Posts com a Tag ‘Sociabilidade’
Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831 | Keith Valéria de Oliveira Barbosa
Keith Barbosa | Foto: ufam.edu.br/notícias
O livro de Keith Valéria de Oliveira Barbosa, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Amazonas, é fruto de sua pesquisa desenvolvida no seu mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
A obra é dividia em quatro capítulos, no primeiro, “Escravidão e doenças: historiografia, fontes e métodos”, a autora buscou analisar como a mortalidade escrava não estava ligada apenas ao contato entre pessoas de diferentes continentes e, portanto, que o tráfico atlântico em si não dá conta de explicar a mortalidade escrava. Em outras palavras, embora o contato entre indivíduos de espaços geográficos distantes inevitavelmente tenha colocado patógenos em condições de causar doenças que eram desconhecidas para os africanos, a questão não pode ser analisada apenas por esse prisma.
As condições de vida da população cativa propiciavam “ambientes” para que enfermidades matassem muito. A falta de alimentos, os maus tratos, a insalubridade do trabalho, as condições higiênicas inadequadas das senzalas, entre outros aspectos, faziam com que a vida de escravo fosse abreviada muitas vezes pela morte. Leia Mais
Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latino-americanos e as redes transnacionais | Adriane Vidal Costa
O movimento das ideias na América Latina (sua produção, circulação e apropriação) e a atuação dos sujeitos que lhes dão forma, os intelectuais, são agentes importantes para a compreensão da história da região e têm recebido atenção dos estudiosos há pelo menos algumas décadas. Sujeitos forjadores de discursos, os intelectuais agem na cultura (muitas vezes de forma estreita com o poder, como críticos ou sustentadores de sua ideologia), mobilizando signos para a transmissão de mensagens a serem decodificadas e/ou apropriadas. Na dinâmica entre matéria e subjetividade, operam a partir de relações, conectando espaços e sujeitos por meio de práticas individuais ou coletivas. As redes por eles gestadas transpassam frequentemente o espaço nacional, contribuindo para o questionamento da gênese de um pensamento, ao mesmo tempo em que possibilitam uma abertura contextual ao pesquisador que se debruçar sobre elas.
Essas reflexões são proporcionadas ao leitor de Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latino-americanos e as redes transnacionais. Organizada por Adriane Vidal Costa, docente do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Claudio Maíz, professor titular em Literatura Hispanoamericana Contemporánea na Universidad Nacional de Cuyo (UNCuyo), a obra é uma iniciativa do Núcleo de pesquisa em História das Américas (NUPHA) e do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, publicada no ano de 2018 como parte da coleção História da Editora Fino Traço. Leia Mais
Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia Heynemann e Maria do Carmo Teixeira Rainho
Em 1965, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau cantaram, em samba-enredo do Império Serrano, uma história dos grandes bailes da história da cidade do Rio de Janeiro.[1]2 Um dos destacados pelos compositores, o último d'”Os cinco bailes da história do Rio”, era o baile da Ilha Fiscal, que o governo da monarquia promoveu em 9 de novembro de 1889 em homenagem à visita de oficiais chilenos ao país – poucos dias antes, portanto, do fim do regime. O tema não era novidade para a escola: em 1953 o Império ficou na segunda colocação no desfile com o samba “O último baile da Corte imperial”, assinado por Silas de Oliveira e Waldir Medeiros. Em 1957, foi a vez da Unidos de Vila Isabel relembrar a efeméride, indo para a avenida com o samba “O Último Baile da Ilha Fiscal”, de Paulo Brandão, ainda que sem tanto sucesso. A presença do baile da Ilha Fiscal nos três sambas sugere sua força como marco para a memória urbana do Rio de Janeiro.
O último e nababesco baile da monarquia brasileira ressurge no livro Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império (EdiPUCRS, 2014), organizado por Jurandir Malerba, Cláudia Heynemman e Maria do Carmo Rainho. O livro reúne artigos de especialistas nas mais diversas áreas (moda, música, gastronomia, esportes e política) sobre uma notável coleção de documentos que o capitão de fragata José Egydio Garcez Palha organizou recolhendo menus, carnês de bailes, partituras musicais e comentários variados na imprensa sobre o baile, seus participantes e seus promotores. Recolhida entre 1889 e 1891, a coleção pertence desde 1930 ao Arquivo Nacional.
Um dos pontos destacados pelos organizadores na apresentação da obra reside no farto manancial de informações sobre diferentes aspectos do fazer cotidiano da cidade que se queria moderna. Desde nuances do fazer da mais alta política em suas recepções diplomáticas aos cochichos e maledicências sugeridas na imprensa, passando pelas preferências estéticas da elite imperial em sua frequência a casas da moda, cabeleireiros e confeitarias, a coleção realça a grandiosidade daquele baile sob a ótica dos personagens da própria época. Mesmo quem não esteve entre os aproximadamente 4 mil presentes à grandiosa festa pôde sentir de perto a grandeza do momento. Do Cais Pharoux dava para apreciar a suntuosidade da Ilha Fiscal fartamente iluminada por fogos de variadas cores, 700 lâmpadas elétricas e 60 mil velas. Do cais, ademais, partiam as damas e senhores da sociedade rumo ao baile.
A recepção aos chilenos se estendeu para além do baile, tendo durado dois meses. Nesse tempo, um interlúdio: a república fora proclamada bem no meio da visita dos convidados daquele país, chegados ao Rio em meados de outubro e partindo da cidade em finais de novembro. Em que pese a mudança de regime, mantiveram-se as variadas atividades propostas aos ilustres visitantes. Não fosse a república, teriam ainda as conversas sobre o baile rendido mais um tanto? Seja como for, o fato é que, 15 de novembro à parte, a grandeza do ultimo baile da monarquia imprimiu sua marca indelével na memória da cidade.
“Dê-me um pouco de magia, de perfume e fantasia e também de sedução”: impressões sobre as festas chilenas.
No livro, os capítulos de autoria de Victor Melo, Carlos Sandroni, Laurent Suaudeau, Carlos Ditadi e de Maria do Carmo Rainho apresentam por meio da análise da imprensa o que os organizadores chamam de “clima de opinião”. De fato, brotaram comentários os mais variados nos jornais da cidade, incluindo a observação de costumes e práticas de elite não tão bem assimiladas por alguns dos convidados presentes no baile. Algo a se estranhar, a princípio, pois segundo Melo, coordenador do Laboratório de História e do Esporte e Lazer da UFRJ, “a cidade já estava acostumada e apreciava atividades públicas” de monta, desde teatros ao turfe e ao remo, passando por festividades religiosas e sociedades dançantes (p. 118-119; 158).
De fato, se nos fiarmos no samba de Ivone, Silas e Bacalhau, a tradição festiva da cidade vem de longe. Segundo o musicólogo Carlos Sandroni, na ausência de formas de comunicação como o rádio, eram as bandas musicais, geralmente militares, que embalavam as festas, numa mobilidade impressionante que lhes permitia tocar em locais diferentes no mesmo dia. Sua onipresença não marcaria apenas a importância e formalidade de ocasiões solenes. Pelo contrário, elas botavam as pessoas para dançar. No baile de Ilha Fiscal tocou-se de tudo: quadrilhas, valsas, polcas e lanceiros animaram os presentes madrugada adentro, até quase o sol raiar, prática comum, aliás, em outros bailes frequentados pelos cariocas (p. 138-140).
