Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré | Reza Aslan

Muito se fala sobre Jesus Cristo. Muito se escreve sobre ele. Mas Jesus de Nazaré, o Jesus histórico ainda é muito pouco conhecido. O livro de Reza Aslan procura apresentar não só o judeu da Galileia, executado pelos romanos durante a Páscoa judaica no começo do século I, como também a sociedade em que ele viveu.

Reza Aslan nasceu no Irã, mas sua formação acadêmica foi toda nos EUA. É interessante observar, que logo no início do livro o autor nos fala dessa experiência. Como ele relata nas Notas do Autor, na parte inicial do livro, Aslan nasceu em uma família de muçulmanos, que emigraram do Irã após a revolução sua família acabou por afastar-se do islamismo. Aslan deu mais um passo na integração ao novo país quando se converteu ao cristianismo aos quinze anos num acampamento evangélico para universitários. Parecia-lhe que agora ele estava mais de acordo com a América.

No entanto, com a continuidade de seus estudos acadêmicos, um fosso entre o Jesus que pregavam na Igreja e o Jesus histórico o levou a dar mais uma guinada em sua vida. Acabou rejeitando a sua fé. No entanto suas pesquisas lhe revelaram um Jesus mais real e digno de confiança do que aquele da igreja. Seu livro é uma tentativa de apresentar as demais pessoas esse Jesus de Nazaré.

O livro está dividido em três partes e concluído por um Epílogo. Na parte I (capítulos 1 ao 6), ele descreve a Palestina do tempo de Jesus, com suas tensões entre as classes sociais, entre os grupos religiosos e entre a população local e os invasores romanos. Na parte II (capítulos 7 ao 12), ele vai tratar da vida de Jesus, seus ensinamentos e alguns dos episódios que Aslan considera chaves para entender quem foi e o que pregava Jesus de Nazaré. A parte III (capítulos 13 ao 15) é dedicada a apresentar como a Igreja foi desconstruindo a imagem do Jesus histórico e a substituindo pela de Jesus Cristo, o filho de Deus, modificando sua mensagem estritamente judaica (apresentada na parte II) por uma mensagem mais universal, que transcendesse as fronteiras do judaísmo. Por fim o Epílogo, mostra o que ele considera o desfecho: a transformação do camponês galileu do século I em Deus, com o concílio de Nicéia codificando e tornando ortodoxa uma crença que já era bastante comum na Igreja da época.

O autor acrescentou a obra um mapa da Palestina do século I e uma ilustração descritiva do Templo de Jerusalém, construído durante o reinado de Herodes, o grande. Aslan também fornece dezenas de notas explicativas sobre cada capítulo do livro que valoriza a obra como um recurso para o pesquisador de religiões que desejar aprofundar-se mais sobre o tema do Jesus histórico e a Palestina do primeiro século.

Aslan explica que os evangelhos foram escritos décadas após a morte de Jesus, por volta do ano 70. Fora eles, os escritos mais antigos sobre Jesus são as cartas de Paulo, que também foram escritas algumas décadas depois de sua morte, por um homem que afirma expressamente não ter conhecido Jesus, nem buscado informações sobre ele com aqueles que foram seus discípulos diretos. Foi durante essa ausência de documentos escritos que ele acredita que a imagem que se tinha de Jesus foi radicalmente alterada.

Mas qual então era a imagem que os primeiros discípulos e seguidores tinham de Jesus? Para o autor, Jesus era sim mais um dos legítimos representantes do conturbada Palestina do século I. Uma terra na qual os invasores romanos impunham suas leis e seus impostos e onde era cada vez maior a crítica aos privilégios da rica classe sacerdotal, que em aliança com os invasores governava o país. Por todos os cantos daquela terra homens levantavam-se contra o estado das coisas, muitos deles acreditando serem enviados de Deus para expulsar os romanos e restaurar a pureza do culto a Deus no grande templo de Jerusalém.

Dessa forma, desde a conquista romana até a destruição de Jerusalém e do Templo, os judeus viram levantar-se messias e profetas, alguns mais bem-sucedidos que outros, conduzindo multidões a revolta contra o poder constituído. Mas Jesus ainda era uma figura controvertida. Sua pregação, registrada nos evangelhos muitas vezes se contradiz. Numa hora ele prega a paz e em outra diz ter vindo a terra para trazer a espada. Muito dessa contradição pode ser, segundo o autor, fruto dos evangelhos que mesclavam fatos históricos, com fábulas e mitos sobre Jesus, como se costumava fazer na escrita oriental da época, para dar autoridade e beleza ao texto. Aslan chama a atenção para o fato que os escritores dos evangelhos não teriam como estar familiarizados com a nossa noção de veracidade histórica, de se aterem aos fatos.

