efeitos da reestruturação produtiva ao considerar o taylorismo e o fordismo como sistema de intensificação do trabalho. (Ou será o contrário, o estatuto da produtividade é que foi alterado pela reestruturação?). De todo modo, considero que o leitor deve refletir durante a leitura sobre possíveis perdas em termos analíticos quando se opera a delimitação proposta pelo autor na categoria produtividade, separando- a da intensidade.

Ricardo Antunes, no texto Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil (2004), levanta alguns aspectos pertinentes para analisarmos as propostas de Dal Rosso em relação à categoria intensidade e, de modo geral, à situação do trabalho na contemporaneidade.

Primeiro, a reestruturação produtiva do capital no Brasil, que entre outros aspectos é um país de capitalismo tardio, assume formas diferenciadas. Assim, a análise de diferentes setores e ramos da economia redunda em desenhos multiformes (Antunes, 2004). Segundo, a análise da reestruturação produtiva altera a configuração do capitalismo localmente, mas como se tratam de processos recentes não há desenhos conclusivos. A partir das ponderações de Antunes, cabe indagar sobre a capacidade analítica da categoria intensificação (segundo a descrição de Dal Rosso) para compreendermos o mundo de trabalho contemporâneo em países de capitalismo tardio. Países esses nos quais o processo de reestruturação é diverso ou multiforme (para usar a expressão de Antunes), criando arranjos singulares entre diferentes formas históricas de organização da produção e do trabalho; e com relação a esse último, arranjos diferenciados entre trabalho vivo e trabalho morto.

Essa preocupação não escapou a Dal Rosso. Na segunda parte, intitulada “A intensidade do trabalho e os trabalhadores”, o autor discute os resultados preliminares de um estudo desenvolvido por sua equipe com trabalhadores ligados a diferentes setores da economia. Trata-se agora de discutir a capacidade analítica da categoria ‘intensificação’ para lidar com dados empíricos sobre condições de trabalho em Brasília.

A escolha de Brasília não é fortuita. Parte dos estudos sobre a produtividade refere-se ao setor industrial, característica também compartilhada pelas análises sobre a intensificação do trabalho. Brasília, por seu turno, concentra atividades econômicas ligadas ao setor de serviços.

E o estudo de Sadi Dal Rosso envolveu subsetores do setor de serviços pouco presentes nos estudos acadêmicos, como o educacional.

Porém, para tensionar ao máximo sua categoria, o setor industrial não foi esquecido, está representado pela indústria gráfica. Brasília também permitiu a sistematização de dados sobre setor público, representado por órgãos da administração do distrito federal e do governo federal.

O estudo classificou a economia de Brasília em três grupos – capitalista moderno (bancário, telefonia, construção civil, comunicações, shopping centers, escolas privadas, serviços médicos privados, indústria), tradicional (oficinas mecânicas, serviços pessoais, restaurantes, indústria gráfica, emprego doméstico, transporte coletivo, vigilância e limpeza) e governamental- estatal. Os dados foram coletados por intermédio de questionários com trabalhadores.

Considero, todavia, a amplitude da amostra fonte de alguns problemas, bem como a classificação em si de alguns subsetores como capitalista moderno ou tradicional. Mas irei concentrar- me na amplitude. Dal Rosso sustenta o desenho de sua pesquisa argumentando que ele lhe permitiu “avaliar em que medida o processo de intensificação é relevante no conjunto do trabalho local e nacional” (p. 101). Adiante complementa, referindo-se à análise empírica da intensificação, “fornece também uma medida de comparação internacional da transformação em curso das condições do trabalho em distintas sociedades, o que autoriza pensar a intensificação como fenômeno global próprio do capitalismo contemporâneo e não apenas como algo local ou regional devido a particularidades da formação histórica” (p. 101).

Inspirada pelas ponderações de Antunes, pergunto se é possível pensarmos em algo tão geral como o processo de intensificação nacional sem investigar os efeitos diferenciados da reestruturação e os arranjos produtivos resultantes para cada setor e subsetor? Em que medida a amplitude do estudo nos permite distinguir intensificação de produtividade? Considerando a condição de país com um capitalismo tardio e cujos impactos da reestruturação produtiva são extremamente diferenciados, não deveríamos primeiro iniciar estudos circunscritos a um setor e a uma região? Por fim, será que as especificidades da economia de Brasília fornecem elementos capazes de subsidiarem análises futuras sobre a intensificação do trabalho no Brasil? Considero a opção metodológica de Dal Rosso extremamente rica como mapa preliminar para estudos do processo de intensificação. Ele indica caminhos, aponta questões e, principalmente, expõe algumas tendências e situações em curso em subsetores e atividades que merecerão maiores aprofundamentos em futuras investigações do seu grupo de pesquisa. Porém, há problemas quando apreciamos o estudo empírico à luz dos objetivos do autor. A análise da intensificação é prejudicada pela falta de informações e de uma descrição aprofundada de processos como a terceirização, a introdução de novas tecnologias, as mudanças gerenciais na gestão e fusões que acometeram não apenas os setores e subsetores estudados, mas as próprias empresas.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 28., 2004, Caxambu. Anais, 2004. Mimeografado.

Márcia de Oliveira TeixeiraEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: marciat@fiocruz.br

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