Ao som da música, o detalhe das práticas ditas civilizadas – inclusive porte e vestimenta adequados para as danças – passava como forte signo de distinção, aspecto que apontava proximidades políticas e maneiras de inclusão no regime, tema que perpassa toda a obra. Victor Melo, em capítulo sobre as práticas esportivas, apresenta as disputas entre grupos de elite por receber a comissão chilena em seus clubes de remo e de turfe, preferência entre os cariocas mas que dividia as elites. Esses clubes serviam de ponto de encontro e aproximação entre grupos de preferência política comum, como republicanos ou monarquistas, respectivamente (p. 121; 129). Idem para o porte nessas ocasiões ou mesmo à mesa: estima-se que o refinadíssimo banquete oferecido aos chilenos no baile da Ilha Fiscal tenha custado aos cofres públicos 250 contos de Réis, segundo Suaudeau, que é chefe de cozinha, e Debati, pesquisador no Arquivo Nacional, quase 10% do orçamento da província do Rio (p. 162). Repleto de iguarias da culinária estrangeira, especialmente francesa, o banquete foi alvo de crítica de parte da imprensa pelos seus custos e também pelo pouco apreço às “iguarias puramente brasileiras”, segundo matéria n’O Paiz (p. 166). Convidados e garçons também foram alvo da crítica de jornalistas: homens fumando, conversando alto, acotovelando as senhoras, atirando restos de comida ao chão receberam comentários reprovadores. Assim como os criados, considerados desleixados e um tanto “esquecidos” (p. 107, 165). As senhoras não foram poupadas: entre os objetos encontrados após o baile, havia até mesmo espartilhos e “algodões em rama”, usados por debaixo dos espartilhos para dar corpo às mulheres (p. 107). Ao que parece, os algodões perdidos – e que demandavam o manejo, digamos, mais complexo da vestimenta feminina – não foram poucos, segundo Sandroni (p. 144). Não haveria ocasião melhor para manejos mais quentes. Afinal, a proximidade de corpos em danças regradas (ou nem tanto) realçava um tipo particular de experiência sensual que legava às senhoras assíduas frequentadoras de baile a “fama de assanhadas”.
A falta de civilidade pareceu quase geral, segundo observadores, incluindo a adequação da roupa à ocasião. Perder espartilhos não era pouca coisa: frequentada como foi por “senhoras e cavalheiros da fina flor fluminense” (p. 144), festas como a oferecida aos chilenos inscrevem-se, segundo Rainho, especialista em História da Moda, numa “cultura das aparências” que ganhava força entre a elite carioca especialmente nos anos finais do Império. O baile da Ilha Fiscal gerou um apagão no comércio de modas na cidade: não havia costureiras, maisons e cabeleireiros suficientes para tanta dama convidada. Ao mesmo tempo que manuais de etiqueta ensinavam cada vez mais a circunspecção feminina, as roupas atuavam como um poderoso meio de sedução que não cabia nesses manuais (p. 199).
“Algo acontecia, era o fim da monarquia”: aproximações entre cultura e política.
Segundo Rainho, além do mais, algo chamava a atenção nos comentários na imprensa sobre o grandioso baile: a ausência de comentários sobre a vestimenta dos oficiais chilenos (p. 201). Sebastião Uchoa Leite, poeta e ensaísta, em texto originalmente publicado em 2003 para o projeto que deu origem ao livro, apresenta um ponto interessante nesse sentido. Em grande parte dos comentários e reportagens sobre a recepção dos chilenos havia “um clima de oposição crítica ao próprio status quo reinante no país” (p. 101).
“Espécie de miragem”, ainda segundo Leite, o baile teria sido o ponto culminante do significado das “festas” para a monarquia. A observação não deixa de ser paradoxal, dado que a corte de Pedro II era avessa a grandes festividades. Jurandir Malerba, professor da PUCRS, lembra que o último baile no Paço Imperial ocorrera em 1852 após o encerramento das atividades do Parlamento (p. 39). Nesse ínterim, a família imperial teria se contentado com apresentações teatrais um tanto amadoras e para poucos convidados. No que Malerba lança uma hipótese interessante: considerando a destreza política de Dom Pedro II e sua saúde já frágil que cada vez mais servia como justificativa para seu distanciamento da condução direta da política nacional, o baile da Ilha Fiscal pode ter sido calculado para encenar “o grand finale de seu reinado” (p. 42-43).
Minuciosamente representado como signo de civilização em terras americanas, o Império do Brasil apresentava também seu lado moderno por meio de sua capital, o Rio de Janeiro. Cláudia Heynemann, supervisora de pesquisa no Arquivo Nacional, chama atenção para o vasto roteiro de visitas da comissão chilena, que em muito se aproximava daqueles propostos por livros de viagem do oitocentos (p. 57). Malgrado a presença de alguns problemas como calçamento e arborização, o processo de modernização pelo qual passava a cidade na segunda metade do XIX entrelaçava natureza e cultura por meio de obras como as do Passeio Público, do Campo da Aclamação e do Jardim Botânico (p. 65), uma modernidade ao mesmo tempo pedagógica e disciplinar (p. 70). Cidade já bastante grande, que contava com 226 mil pessoas livres e quase 5 mil escravos segundo o censo de 1872, o Rio de Janeiro se complexificava: novos bairros foram criados, acompanhados pela expansão do serviço de trens e bondes. Novas práticas de sociabilidade surgiam a seguir marcadas por hábitos europeizados, segundo Vivien Ishaq, doutora em história. A rua do Ouvidor mantinha o cetro de polo dos modismos e do bom gosto, mas cada vez a cidade também se dividia em várias se considerarmos os usos distintos dos espaços pelos grupos de diferentes camadas da sociedade (p. 81-84).
Em comum a todos os artigos de Festas Chilenas está o destaque para o baile como espaço de autorrepresentação tanto das elites imperiais quanto do próprio regime: esse ponto é especialmente destacado por Sebastião Uchoa Leite e Jurandir Malerba. Leite, ao sublinhar aspectos políticos de ocasiões festivas, neste caso por meio da imprensa através das críticas a usos e maneiras apresentados no baile, afasta o caráter “ameno” da ocasião. Houve encontros entre os aproximadamente 4 mil presentes mas havia também tensões (p. 109-110), presentes já no momento de seleção dos convidados. Malerba, ao realçar o baile como momento político, o faz invertendo o argumento recorrente de que a monarquia apostava, ali, no início de um esplendoroso terceiro Reinado, sob a batuta de Isabel e secundada por seu esposo, o conde d’Eu. Para o autor, o baile foi um último lance político mas com repercussões na esfera da cultura: era a memória da monarquia que estava em jogo.