Para Aslan, Jesus seria uma adepto da chamada “Quarta filosofia”, assim chamada para diferenciar dos outros grupos: saduceus, fariseus e os essênios. Essa filosofia teria sido fundada por dois líderes rebeldes judeus que assumiram um fervoroso compromisso com a libertação de Israel e sua insistência a não servir a nenhum senhor a não ser Deus. Seriam zelotas, palavra derivada de zelo, que segundo Aslan (pag. 65)

…implicava uma adesão estrita a Torá e à Lei, uma recusa em servir a qualquer mestre estrangeiro – servir a qualquer mestre humano de maneira geral – e uma devoção à soberania de Deus. Ser zeloso ao Senhor era andar nas pegadas ardentes dos profetas e heróis do passado, homens e mulheres que não toleraram ninguém que quisesse se associar a Deus, que não se curvaram a nenhum rei exceto o Rei do Mundo e que lidaram cruelmente com a idolatria e com aqueles que transgrediram a lei de Deus.

Não eram um partido político ou uma associação, faz questão de esclarecer o autor, nem se pode confundir com o partido zelota surgido décadas depois em 66 dc. Era um desejo, uma ideia de piedade, ligado a uma expectativa apocalíptica. Uma crença que se difundia principalmente entre os camponeses e as camadas mais pobres da população de que o reino de Deus estava próximo.

E era este o cerne da pregação de Jesus e de sua atuação. Para exemplificar Aslan utiliza uma conhecida passagem do evangelho, quando em resposta a pergunta de que se era ou não lícito pagar impostos a César, Jesus responde, “devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O autor mostra que essa resposta é uma das principais evidencias de que Jesus era um zelota. Nesta afirmação Jesus reivindica a terra que os romanos tomaram porque seu legítimo proprietário é Deus. Seria o bastante para que ele fosse enquadrado como um bandido, o que seria confirmado depois, quando da prisão de Jesus, quando um grupo armado de espadas e clavas é enviado a seu encontro.

Mas o que faria de Jesus diferente de tantos candidatos a messias surgido durante aquela época conturbada. Aslan mostra que sua fama como curandeiro e exorcista o tornou uma figura diferente das demais. Diferente de nosso pensamento racional atual, no tempo de Jesus as pessoas estavam mais abertas ao sobrenatural, ao impacto do maravilhoso em suas vidas, e aquele pregador itinerante judeu respondia a suas expectativas com milagres, e, o que era mais espantoso para a época, nada cobrava por eles. Aqui, Aslan delimita a separação entre o acadêmico, o estudioso de Jesus e o seguidor: a crença nos milagres. Mas ele chama a atenção para o quão estéril é essa discussão, e argumenta que as pessoas que seguiam Jesus acreditavam nesses milagres e em nenhum momento foi posta em dúvida as qualidade de Jesus como milagreiro e exorcista sejam por fontes canônicas ou não. Mesmo os inimigos da Igreja, em suas lutas e debates contra ela colocaram em dúvida a capacidade de Jesus de realizar milagres, preferindo acusa-lo de fazê-lo por meio de magia, afirmando mesmo que ele não passava de um mágico.

Uma outra diferenciação entre Jesus e os demais milagreiros e exorcistas da época era a reivindicação messiânica que Jesus fazia para si mesmo. Seus prodígios, milagres e sinais eram a prova de que o Reino de Deus estava chegando.

Como o Reino de Deus estava próximo de ser estabelecido e ele escolheu 12 apóstolos (representando as 12 tribos de Israel), que estariam a frente de Israel. Nesse reino não haveria espaço para estrangeiros, ou para aqueles que não se submetessem ao Deus de Israel. O Deus sangrento que ordenou aos israelitas não pouparem nem mesmos os animais dos povos que habitavam Canãa, quando da conquista, o Deus coberto em sangue dos inimigos tão presente nas mensagens proféticas de Israel. Aslan acredita que não há evidencias que comprovem que seja outra concepção que Jesus tinha sobre Deus. Nos evangelhos ele se recusa abertamente a atender estrangeiros e quando ordena a seus discípulos para irem pregar sobre o advento do Reino de Deus, os adverte a não entrar em cidades estrangeiras.

Durante seu ministério Jesus prepara-se para a tomada do poder e no livro de Aslan pode-se acompanhar passo a passo essa preparação. No entanto no momento final, ele falha. Em Jerusalém, na Páscoa, a mais importante festa judaica, com a cidade lotada de peregrinos o drama de Jesus se desenrola. Jesus é preso e crucificado como sedicioso. Ele ousara assumir funções régias. Aslan acredita que diferentemente do que é apresentado no evangelho, não houve julgamento. Considerado criminoso político ele foi crucificado para que servisse de exemplo a todos os que também desejassem revoltar-se contra Roma. A história de Jesus poderia ter terminado ali, assim como a de vários aspirantes a messias que vieram antes ou depois dele.