Malerba distancia-se, assim, do argumento de José Murilo de Carvalho de que o baile teria sido um “golpe de publicidade” pró-continuidade monárquica, pensado por este autor em grande medida a partir de obras ficcionais de Machado de Assis. Em sua argumentação, Malerba oferece ao monarca (e ao regime como um todo) o papel de agente de sua história – e da representação da memória de seu reinado. Ainda que lançado como hipótese, o argumento é interessante na medida em que se aproxima de discussões mais recentes no campo da cultura acerca de sua percepção como manancial de estratégias referendadas pelo contexto, e não como um todo encerrado em si mesmo (segundo uma concepção vulgar e equivocada, porém corrente, de sistema).
Na esfera da historiografia contemporânea, a micro-história propõe um importante debate nesse sentido. Sua aproximação com a antropologia, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz, promoveu o entendimento da cultura como um campo no qual o sentido dos símbolos deve ser entendido na análise de situações sociais específicas – é exemplar a “descrição densa” da briga de galos balinesa proposta por Geertz.[2] Mais especificamente, a micro-história investe seu esforço de análise nas ressignificações dos símbolos em situações de disputas sociais, tendo em vista a reflexividade dos sujeitos e sua capacidade de ação racional – como não se lembrar, por exemplo, do pensamento do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg?[3] Para Giovanni Levi, em artigo de revisão das tendências de análise na micro-história, “a abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado [tomando o] particular como seu ponto de partida […] e prossegue, identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico”.[4] Longe da dicotomia que prevaleceu em discussões sobre agência e estrutura ou, de modo mais específico, entre cultura e política, Festas Chilenas lança um olhar sobre a esfera cultural que em muito se alimenta do próprio contexto político. Embora o imperador não ofertasse bailes de monta havia décadas, isso fazia parte do script do fazer monárquico. A suntuosidade da ocasião parecia acenar, assim, menos para o futuro que para o passado de grandiosidade da própria monarquia.
O samba do Império Serrano traz tais elementos para dentro da cena: “o luxo, a riqueza, imperou com imponência” ainda no baile da Independência. No baile da Ilha Fiscal se brindava “aquela linda valsa, já no amanhecer do dia”. “Iluminado estava o salão, na noite da coroação” de Pedro II. Acompanhando os cinco grandes bailes da cidade eleitos pelos compositores, dois localizam-se nos tempos do reinado de Pedro II. Ainda que o recurso ao fausto das festas apresentadas no samba tenha relação com a própria lógica de composição interna do samba-enredo, que ganhava novo formato especialmente nas mãos de Silas de Oliveira,[5] na memória urbana do Rio de Janeiro aquele momento parecia estar encravado como digno de rememoração. Não foi esse o único samba, aliás, a lembrar o baile: mesmo que o samba de 1953, também de Silas, tenha sugerido que nem imperador nem a corte esperavam o fim da monarquia, o esplendor do baile agradara a todos, inclusive os homenageados.[6]
Na esteira da hipótese de Malerba, que vê o baile como grand finale à luz do modus operandi do regime monárquico e de suas lógicas de formação de laços centralizados na figura de Pedro II (“não se faz políticas sem bolinhos”, lembrava o barão de Cotegipe), seria interessante perceber as inscrições desse último movimento do regime não apenas na memória da cidade, mas na memória popular urbana do Rio. Mesmo que todos os artigos da obra considerem, por exemplo, matérias em jornais como expressão de olhares algo debochados e um tanto críticos do baile, da elite imperial e do regime em si, a aproximação dessa perspectiva com outras do restante da população da cidade poderia iluminar mais o argumento central. Poucos anos mais tarde João do Rio chamaria a atenção para a forte presença de símbolos imperiais entre a população pobre e negra da capital da agora república.[7] Os grupos de capoeiras que desmantelavam conferências de republicanos e, após a abolição, a própria guarda negra suscitavam temor frequente entre os grupos aderentes ao novo regime instaurado enquanto os chilenos nos visitavam. Embora nossas fontes disponíveis não o expressem de maneira discursiva, alguns aspectos da cultura popular da cidade parecem ter alguma coisa a nos dizer sobre os significados não só do último baile da monarquia, mas do regime monárquico como um todo, mais tarde cantados “em sonho” na memória urbana carioca.
Notas
1. Vale escutar o áudio do samba-enredo da escola daquele ano, de autoria dos três, intitulado “Os cinco bailes da história do Rio“. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=laEBlDSZQZc . Acesso em 10 de abril de 2016.
2. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: LTC, 2008.
3. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes:o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
4. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In BURKE, Peter (org). A escrita da história:novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992, p. 154-155.
5. VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.
6. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
7. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
Carlos Eduardo Dias Souza – Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: kdudiaz@gmail.com
MALERBA, Jurandir; HEYNEMANN, Cláudia; RAINHO, Maria do Carmo Teixeira (Orgs.). Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Eduardo Dias. O quinto baile da história do Rio. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 210-214, maio/ago., 2016.
Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica | Alberto Paz
Da esquerda para direita: Robert Slenes e Adalberto Paz | Foto: Acervo de Adalberto Paz |
Praticante da história social, o professor da Universidade Federal do Amapá (Unifap) Adalberto Paz publicou em 2014 o seu primeiro livro, resultado de sua dissertação de mestrado defendida no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2011. Nesta obra, o autor enfoca o primeiro projeto industrial de exploração mineral na Amazônia, implantado no então Território Federal do Amapá (localizado no norte do Brasil), na década de 1940, pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi), que se associou à norte-americana Bethlehem Steel Company.
Atento a uma sociedade onde predominavam formas tradicionais de trabalho, Adalberto analisa o impacto que o sistema de produção icomiano gerou no cotidiano das pessoas que viviam no Amapá. O autor também buscou entender de quais formas o caboclo da região, acostumado a produzir para sua subsistência, no ritmo do ciclo da natureza, reagiu ao trabalho formal e hierarquizado, bem como às regras impostas pela empresa. Para tanto, o historiador utilizou-se de variadas fontes, como: relatos orais de ex-trabalhadores da Icomi, livros de memórias, artigos de jornais vinculados ao governo territorial, documentos oficiais como relatórios de estado e da empresa, até processos judiciais, encontrados no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá.
O trabalho com processos judiciais é algo recente na historiografia amapaense, mas que vem atraindo mais e mais pesquisadores interessados nos conflitos sociais, como Sidney Lobato, que, em tese defendida na Universidade de São Paulo (USP), buscou analisar as táticas de sobrevivência usadas pelos trabalhadores urbanos em Macapá, entre 1944 e 1964, diante das inseguranças cotidianas por eles vivenciadas.[1] Todavia, no âmbito nacional, há já algumas décadas que os autos da justiça vêm sendo explorados por pesquisadores. Como exemplo, podemos destacar Maria Sylvia, que defendeu, no ano de 1964, a tese Homens livres na ordem escravocrata também na Universidade de São Paulo[2], período de grande desconfiança quanto ao uso desses documentos pelo historiador.
Na década de 1980, Sidney Chalhoub, a partir de Trabalho, lar e botequim[3], travou calorosos debates sobre as potencialidades e limitações dos processos-crimes, pois, ainda existia um forte ceticismo no que tange ao potencial dessas fontes. Contudo, nos últimos 30 anos, seu uso tornou-se bastante recorrente. Os autos criminais e cíveis possibilitam ao pesquisador preocupado com os conflitos sociais conhecer o cotidiano dos trabalhadores e as diferentes atividades destes fora do ambiente de trabalho, tendo como base as narrativas das contendas judiciais. Tais documentos passaram a ser um importante caminho para historiadores que adotam a perspectiva de baixo, um meio de dar maior visibilidade às experiências das classes subalternas.
A obra está dividida em três capítulos. No primeiro, o autor analisa as características da sociedade amapaense na década de 1940, bem como, as transformações ocorridas a partir do momento em que o Amapá se tornou Território Federal, desmembrando-se do estado do Pará, o que acarretou muitas mudanças sociais, econômicas e políticas. Nesta década, no centro deste território, foi encontrada uma grande jazida manganês de alto valor. O segundo capítulo focaliza o cotidiano do trabalhador na década de 1950, momento em que estava sendo instalada a infraestrutura do projeto Icomi. No seu último capítulo, Adalberto Paz, aborda a experiência dos operários dentro de uma cidade construída pela mineradora (company town), no interior da selva amazônica, e as relações desse operariado com o governo territorial – capítulo que também versou sobre as primeiras organizações sindicais na região.
Após a criação do Território Federal do Amapá e a nomeação de Janary Gentil Nunes para governar a região houve uma forte tentativa de modernizar a sociedade territorial. Para tanto, um dos caminhos, na visão dos governantes, seria o investimento em pesquisa que ensejasse o aproveitamento em larga escala das riquezas minerais do referido espaço amazônico. Assim, tendo como fonte artigos do jornal Amapá, Adalberto Paz afirma que Janany ofereceu um prêmio para quem levasse a ele provas concretas da existência de minérios no Amapá. Um regatão da região, Mario Cruz, sabendo da premiação, levou uma pedra de manganês ao governador. Paz afirma que a expedição de Mário ocorrera antes da divulgação da premiação que ficaria conhecida como o marco inicial da exploração mineral no Amapá.
O manganês encontrado era de alto teor e excepcional valor comercial, superior a muitas jazidas conhecidas naquela época. A partir disso, criou-se o mito em torno da viagem do aventureiro, o que passou a ser largamente divulgado e propagandeado por Janary Nunes, que se apresentava como o grande incentivador do aproveitamento das riquezas locais. A expedição de Cruz foi divulgada pelo jornal Amapá e pela Rádio Difusora, veículos ligados ao governo territorial.
Janary de várias maneiras buscava uma aproximação com o trabalhador da região. Este que estava acostumado com a extração da castanha, com os seringais e com os veios de ouro, mundos do trabalho muito diferentes do novo sistema produtivo que a Icomi implantou. Os discursos do governador eram elaborados cuidadosamente. Neles, Nunes buscava a valorização do elemento humano local, o caboclo, imagem-síntese do trabalhador amapaense. Com isso o governador clara e intencionalmente se aproximava do discurso trabalhista do presidente Getúlio Vargas, no mesmo período.
Quais seriam, então, as características desse trabalhador que habitava a região nos anos 1940? Adalberto Paz responde tal pergunta no primeiro capítulo. O autor buscou então compreender e identificar quem era esse trabalhador antes de tornar-se mineiro/operário. Para isso, consultou pesquisadores que tinham passado pela região. Assim, Paz percebeu que dois grandes segmentos extrativistas existiam na Guiana Brasileira, na década de 1940, “o vegetal, com a coleta da castanha-do-Pará e o da borracha; e o mineral, com a garimpagem do ouro” (PAZ, 2014, p.37). Cada atividade exigia um conhecimento específico, porém, muitos trabalhadores desenvolviam mais de uma durante o ano.
Por meio dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), o historiador trouxe para seu trabalho detalhes dessas atividades. Segundo Antônio Teixeira Guerra, um dos pesquisadores citados por Paz, muitos seringueiros também eram castanheiros, o que era comum, pois, no período das chuvas “entre os meses de janeiro e abril – os trabalhadores apanhavam as castanhas nos médios e altos cursos dos rios e na estiagem – entre os meses de setembro e dezembro – dedicavam-se a extração do látex das seringueiras nos baixos cursos” (PAZ, 2014, p. 39). Importa salientar que os produtos eram negociados por meio do sistema de aviamento.
O sistema de coletas era uma atividade tradicional nesse espaço, e a possibilidade de dinamizar o mercado interno era vista com desconfiança pelo caboclo. Segundo o autor, alguns pesquisadores acreditavam que a falta de experiência, o emprego de métodos inadequados levaram os caboclos a tentativas mal sucedidas na agricultura, pois tais trabalhadores estavam acostumados a obter o seu sustento através do extrativismo.
Outro ponto que merece destaque no estudo de Adalberto Paz é a crescente presença de migrantes egressos do Norte e Nordeste, a maioria dos trabalhadores não especializados que rumaram para a região para compor a mão de obra proletarizada. Estes que eram formados por categorias de trabalhadores que já existiam em diversas regiões do país. Porém, afirma o autor, nas primeiras atividades da empresa Icomi na região (pesquisas e prospecções), os trabalhadores braçais eram originários de diferentes grupos de extrativistas, antes dispersos no interior do Amapá, nas ilhas do estado do Pará e nas cidades amapaenses interioranas. Importa ressaltar que muitos trabalhadores viram na instalação do empreendimento industrial a possibilidade de se desvencilharem das antigas práticas extrativistas, que demandavam muito trabalho e que amiúde geravam ganhos irrisórios.
No segundo capítulo, Adalberto Paz, traz os processos judiciais como principais fontes de análise, documentos que hoje são encontrados no arquivo do Fórum do Tribunal de Justiça de Macapá. Por meio de autos trabalhistas e criminais, o autor chega ao cotidiano dos trabalhadores amapaenses durante a década de 1950. Momentos de lazer, sociabilidades, e conflitos fora do ambiente fabril foram identificados. Certamente um dos principais méritos do autor nesta obra.
Muitas vezes, tendo como espaço de sociabilidade os bares da antiga Doca da Fortaleza, que se localizava no espaço que hoje é o centro comercial de Macapá, bem próximo das modernas construções que estavam sendo erguidas pelo projeto “civilizador” do governo territorial, após a expulsão das pessoas que ocupavam tradicionalmente aquele espaço. A Doca era bastante visitada pelos trabalhadores amapaenses. Muitos operários, quando recebiam os salários da mineradora Icomi, tinham esta área de lazer como destino imediato.
Contudo, o grande fluxo migratório, gerado, principalmente pela oferta de emprego na região, deu destaque a outros ambientes de lazer como: o Porto de Santana, Porto Platon e Terezinha. O usufruto da prostituição era um dos lazeres mais procurados. Paz consegue identificar as minúcias dos conflitos nessas localidades e peculiaridades das pessoas que ocupavam esses lugares por meio dos inquéritos judiciais. Casos amorosos envolvendo mineiros e meretrizes, brigas entre trabalhadores de diferentes regiões, acertos de contas travados nas festas e boemias noturnas.