No entanto, os seguidores de Jesus continuaram juntos e sua pregação consistia que ele fora ressuscitado dentre os mortos. Judeus que vivam fora da Palestina, helenizados e desejosos de praticar um judaísmo mais atenuado, começam a converter-se a esse ramo do judaísmo e começam a transformá-lo para que o cristianismo se tornasse mais aceitável fora dos círculos judaicos. Paulo, um judeu converso anos depois da morte de Jesus, foi um dos principais agentes dessa transformação do cristianismo. Eles se desvencilhavam das escrituras do judaísmo e faziam sua crença mais universal, mais cosmopolita.

Aqui entra o que Aslan considera um dos primeiros embates do cristianismo: a luta pela hegemonia entre a posição defendida por Paulo a posição do Conselho Apostólico, sediado em Jerusalém e liderado por Tiago, o irmão de Jesus. Para o autor as cartas de Paulo foram escritas como armas nessa luta que segundo Aslan, Paulo acabou perdendo, conforme descrito nos Atos dos Apóstolos, ao ter que submeter-se aos rituais de purificação que ele deplorava.

No entanto, a vitória de Tiago e do seu cristianismo primitivo e fechado, um ramo do judaísmo, foi provisória. Quando os romanos destroem Jerusalém, os cristãos decidem cortar os laços com o judaísmo e apresentar os judeus como culpados pela morte de Jesus. Buscam então inspiração em Paulo, para transformar o camponês zelota, cujos os seguidores acreditaram ter ressuscitado depois de sua execução em Deus.

Aslan percorre em seu livro boa parte da história da Palestina. Para entender Jesus como um homem de seu tempo, para mostrar que além da figura que é apresentada pela Igreja, há uma figura tão fascinante quanto, que foi esquecida sobre camadas de doutrina elaboradas depois de sua morte. Apresenta um Jesus histórico. Apresenta um Jesus revolucionário. Apresenta um Jesus humano.

Wagner Pires da Silva – Graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.


ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Trad. Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Resenha de: SILVA, Wagner Pires da. Sobre Ontens. Apucarana, p.184-187, out. 2014.

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O projeto de pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico | José D’Assunção Barros

José D’Assunção Barros é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do Curso de Mestrado e Graduação em História, e professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor dos livros: O campo da História, O projeto de pesquisa em História, Cidade e História, e a Construção social da cor. Referente à música, escreveu, em 2005, o livro Raízes da Música Brasileira, Nacionalismo e Modernismo: a música erudita brasileira nas seis primeiras décadas do século XX em 2005, obra que recebeu o Prêmio: Inéditos da União Brasileira de Escritores no Rio de Janeiro.

O livro “Projeto de pesquisa em História” está dividido em seis capítulos intitulados respectivamente: O projeto de pesquisa e estrutura fundamental; Introdução e delimitação do tema; Revisão bibliográfica; Justificativa e Objetivos; Quadro teórico e Hipótese, além de um rico glossário no final, bastante útil para os pesquisadores iniciantes com pouca intimidade com o vocabulário específico da pesquisa no campo da História.

No primeiro capítulo do livro são explicitadas as etapas da produção de um projeto em História, da fase elementar ao término. Esse capítulo, além de apresentar um resumo geral da temática, indaga ao leitor sobre as perguntas que problematizam a elaboração de um projeto de pesquisa que, segundo Barros, são “instigantes e muito desafiadoras” no início do processe de elaboração do projeto de pesquisa. Esse capítulo ainda retrata a diferença entre pesquisadores, classificando-os em “pesquisador iniciante, pesquisador estudioso, pesquisador profissional”. Nele também são apresentadas as diferenças entre projetos de pesquisa, projetos para levantamentos de fundos e projetos para a produção acadêmica. Ao longo de capítulo, Barros apresenta de forma clara e sucinta as partes que devem conter em um projeto, além de elencar as perguntas que uma pesquisa deve buscar responder: “O que se pretende fazer? Por que fazer? Para que fazer? A partir de que fundamentos? Com o que fazer? Como fazer? Com que materiais? A partir de que diálogos? Quando fazer?”; são perguntas como essas feitas no primeiro capítulo que possibilitam ao leitor elaborar seu projeto de pesquisa de forma bem articulada.

Barros, no segundo capítulo, discute a “Introdução e delimitação do tema”, pois a introdução do projeto deve ser bem resumida. No que diz respeito ao recorte temático, o autor revela que o dever de realizá-lo é do pesquisador que deve apreciar bastante o tema a ser pesquisado, pois são “escolhas […] que dependem mais diretamente do pesquisador” (p. 15). Enfatiza que após essa definição o tema sofrerá vários recortes relacionados ao tempo e ao espaço, além dos contemporâneos recortes do tipo “serial” e “da fonte” que, segundo Barros, são tarefa do historiador. Neste capítulo, o autor discute a escolha do tema, ressaltando a relevância para os pares e o interesse pessoal de cada pesquisador. Merece destaque nesse capítulo, portanto, a importância e o impacto da introdução em um projeto de pesquisa.

No terceiro capítulo, Barros discute a revisão bibliográfica, fundamental para o projeto, pois nenhum pesquisador sai do nada para fazer a sua pesquisa. Ele enfatiza que a revisão bibliográfica “não é listar todos os livros importantes para o seu tema” (p. 23). O autor revela uma preocupação em organizar as revisões bibliográficas, além de apresentar a distinção entre Bibliografia e Fontes, pois a primeira é “fonte histórica é aquilo que coloca o historiador diretamente em contato com o seu problema” (p. 24) enquanto a segunda “constitui o conjunto daquelas obras com as quais dialogamos, seja para nelas nos apoiarmos ou para nelas buscarmos contraste” (p. 25). Essa distinção configura-se como fundamental, pois muitas vezes o pesquisador pode confundir-se ao elaborar sua revisão bibliográfica.

No quarto capítulo, são discutidas a justificativa e os objetivos do projeto de pesquisa, diretamente relacionadas às perguntas norteadoras do estudo. Especificamente no que tange aos objetivos, Barros alerta que esses devem ser “[…] tratados de forma simples dentro do projeto de pesquisa, eles geralmente são expostos em sentenças de acordo com os verbos na forma infinitiva que podem estar listados ou tabelados” (p. 48). Os objetivos são classificados em geral e específicos, sendo que os objetivos específicos devem ser elaborados a partir do geral.

No quinto capítulo, o autor aborda a “interação e a diferença entre quadro teórico e metodologia”, na tentativa de minimizar as dificuldades que o pesquisador pode enfrentar acerca da diferença entre teoria e metodologia, pois os elementos do quadro teórico configuram-se como basilares para a revisão bibliográfica enquanto a metodologia, no campo das Ciências Humanas, remete a uma determinada maneira de realizar uma tarefa, ou seja, eleger ou constituir materiais, movimentar-se sistematicamente acerca do tema previamente definido pelo pesquisador. No campo da História, Barros elenca o Positivismo, o Historicismo, o Materialismo histórico, a Escola dos Analles, a História Cultural e a História Oral, ressaltando que para cada uma delas deve ser fundamentada em teóricos que dedicam-se a esse campo de estudo, pois são fundamentais para dar cientificidade à pesquisa.

No sexto capítulo são discutidas as hipóteses, pois para que toda pesquisa seja realizada, é necessário também existir um problema, uma inquietação e para ela uma possível resposta. Sobre isso, Barros diz que “todo processo de investigação sofre transformações no decorrer da pesquisa, pois a hipótese é formulada antes mesmo de se ter um problema” (p. 92). As hipóteses são, portanto, extremamente importantes para direcionar uma pesquisa. Na tentativa de verificar as hipóteses propostas, o autor sugere um direcionamento para a pesquisa, classificando e enumerando um quadro de funções: função norteadora, função delimitadora, função interpretativa, função argumentativa e hipótese.

O livro “O Projeto de Pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico”, descreve minuciosamente e de forma muito exemplificada as partes do projeto de pesquisa, tornando sua leitura indicada tanto para pesquisadores que tenham larga experiência na elaboração de projetos quanto para pesquisadores iniciantes, ou seja, aqueles que estão cursando a disciplina de projeto de pesquisa em História, porque o passo a passo descrito na obra é bastante fácil de ser compreendido, especialmente pela estrutura bem articulada e elaborada.

Djairton Alves de Sousa – Acadêmico do sétimo período do curso de Licenciatura em História da Faculdade Internacional do Delta (FID). Email-djairtonalvesdesousa@gmail.com.


BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. Resenha de: SOUSA, Djairton Alves de. Sobre Ontens. Apucarana, 2014.

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Idade Média: Nascimento do Ocidente | Hilário Franco Júnior

O objetivo do livro “A Idade Média e o Nascimento do Ocidente” é analisar o período medieval levando em conta suas estruturas sociais, políticas, econômicas, eclesiásticas e mentais. O texto foi organizado de forma que cada capítulo do livro descreva uma dessas estruturas dentro da ordem cronológica dos fatos.

Nossa reflexão sobre o texto começa destacando a transformação social que ocorreu entre os séculos IV e XI de nossa era. Segundo Franco os séculos III a VIII da era cristã houve um desmantelamento da sociedade romana ocidental e de construção daquilo que mais tarde ficaria conhecida como Europa cristã-medieval.

O período tardo antigo foi o período de quebra dos paradigmas sociais, mentais, culturais e econômicos políticos e religiosos da sociedade romana antiga. Para tentar recuperar a estabilidade de outrora a elite romana reorganizou e petrificou a estrutura social do Império. O objetivo dessa ordem era garantir a estabilidade do Império. Essa calcificação apenas dificultou a vida dentro da sociedade romana. Graças a essas medidas a desigualdade social atingiu níveis abissais. Essa política contribui para o achatamento e desaparecimento das camadas médias da sociedade. Por fim esse sistema limitou a participação do indivíduo como agente social aumentou consideravelmente o papel do Estado na sociedade (p.65).