Não obstante, ao analisar artigos do jornal Amapá, o autor afirma que na nova sociedade que o governo territorial pretendia fundar não havia espaço para criminosos, pessoas vingativas. Criou-se a ideia de reformulação social e moral. Mostrava-se para os trabalhadores que eles não mais estavam vivendo em um período de desamparo e exploração desordenada, mas que era necessário mudar os hábitos. Para isso, buscava-se educar as novas gerações. Tais mudanças estavam em consonância com os objetivos da mineradora Icomi. O estilo de vida boêmio de vários trabalhadores chamava a atenção da companhia, fazendo com que esta buscasse meios para cultivar comportamentos moralmente regulados, principalmente na segunda fase do empreendimento.
Ainda analisando os documentos judiciais, o autor identificou alguns conflitos trabalhistas que envolviam trabalhadores e seus patrões. Eram desentendimentos envolvendo questões hierárquicas. Empregados que, ao reclamar melhores condições de trabalho aos seus superiores, acabavam sendo demitidos por justa causa. Assim, os processos trabalhistas possibilitaram ao pesquisador apreender detalhes desses conflitos e problemas de relacionamento nos espaços da empresa, além das origens da mão de obra, condições de trabalho e o relacionamento dos operários com a mineradora. O pesquisador, também, destaca em seu livro a presença de vários processos sem conclusão, o que deixa entrever certa fragilidade do poder judiciário local. Afirma o historiador que era recorrente a demora no encaminhamento dos processos, a perda de prazos, o que inviabilizava o estabelecimento de sentenças.
Interessante observar na narrativa de Adalberto, que ele faz uma desconstrução dos discursos oficiais propalados, incansavelmente, pela Icomi, onde estes tratavam dos êxitos na execução dos projetos e os progressos proporcionados pela empresa a uma “região selvagem”. Porém, através de inquéritos policiais, chegou-se aos acidentes de trabalho, mortes e sofrimentos que a narrativa oficial intencionalmente não mencionara. E acrescenta o autor, “se nos detivéssemos apenas naquilo que a companhia produziu sobre si mesma e naquilo que o governo territorial dizia que ela representava, não iriamos muito além do otimismo ingênuo” (PAZ, p. 149). De fato, as análises dos documentos judiciais romperam esse silencio.
Na última parte de seu trabalho, o autor trouxe como fontes os livros de memórias, biografias, documentos que foram produzidos pela mineradora Icomi e depoimentos de ex- trabalhadores para poder chegar às experiências e ao cotidiano do operariado dentro de uma das cidades construídas pela empresa, no interior da Amazônia, a company town de Serra do Navio, hoje sede de um dos municípios do estado do Amapá. Neste espaço, ainda permanece a estrutura urbanística construída pela Icomi no início da década de 1960, tornando-se um lugar que abriga lembranças desse passado recente, um lugar de memória.
Importa salientar que a empresa construiu dois núcleos habitacionais para os trabalhadores no Território Federal do Amapá e que, apesar de os documentos e estudos denomina-las de vilas operarias, Adalberto afirma que foram autênticas companies towns, uma chamada de Serra do Navio e outra, edificada nas proximidades do Porto de Santana, denominada Vila Amazonas. Ambas começaram a ser construídas após a empresa ter assegurado a infraestrutura necessária para escoar o minério. Para o autor essas construções tinham como função “‘ajustar’ e normatizar a imensa maioria dos trabalhadores locais não especializados dentro dos padrões de produtividade e ritmos de trabalho da moderna economia capitalista industrial” (PAZ, 2014, p. 167). Buscando forjar comportamentos baseados em um modelo de família estável.
Ambas foram um recurso de controle do proletariado pela Icomi. Todavia, ao contrário do pensamento de muitos pesquisadores, Paz percebe que o trabalhador de Serra do Navio, enxergava o controle a que estava sendo submetido, pois, apesar de todas as estratégias de normatização da empresa, os operários eram capazes de criar estratégias de subversão através dos próprios instrumentos de controle de sua vida social.
No entanto, a tentativa de controle dos trabalhadores acontecia de variadas formas. O que é observado pelo autor através das entrevistas de pessoas que viveram nos núcleos operários, onde cartilhas com as orientações eram distribuídas. Adalberto destaca que a Icomi realizava inspeções sem avisar previamente os moradores das vilas primárias e intermediárias de Serra do Navio. Caso a avaliação fosse negativa, os operários eram particularmente repreendidos. Vários limites e regras de condutas eram impostos. Todavia, o autor verifica nas entrevistas que ainda era possível driblar a fiscalização.
Muito já foi escrito sobre a presença da mineradora Icomi no estado do Amapá. O que ratifica a importância e influência econômica, política e social que teve tal empreendimento na região, fazendo parte da história de muitos amapaenses e sendo o primeiro dessa magnitude a buscar a extração de minérios na Amazônia. Há muitos documentos a serem carreados para a pesquisa da história social do trabalho no Amapá. No atinente aos trabalhadores da Icomi ainda há muito a ser estudado, como, por exemplo, as questões relativas à saúde do trabalhador, que podem ser analisadas por meio de prontuários médicos dos operários que se encontram presentes no arquivo da empresa no município de Santana, e do jornal a Voz Católica. Certamente a leitura atenta de tais documentos pode trazer grandes contribuições para estudos das experiências do trabalhador amazônico.
Notas
1. Ver: LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá (1944-1964). Tese de Doutorado em História Social defendida na USP, 2013.
2. Ver: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
3. Ver: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.
Danilo Mateus da Silva Pacheco – Pesquisador do Laboratório de Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia (Cnpq/Unifap). Professor da rede estadual de ensino no Amapá (Sead-AP). Especialista em História e Historiografia da Amazônia (Unifap). É mestrando no Mestrado Profissional em Ensino de História (Profhistória/Unifap), e bolsista da Capes.
PAZ, Adalberto. Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica. Belém: Paka-Tatu, 2014. Resenha de: PACHECO, Danilo Mateus da Silva. O trabalhador amazônico e o novo sistema de produção industrial. Revista Tempo Amazônico, Macapá, v.3, n.1, p.200-206, jul./dez., 2015. [IF]
Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis – DAUSTER et al. (REi)
DAUSTER, T.; TOSTA, S. P.; ROCHA, G.(Org.). Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. Resenha de: SANTIAGO, Flávio. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 1, p. 117-122, jan./jun. 2012.
A obra em destaque traz como temática principal a articulação entre os estudos da antropologia e educação, apresentando, através de experiência etnográficas, os encontros entre os aportes de ambas as ciências. Os autores e as autoras unem esforços no sentido de possibilitar a compreensão do significado da antropologia enquanto ciência que contribui para o entendimento dos processos educativos para além dos limites físicos da escola. Nesse sentido, tratam de questões como pluralidade cultural, discriminação e outras temáticas relevantes no campo pedagógico, explicitando as relações existentes entre a antropologia e a educação enquanto um desafio e uma necessidade de ambos os campos frente a princípios e práticas especificas destinadas a sujeitos concretos que por sua vez, são também portadores de singularidade e especificidades.