Três pontos contribuíram para a fusão de duas culturas tão diferentes. O sistema de hospitalidade e posteriormente a alianças entre romanos e germânicos feuderates que defendiam as fronteiras do Império de outros povos “bárbaros”. A utilização do latim como idioma administrativo Por fim a conversão gradual dos germânicos ao cristianismo católico.

A infiltração e mais tarde a fusão da sociedade germânica não mudou esse quadro. A fusão das sociedades germânicas e romanas se deu em um nível horizontal. Essa realidade só contribuiu para que as várias diferenças entre a elite e o povo apenas aumentasse. Dessa forma na sociedade latino-germânica existem apenas duas camadas sociais: a elite formada pela Igreja e os ricos proprietários de terra leigos, do outro lado os pobres (camponeses empobrecidos, homens livres sem terras e escravos).

Diante do empobrecimento o pequeno produtor rural se vê obrigado a entregar sua pequena propriedade aos grandes agricultores em troca do direito de trabalhar em suas terras. Nesse mesmo período muitos senhores de escravos cedem a esses o direito de trabalharem em suas terras se apropriarem de parte da colheita. Da conjunção dessas duas realidades, empobrecimento do campesinato e melhoria do trabalho escravo, surge um novo personagem social: o colono. Dessa forma sociedade baixo medieval é composta a penas por duas camadas no topo estavam as elites eclesiásticas e laicas. No outro lado da sociedade estão os colonos.

As riquezas da Igreja provinham de conjunto de propriedades recebidas do Estado durante período que Igreja esteve sob proteção do Império. Além disso a Igreja também recebeu muitas propriedades da aristocracia laica. Essas terras eram concedidas em regime de benefício (autorização para trabalhar na terra de outrem) e também em herança de ricos aristocratas diante da morte. A riqueza da aristocracia laica provinha de duas fontes. Em primeiro lugar sua riqueza provinha das terras que se mantinham na família a várias gerações. Muitas vezes, também esses nobres recebiam terras em regime de benefício como pagamento por serviços prestados a coroa.

O benefício, ato de o rei permitir que alguém explorasse suas terras, foi um instrumento muito usado na sociedade medieval. Durante o governo de Carlos Martel esse instrumento foi fundido com o sistema de vassalagem para pagar o exército franco. Esse soberano confiscou terras da Igreja e as cedeu como benefício a seus oficiais.

A atitude de Carlos Martel deu uma nova caracterização ao sistema de vassalagem. No século VI a vassalagem estabelecia uma relação serviçal de um menor para outro maior. No século essa era acordo entre homens livres inferiores. No século VIII a vassalagem se torna uma relação entre elementos da aristocracia. A partir desse período

“apenas um vassalo (servidor fiel) poderia receber um benefício ( termo substituído por feudo entre os séculos I X e XI ) como remuneração pelos seus serviços. Por tanto as relações entre os membros da aristocracia davam se por práticas econômicas (terra entregue e terra recebida), políticas (poderes sobre essa terra) e religiosas (juramento e fidelidade)”. (p.69)

Essas novas características sociais deram origem a uma nova estrutura que duraria muito tempo, o feudalismo. Hilário Franco Junior dá a seguinte definição para feudalismo. Segundo Franco feudalismo “é o conjunto da formação social no ocidente durante a Idade Média Central com suas facetas políticas, econômicas, ideológicas, institucional, social, religiosa, e cultural” (p.71). Durante esse período a Igreja que era a maior detentora de terras da Europa ser tornou também a produtora da ideologia oficial. De acordo com o pensamento eclesiástico sociedade cristã era o reflexo da sociedade celeste. Essa sociedade, como a celeste é una em questão de governo e fé, as devido à necessidade de organização funcional ela, a exemplo da organização celestial ela se torna múltipla.

Para agradar a Deus e cumprir sua vontade a Cidade de Deus é dividida em três ordens: o clero, a nobreza e camponês. Dentro dessa sociedade cada ordem tem uma função diferente. O clero intercede diante de Deus pelos demais. Por essa razão a Igreja está à cima das outras ordens sociais. A segunda ordem é a nobreza. Os nobres devem defender a Cidade de Deus. Quanto aos camponeses foram criados por Deus para sustentar os demais.

Franco cita Aldeberon bispo da cidade de Laon para ilustrar a forma que a Igreja entendia a sociedade naqueles dias.

“ele chegou a seguinte formulação: o domínio da fé é una, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe duas condições, o nobre e o servo não estão socialmente no mesmo regime. Os guerreiros são protetores da Igreja. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem o mundo, inclusive a si mesmos. Os servos por sua vez têm outra condição. Essa raça de infelizes não tem nada sem sofrimento. Fornecer a todos roupas e mantimentos, eis a sua função sempre. A casa de Deus que parece una é tripla. Uns rezam, outros combatem, e outros trabalham. Todos os três formam um conjunto que não se separa, a obra de uns, permite o trabalho dos outros dois e cada um por sua vez presta apoio aos outros dois.” ( p.71).

Aldaberon deixa claro como a sociedade de seus dias se enxergava. Ele apresenta uma justificativa para a existência de tal sociedade. Segundo ele, o clero está acima das de mais ordens. Isso ocorre graças a seu papel de intercessor em favor dos homens diante das divindades. Logo a seguir vem os nobres pois esse nasceram com uma vantagem genética em relação à plebe. Graças a essa vantagem Deus escolhe dentro dessa classe os membros que garantirão a perpetuação do clero. Quanto ao servo Aldaberon entende, assim como seus contemporâneos, a natureza lhes reservou o trabalho para compensar condição pecaminosa.

A maneira de pensar medieval cumpre duas funções. Ela busca unir toda a sociedade. Para isso mostra a interdependência dos diferentes grupos sociais. Por outro lado ela é altamente excludente pois isola cada um dos três atores que compõe a sociedade.

Dentro desse contexto social existem três tipos de relação. Existe um relacionamento horizontal entre as elites. Depois há uma relação vertical entre as elites e os colonos. Por fim há uma relação horizontal entre os diferentes grupos da camada inferior da sociedade. Com o início da dinastia carolíngia surgiu um novo elemento. O cavaleiro. Esse grupo não deu origem a uma nova ordem mas fundiu-se com a nobreza.

Nos séculos XI e XII a Igreja quase viu seu sonho de implantar uma comunidade divina na terra se tornar realidade. Mas uma série e fatores destruíram o projeto cristão. Segundo Hilário Franco Junior o conflito entre camponeses e senhores pelo excedente da produção, os conflitos entre as aristocracias eclesiásticas e laica pelo controle das riquezas produzidas e o fracasso no empreendimento das cruzadas contribuíram para a ruína da Cidade de Deus.

Depois apresentar as características da estrutura social do período medieval Franco passa a dissertar o processo de fortalecimento do bispo e da Igreja romanos. Segundo ele a partir do século IV com a oficialização da Igreja cristã esta se viu obrigada a se organizar para cumprir novas funções designadas pelo Império. Supervisionar os serviços religiosos, prover orientação doutrinária aos novos conversos, executar os serviços sociais do Império e combater o paganismo. Foram tarefas que obrigaram a Igreja a hierarquizar-se e separar-se do ambiente secular.

Os demais elementos da comunidade cristã entenderam que essa nova estruturação da Igreja era indispensável mesmo porque o poder da Igreja foi outorgado por Deus. Nesse processo de hierarquização da Igreja houve uma elitização do clero. O surgimento de heresias contribuiu também para conduzir a Igreja a um sistema monárquico. A tendência de monarquização e sobreposição do bispo de Roma sobre os demais bispos se deve em parte ao surgimento das heresias. Além disso a oficialização do cristianismo também ocupou espaço fundamental.

Durante os três primeiros séculos do cristianismo não havia a idéia de supremacia do bispo romano. A situação mudou coma oficialização da Igreja. A idéia, criada pelos bárbaros e aceita sociedade latina da relação da geografia eclesiástica e geografia de poder civil teve como conseqüência à valorização do bispo romano. O apoio do Imperador à Igreja de Roma e dos demais bispos serviu para firmar a autoridade do papa romano. Esses fatos contribuíram para que em 378 a Igreja e o Império reconhecessem através de decreto a supremacia do bispo romano. Esse reconhecimento foi confirmado em 445.

A supremacia do bispo romano foi um dos fatores que contribuiu para o fortalecimento da Igreja em sua escalada para o controle da sociedade medieval. O monasticismo comunal e aliança da Igreja com o reino franco foram os dois outros fatores que contribuíram para tal projeto.

A aliança entre o bispo romano e o reino Franco pode ser dividida em três fases. No primeiro estágio a Igreja pode ser considerada sócia menor dos Francos. Essa primeira fase começou quando Clóvis, rei dos francos se converteu ao cristianismo no ano 508. Alguns anos depois Pepino o Breve, socorreu a Cidade de Roma bem como o bispo dessa Igreja contra a invasão lombarda. Graças a esse ato o bispo romano lhe conferiu o título de rei de Roma.

O papado porém entrou numa condição de sócio dos francos durante o reinado de Carlos Magno. Magno deu a Igreja um lugar no conselho real. Através desse ato os bispos se tornaram autoridades civis sobre os locais onde exerciam seu episcopados. Além isso graças ao avanço dos exércitos carolíngias sobre outras tribos não cristãs a Igreja viu se poder aumentar.