A atual relação existente entre antropologia e educação tem por meta responder às questões postas pela cultura no tempo presente, procurando o reconhecimento da diversidade social e cultural de diferentes grupos, possibilitando a abertura de um debate, reflexão e intervenção, que acolhe desde o contexto cultural da aprendiza¬gem, os efeitos sobre as diferenças culturais, raciais, étnicas e de gênero, até os sucessos e insucessos do sistema escolar em foco na ordem social em mudança. (GUSMÃO, 2011) A partir deste contexto conceitual pesquisadores/as e professores/as, com base em pesquisas etnográficas, são provocados a escrever ensaios que apresentem processos de sensibilização para a compreensão de outras formas de representação, classificação e organização do cotidiano, promovendo um exercício prático da interfase do encontro entre a antropologia e a educação.
Raúl Iturra inicia o livro com o capítulo “A epistemologia da infância: ensaios de antropologia e educação” desenvolvendo uma análise sobre a infância, a partir das relações sociais e da cultura a qual a produz, observando os processos de formações conceituais que baseiam as teorias sobre a infância. Segundo Iturra, epistemologia não são apenas um debate filosófico da origem inata, racional, empírica e dialética do saber dos conceitos e da realidade e seus fatos, trata-se de uma metáfora teórica de acadêmicos que devem lembrar as formas e maneiras que essa realidade é organizada e como é aprendida e transmitida entre gerações. A partir desta premissa, Iturra faz seu estudo da infância e da criança, verificando o direito canônico que é um documento que “educa” moralmente as relações e julga as formas em que o individuo deve se comportar na sociedade. Vale lembrar que as leis sociais surgiram desse documento. Com isso, as relações, a maneira que as crianças estão na sociedade são reflexos da maneira que os adultos as enxergam e julgam como elas têm que ser e estar na sociedade.
Para Iturra, a infância recebeu sua epistemologia conforme a cultura a qual vive e que toda criança nasce sobre os signos desta cultura, não se constituindo somente como um indivíduo isolado, mas sim sendo a síntese de sua ancestralidade, assim como mais tarde será também dos seus descendentes.
Gilmar Rocha nos apresenta a importância dos estudos de Margaret Mead, que percebe os processos de alteridade como forma de aprendizagem para o campo da antropologia e da educação. Para o autor, as etnografias de Margaret Mead são mais do que descrições dos costumes de povos primitivos, como sugere o sentido comum da palavra; são também vias de acesso à cultura do outro, às suas visões de mundo, e aos seus sistemas de significados. Do ponto de vista pedagógico, elas fornecem modelos alternativos de experiências para problemas relativamente semelhantes vividos nos Estados Unidos e nas sociedades contemporâneas. Se Mead elegeu a educação como um caminho possível para se aprender, e aprender com a cultura do outro, no sentido inverso, descobrimos em suas etnografias um caminho fecundo capaz de nos levar a pensar sobre nós mesmos e sobre nossa cultura educacional. No capítulo: Aprendendo com o outro: Margaret Mead e o papel da educação na organização da cultura, Rocha discute a importância dos estudos de Mead para o campo da antropologia e da educação.
Para Mead a educação utiliza uma metodologia que permite penetrar na cultura e na personalidade de uma sociedade e serve como instrumento de “engenharia social” a serviço da construção do caráter nacional.
Em seguida, Tânia Dauster, no capítulo “Escrever: formação e identidade num universo de escritoras”, faz um mapeamento dos processos de formação, construção de identidades e representações práticas de escritas de oito escritoras. A autora faz entrevistas em diferentes locais e ouve desde a vida pessoal das autoras até as suas publicações, desenvolvendo seu estudo a partir da metodologia etnográfica.
Lucilena Ferreira apresenta no capítulo “Sinal fechado: representações e práticas de leituras de alunos do ensino médio de uma escola pública carioca” um estudo etnográfico das representações e práticas de leitura de alunos do ensino médio de uma escola pública do Rio de Janeiro, tendo como foco, a influência do ensino de língua e literatura na relação dos alunos com a leitura. A abordagem teórica utilizada tem como base os trabalhos de Roger Chartier, na perspectiva da história cultural, que conceitua as identidades como esquemas construídos de classificação e julgamento que organizam a apreensão do mundo, sendo sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as geram.
Ricardo Viera no capítulo “Do lar à escola: a hegemonia das práticas escolares e a antropologia da educação em Portugal” apresenta a importância da antropologia para a compreensão de processos educativos e faz uma exposição do desenvolvimento da antropologia da educação em Portugal, com particular relevo para os de Raúl Iturra.
Na perspectiva de Viera a antropologia da educação deverá alertar e sensibilizar professores, agentes educativos, políticos e sociedade civil para a necessidade de construção de pedagogias devidamente contextualizadas, capazes de permitir o sucesso escolar para todos. Viera se aproxima muito ao pensamento de Gusmão (2011), quando afirma que existem grupos que devem ser reconhecidos em sua diversidade sociocultural, distinguindo qualitativamente as diferenças, ou seja, levar o olhar bem longe e tão profundo, de modo que se compreendam as propriedades do que é diferente, ou seja, a natureza do que seja diferente e o que constitui a diferença.
Viera apresenta as singularidades das crianças, demonstrando o processo pelo qual elas constroem e reconstroem o mundo. Salientamos que este processo não se trata de uma cópia, mais sim de uma reinterpretação do mundo, a qual se constroem a partir dos referenciais culturais de cada criança. A criança não é socializada num único contexto cultural.
Alexandre Barbosa Pereira, no capítulo “Jovem e ritual escolares” com base em uma pesquisa etnografia realizada no interior de escola pública, busca evidenciar as múltiplas relações empreendidas pela juventude contemporânea no ambiente escolar, abordando a questão do ritual como dispositivos de transmissão e perpetuação de conhecimentos. Em sua experiência etnográfica, Viera percebe que existe uma grande tensão entre a lógica dos docentes e a dos estudantes, a primeira prezando mais ordem as regras das instituições escolares e a disciplina, a segunda se pauta mais pela divisão, a gozação e a busca de quebrar regras institucionais. Um ponto fundamental para a compreensão destas tensões situa-se na questão da autoridade: Como se impor, como se fazer ouvir, como chamar a atenção e como motivá-la, essas eram as indagações mais levantadas pelos professores em sua tarefa de ensinar os jovens e inquietos alunos.