A decadência da dinastia carolíngia fez com que a Igreja se tornasse única senhora da porção ocidental do antigo Império romano. Nesse período graças às idéias e ações reformistas de papas como Gregório VII, e reis como Luís (o Piedoso) a Igreja se fortaleceu ainda mais. Nesse período foi implantado na Europa o Agostinianismo político que nada mais era do que soberania da Igreja sobre todas as demais Instituições sociais. A implantação desse projeto político levou a Igreja a realizar um sonho a muito desejado. Nos séculos XI e XII a Igreja fez com a Europa se tornasse a sociedade divina na Terra.

Essa sociedade utópica, porém não durou muito pois as transformações econômicas da Europa, a disputa entre as aristocracias clerical e laica, as divisões do clero pelo controle da sociedade civil e o fracasso no empreendimento das cruzadas geraram um grande desgaste da sociedade feudo clerical. Esse desgaste deu o início a um novo contexto social que daria origem a sociedade moderna. Quando estudamos a sociedade medieval precisamos levar em conta a forma de pensar daquela comunidade. Segundo Franco a sociedade medieval tem uma visão sobrenatural do universo. Essa visão se sustenta em três colunas: O simbolismo, o belicismo e o contratuísmo.

Para o homem medievo, forças sobrenaturais controlam o universo essas forças se revelam ao homem através da linguagem simbólica. Nosso grande desafio portanto como seres humanos é entender esses símbolos.

As ferramentas necessárias para entender esse simbolismo são encontradas na Igreja. A Igreja é pois o lugar onde Deus se revela ao ser humano. Nesse processo de decodificação dessa simbologia a eucaristia, a palavra do sacerdote, os sacramentos, as relíquias dos santos, são ferramentas indispensáveis. O segundo elemento da visão sobrenatural do universo é o belicismo. Para a sociedade medieval o universo é o grande palco de conflito entre o bem e o mal. Esse conflito cósmico se reproduz também na mente humana. O controle da mente e vida humana é alvo de disputas entre esses dois rivais. A vontade humana é pois fundamental nesse conflito. O último pilar que sustenta a mentalidade medieval é a relação contratual entre o homem e as forças que se opõe. Toda relação entre o ser humano e as forças sobrenaturais se faz através de contratos. Essa visão contratual é fruto da vida cotidiana do homem medieval. Afinal de contas o dia a dia dessa sociedade era feita através de acordos contratuísticos tanto entre iguais como de elementos de níveis sociais distintos.

Nos próximos parágrafos avaliaremos como discurso produzido pelo clero manteve a ordem social por um longo período de tempo. A Idade Média é o palco onde a Igreja Cristã Católica Romana nasceu se desenvolveu atingiu seu ápice como Instituição dominante e depois perdeu. Durante esse período três estruturas travaram uma disputa pela imposição de seu discurso ideológico. No início discurso da religião estatal-pagão greco-romana disputou com o cristianismo o controle ideológico sobre a sociedade ocidental. Com o final do processo de expansão e o começo da desintegração do Império Romano, discurso cristão ganhou força e se tornou o discurso dominante.

Esse discurso gerou e manteve uma sociedade baseada em Ordens ( Ordo ou Ordines). O pensamento de uma comunidade ordenada por “Deus” era na verdade uma forma de controlar a sociedade. De acordo com esse discurso a separação dos três grupos era uma necessidade para o bem estar de todos. Como Franco reconhece essa ordem estabelecida tinha duas funções. Por um lado a sociedade organizada em Ordens unia o os diferentes grupos em um único corpo social baseado no argumento que todos são necessários e que um depende do outro. Por outro lado esse discurso era totalmente excludente uma vez que não abria espaço para que membros da ordem dos laboratores não tivessem acesso a ordem dos milites e dos oratores.

Percebemos também que na disputa pelo direito de exercer a violência legítima, Igreja, monarquia e nobreza criam discursos alternativos. Esse discurso resultou numa prática social onde o único interesse era manipular a população a serviço dos interesses de um ou de outro grupo.

Esse jogo de exploração simbólica em busca da imposição de sua ideologia contribuiu para o desgaste da sociedade feudo-clerical. Nesse contexto o nacionalismo, juntamente com o surgimento do pensamento herege, levaram a uma nova conjuntura. A valorização da mulher e da criança, a visão antropocêntrica do universo, o processo de urbanização da Europa, o desenvolvimento da burguesia foram sinais de que a estrutura medieval feudo-clerical ruira e que o Estado nacional burguês tomara seu lugar.

Daniel Rocha Junior – Graduação em História FAFIUV


FRANCO JUNIOR, Hilário. Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2000. Resenha de: ROCHA JUNIOR, Daniel. Idade Média e o nascimento do Ocidente-estruturas sociais e mentais. Sobre Ontens. Apucarana, p.31-41, 2008.