Em seguida no capítulo “Pelos mares da baía de Ilha Bela”, Anderson Tibau escreve um ensaio metodológico e etnográfico acerca do seu encontro com os professores e estudantes de ilha bela. O itinerário de formação de um pesquisador é repleto de desafios, surpresas, aspectos extraordinários, solidão, muitas situações de contato. Nadando a favor da corrente das experiências da cultura. Dentro desse processo metodológico, o olhar e o ouvir estão para a percepção assim como o escrever está para o pensamento. A investigação empírica pode ser dividida em duas etapas: a pri-meira seria o próprio trabalho de campo “a atividade in loco”, e a segunda corresponderia à escrita a distância dos fatos observados, o plano do discurso. No trabalho de campo, Tibau utiliza a fotografia como uma forma etnográfica de observação da cultura estudada. A fotografia é concebida como representação da realidade e suporte às anotações do diário de bordo, o que favorece a construção de uma narrativa visual que seja eficaz e contenha informações interpretativas acerca de uma determinada realidade. No capítulo seguinte “Cultura e cor na escola”: uma etnografia com adolescentes negros de elite, Sandra Pereira Tosa e Pollyanna Alvez apresentam uma etnografia realizada com adolescentes negros de elite, alunos do ensino médio de uma escola da rede particular do município de Belo Horizonte.
O estudo teve como objetivo central, compreender o processo de construção da identidade de adolescentes negros de elite. Identidade étnica como um caso particular de identidade social, sendo ela própria uma ideologia e uma forma de representação coletiva. Objetivou-se também compreender o sentido de pertença num jogo dialético entre a semelhança e a diferença – a identidade contrativa que abrange semelhança e diferença nos tempos com o/a ou outros/as. Para as autoras, a construção de etnografia na educação ou em qualquer outro campo, requer a realização de três atos de conhecimento, não necessariamente subsequentes, mas na maior parte do tempo integrados: dos saberes das antropólogas que lá chegarem, ou do olhar; dos saberes dos nativos com os quais convivemos e dialogamos, ou do ouvir; dos saberes resultantes desse encontro etnográfico, ou do escrever.
As autoras concluem com a pesquisa etnográfica, que as representações sociais em relação aos negros são carregadas de estereótipos negativos, sobretudo no que se refere sua corporeidade. O sentimento de pertencimento a uma identidade étnico-racial implica a aceitação de uma origem e a recusa do branqueamento, impregnada de valores eurocêntricos, como ocorreu no caso brasileiro. Por fim, o último capítulo “Educação quilombola entre saberes e lutas”, escrito por Neusa Gusmão e Márcia Lúcia de Souza, apresenta educação quilombola como uma demanda social que se insere nas políticas públicas brasileiras, se constituindo como uma luta por igualdade nas diferenças. Para as autoras pensar a educação quilombola seria buscar uma escola para a diversidade, em que professores e gestores tivessem em sua formação condições para o trabalho pedagógico com toda e qualquer expressão da diversidade cultural.
O conjunto de capítulos que compõe o livro Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis nos permite uma reflexão sobre as múltiplas interfaces entre a educação e a antropologia, possibilitando através dos aportes metodológicos de experiências etnografias, perceber as diferentes construções sociais relativas à cultura e ao processo de diferenciação dos indivíduos. Esse olhar antropológico voltado para o campo da educação permite uma ampliação de sentidos na medida em que as relações sociais na escola, os processos de transmissão de saberes no cotidiano, a formação de docentes atravessam as fronteiras dos espaços e das práticas educativas formais e não formais.
Referências
GUSMÃO, Neusa M. M. Antropologia, diversidade e educação: um campo de possibilidades., São Paulo, v. 10, p. 32-45, 2011.
Flavio Santiago – E-mail: flavio.fravinho@gmail.com
Family Life and Sociability in Upper and Lower Canada, 1780-1870 – NOËL (CSS)
NOËL, Françoise. Family Life and Sociability in Upper and Lower Canada, 1780-1870. Montreal & Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2003. 372p. Resenha de: HOFFMAN, George. Canadian Social Studies, v.39, n.2, p., 2005.
In Family Life and Sociability in Upper and Lower Canada, 1780-1870, Franoise Nol portrays middle class family life in the mid-nineteenth century. The book is divided into three parts. Part one is entitled The Couple and deals with courtship and marriage. The second part concerns parents and children and discusses childbirth, childhood and parent-child relationships. The last section discusses kinship ties and community life.
The book contains several generalizations related to Canadian family history in the 1800s. The author contends that most couples married for love. Companionate marriage was the norm, and the role of parents in mate selection was no longer as significant as it had been. As well, Nol shows that relations within families were affectionate. Parents showed an extraordinary concern for their children, which continued even after they married and left home. She also illustrates that much of family life took place beyond the door of the home. Families were a part of a large social network which included kin, friends and neighbours. Sociability was an essential part of family life.
Nol’s account has many strengths. The research, as indicated by the endnotes and bibliography, is impressive. The author shows a broad knowledge of her subject. She links her findings to scholarship in the United States and Britain. She is always aware of the larger picture. Parallels are drawn between families in the Canadas and what American historians of the period refer to as the rise of the Republican Family. When discussing child rearing, she refers to the Enlightenment and the influence which thinkers such as Locke and Rousseau were having on the view that children could be nurtured. Such analysis illustrates the significance of family history as a field of study. Family history is not merely human interest stories from the past. Nor is it titillating tidbits related to love, courtship and marriage. Rather, as Franoise Nol shows, it is an important part of social history which helps us to better understand the overall nature of past societies.
I would suggest that readers begin this book by studying the introduction. Here the author discusses the sources upon which her work is based. The book’s subtitle is A View from Diaries and Family Correspondence. In the introduction Nol identifies the diarists and letter writers. We are told when and where they lived and something about the circumstances of their lives. These people appear and re-appear in the pages which follow. It is important to consider who these correspondents are when assessing the conclusions Nol reaches regarding nineteenth century Canadian families.
The diaries and letters which are used do raise some concerns. The sample is not representative of all segments of society. Nol acknowledges this limitation but suggests that the sources accurately reflect the middle class, which in itself, of course, is a valuable historical contribution. However, some questions can be asked about some of the diarists and correspondents, particularly those who are used to illustrate that family values among francophones and anglophones and people of different religious backgrounds were similar.
There is a general contention in the book that the attitudes and principles which guided family life were similar regardless of religion, language and ethnicity. Several diaries and numerous letters of English Canadians are referred to but so are those of French Canadians like Amde Papineau and Ludger and Reine Duvernay. Considerable emphasis is also placed on the journal of Abraham Joseph, a merchant and member of a well-known Jewish family in Lower Canada. The conclusion that follows is that class, not other factors, was most influential in shaping family life in the Canadas during the nineteenth century. Nol does not ignore religious and cultural differences but in the end suggests that religion was not the deciding influence. Family life of Protestants, Catholics and Jews was similar.
But can Amde Papineau and his extended family be used to prove such a point? Papineau was the son of patriote leader Louis Joseph Papineau. After the Rebellion of 1837 he lived in exile with his family in the United States. There he met and eventually married Mary Westcott, the daughter of a merchant from Saratoga, New York. Amde kept a diary rich in detail about his life before and after his marriage. After moving to Montreal following her marriage, Mary exchanged letters with her father in New York for the rest of her life. Nol uses both the diary and letters extensively throughout the book.
Amde was Catholic, and Mary was Protestant. In 1846 they were married in Saratoga by a Presbyterian minister in a fifteen minute ceremony in the Westcott home. After their move to Montreal, Mary usually attended her own church but sometimes accompanied her husband to a Catholic mass at Notre-Dame. And occasionally Amde went with his wife to a Protestant service. A daughter was baptized in the Presbyterian church and a son in the Catholic church. Clearly this was an unusually liberal attitude toward religion and inter-faith marriage. Or perhaps it was evidence of religious indifference. This unconventional family has an important place in Nol’s portrait of family life. One can well ask if Amde Papineau and Mary Westcott can be used to illustrate French Canadian Catholic families, particularly in light of the conservative forces which were growing in the Quebec church after 1850.
Despite this reservation Family Life and Sociability is a major contribution to nineteenth century Canadian social history. It will not be easily read by high school students or by students in introductory university courses. However, teachers and professors certainly can use it to introduce their students to family history as a branch of historical studies. The fascinating information which the book contains about love, birth, life and death is and always will be of interest to everyone.
George Hoffman – History Department. University of Regina. Regina, Saskatchewan.
[IF]Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa – JANCSÓ; KANTOR (HE)
JANCSÓ, István; KANTOR, Íris. (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Hucitec; Edusp; Fapesp, 2001. 2v. 992p. (Coleção Estante USP – Brasil 500 anos, 3). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. História & Ensino, Londrina, v.8, p. 157-160, out. 2002.
A ligeira mulata, em trajes de homem
Dança o quente hmdu e o vil batuque;
E aos cantos do passeio inda se fazem
Ações mais feias, que a modéstia oculta.1
o poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga em suas Cartas Chilenas aludiu ao lundu e ao batuque, respectivamente, canto e dança, muito populares nas festas mineiras do século ‘I’11 como ele, alguns historiadores observam as festas, ou melhor, as manifestações da cultura popular como um lugar de subversão, de transgressão à norma disciplinadora do poder. Gonzaga, por ser aristocrata e moralista, vê a festa como uma grande promiscuidade, onde se misturam brancos, negros e mulatos, chegando mesmo a comparar Vila Rica em festas (atual Ouro Preto) às cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra.
Ao historiador, seguindo uma tradição herdada da Sociologia e da Antropologia, ficou a percepção que as manifestações populares nos dão acesso às experiências cotidianas de segmentos da população que ficaram por muito tempo silenciados. Daí o fascínio pela festa, um cenário privilegiado para observação do universo cultural dominante e, também, ambiente onde se encontra mesclado elementos próprios da cultura popular, com suas tradições, seus símbolos e suas práticas, constituindo-se num espaço de grande sociabilidade.
Assim, entender esse espaço, mostrar pesquisas que estão em andamento e fazer um balanço da produção recente sobre as festividades na América portuguesa e, conseqüentemente, suas implicações na formação da nacionalidade e da cultura nacionais, são os objetivos da edição da coletânea Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizada pelos professores e historiadores István Jancsó e lris Kantor.
O livro, fruto de um seminário internacional realizado na USP em 1999, reúne 49 artigos escritos por pesquisadores brasileiros e portugueses, que se preocuparam em compreender as manifestações coletivas (festas, cerimônias, ritos, atos de sociabilidade, etc.) que influenciaram na construção de nossa identidade nacional. Segundo os organizadores, as festas são um dos pontos principais da imagem que o brasileiro faz de si mesmo e do estrangeiro sobre o país. Para grande parte da população, elas significavam um instrumento fuga ao controle exercido pelo Estado absolutista, com o qual sempre tivemos uma relação de sofrimento e de antagonismo. O Estado criado por nossas elites nunca foi um instrumento de harmonia, mas sim de desagrega1ção, pois jamais ele foi utilizado como mecanismo de identificação e de libertação.
Comu as festas coloniais nem sempre tinham a mesma dinâmica nem os mesmos objetos de pesquisa e, portanto, não podiam ser abordadas da mesma forma e através dos mesmos instrumentos analíticos, a obra pode ser dividida em três grandes momentos: um primeiro que trata das festas religiosas ligadas aos jesuítas e a catequese dos indígenas; um segundo período ligado ao processo de consolidação da sociedade urbana desde fins do século XVII e durante a centúria seguinte, notadamente em Minas Gerais. Isso se explica devido à urbanização ocorrida ao longo do setecentos, resultado de uma extensa rede de centros urbanos, e à diversificação da economia através do comércio, do artesanato, da mineração (do ouro e de diamantes), da agricultura e da pecuária. Somam-se a esses dados ainda o contingente populacional, a estrutura administrativa e a constituição de um mercado consumidor interno.
Nas sociedades urbanas, muitas festas, seguindo o modelo ditado pela metrópole, cultuavam o rei e/ou se dedicavam aos ritos processuais católicos, como as celebrações da Semana Santa, do Triunfo Eucarístico e do atual “Corpus Christi”. Mas, ao lado destas festividades, tínhamos também a existência de um número quase que incontável de festas de caráter popular.
Nas interessantes “subversões e inversões da ordem festiva”, uma das divisões do livro que pode ser incluída nesse segundo momento, nota-se que conhecemos muito pouco das festas de caráter político não oficial que integravam o cotidiano das vilas coloniais. Um exemplo dessas curiosas celebrações jocosas que utilizavam signos de poder ocorreu em 1732, quando desafetos do governador dom Lourenço de Almeida promoveram-lhe enterro simbólico, por ocasião de sua partida da capitania de Minas Gerais, enquanto outros celebraram uma missa paródica pela sua alma que, julgava-se, ardia no inferno.
Outras formas de resistência à ordem festiva e social vieram através da circulação de cartas e sátiras anônimas que insuflavam a população à rebeldia, ou ainda através da existência de representações teatrais, como a “Serração da Velha” -cerimônia caricata que ocorria na época da Quaresma, onde um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro. A Velha representava uma entidade maléfica (3 morte) ou algo grotesco que perturbava a felicidade ou dificultava a conquista legítima de alguma coisa. Nesses casos, a festa era um “lugar por excelência capaz de tornar realidade uma das exigências básicas dos protestos: a mobilização popular, que constituiu recurso imprescindível da prática amotinadora a fim de garantir poder de pressão às suas exigências” (p. O terceiro momento é o das “festas na corte portuguesa”, período que se inicia com a transmigração da família real lusitana para o Brasil e vai até a nossa Independência. Nesse instante, as festas tornaram-se mais seletivas e as músicas se apresentaram com novos elementos funcionais, técnicos e estéticos, devido à importação de novos instrumentos musicais e a enriada de novos ritmos na corte dom João Além dos dois volumes que compõe a obra, encontra-se encartado no primeiro exemplar um belo CD com 26 músicas que acnrnpanharam o universo sonoro festas na América portuguesa, desde as tradiçôes medievais, no século XIII, até as práticas indígenas, religiosas e afro-americanas do século XVIII. A apresentação coube ao historiador e músico Maurício Monteiro c a direção artística à Ana Maria Kieffer.
Referências
GONZAGA, Tomás Antônio. Carta 6ª: Em que se conta o resto dos festejos. In: Cartas Chilenas. Edição organizada por Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.143.
André Figueiredo Rodrigues – Mestre em História Social / FFLCH-USP.
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