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História do Cristianismo | Paul Johnson

O objetivo de Paul Johnson em seu livro “A historia do cristianismo” é descrever e analisar o desenvolvimento da Igreja Cristã durante os vários séculos de sua existência. A presente resenha tem a intenção de apontar as principais idéias dos três primeiros capítulos desse livro.

Um ponto que fica bem claro no texto lido é que em nenhum momento do período analisado o cristianismo se mostrou uma religião uniforme, sem divisões internas e unidas na luta contra seus inimigos externos. Muito pelo contrário durante os primeiros nove séculos de sua existência a comunidade cristã esteve dividida sendo que cada facção interna lutava para se impor sobre as demais.

O primeiro desafio do cristianismo foi manter -se vivo e futuramente se sobrepor ao judaísmo. Jhonson inicia sua discussão sobre o cristianismo a partir desse ponto. A Igreja crista se originou dentro do judaísmo palestino. Por essa razão é extremamente importante Ter uma idéia a respeito da religião judaica existente nos dias de Jesus.

O judaísmo do primeiro século da era cristã se tratava de uma das religiões extremamente exclusivistas, apocalípticas e belicista. Os judeus criam que eram propriedade do Deus verdadeiro e esse Deus iria alterar a ordem social e política estabelecida através de uma intervenção sobrenatural que culminaria com o aniquilamento da presente ordem estabelecida e daria início a uma nova era onde os eleitos (os judeus) se tornariam à classe dominante do mundo. Essa intervenção divina seria efetuada através da pessoa do Messias (salvador), um líder político, religioso e militar. Esse conduziria os judeus à vitória sobre as forças do mal.

Nem todos os judeus moravam na Palestina. Muitos deles estavam espalhados por diferentes pontos do Império Romano. Na realidade o número de judeus que viviam fora da região palestina era maior do que seus conterrâneos palestinos. Esses dois grupos divergiam quando a estratégia de proselitismo. Os judeus helenistas, como eram conhecidos os judeus da diáspora geralmente eram cidadãos ricos, receptíveis à cultura greco-latina e viam o Império como agente facilitador para a expansão de sua ideologia religiosa. Os judeus da palestina, ao contrário, eram retrógrados, xenofóbicos e em sua maioria viam na guerra armada à única forma de concretizar seus ideais político – religiosos.

O cristianismo surge dentro desse contexto. Por essa razão o primeiro desafio dessa religião infante é sobreviver dentro desse conturbado mundo religioso e depois conseguir superá-lo. Para conseguir manter -se vivo no concorrido e conturbado contexto religioso judaico, o cristianismo contou apoio de judeus influentes, tanto dentro do Palestino quanto fora dela, que se tornaram cristãos. Esses se tornaram os primeiros líderes da Igreja e tiveram grande influência sobre a mesma.

Essa liderança, porém se tornou um grande obstáculo quando o cristianismo, a partir do apóstolo Paulo, começou a se tornar uma religião internacional e inter-racial. Nesse momento os judeus começaram uma reação que ameaçou a sobrevivência do cristianismo. O cristianismo apenas conseguiu sobreviver a essa ameaça e se tornar uma religião internacional porque a Igreja cristã de Jerusalém envolvida na revolta judaica contra o Império Romano foi destruída no ano 70.

Se durante os primeiros quarenta anos de sua existência o cristianismo se dividiu basicamente entre judeus e gentios nos próximos séculos as divisões internas do cristianismo se multiplicaram em proporções inimagináveis para os cristãos do primeiro século. De acordo com Jhonson, isso se deveu principalmente devido à vocação de atrair os diferentes grupos sociais e culturais contido dentro da ideologia cristã.

A existência desses diferentes grupos sócio – culturais no interior do cristianismo levou a um problema que tem desafiado a Igreja ao longo dos séculos. Os diferentes grupos de cristãos, preocupados em buscar uma resposta racional a sua fé encontravam diferentes alternativas para explicar a verdade. A acomodação dessas diferentes idéias e a formação de um sistema teológico e ideológico próprio foi o segundo desafio da Igreja.

Para responder a esse desafio a Igreja se preocupou em instituir um cânom dos escritos cristãos bem como em estabelecer uma hierarquização mais complexa em seu interior. Tanto o cânom quanto a hierarquização da Igreja estavam ligados a um fator, a origem apostólica.

Dessa forma a Igreja estabeleceu que apenas documentos escritos pelos apóstolos originais ou a alguém diretamente ligados a esses teriam valor normativo nas questões religiosas ou teológicas. Quanto à supremacia das diferentes congregações, seriam considerados importantes aqueles que tivessem sido originalmente dirigidas por um dos primeiros vultos cristãos. Segundo essa idéia, esses apóstolos que haviam recebido autoridade diretamente de Cristo ao lhe impor as mãos transferiram esse poder aos seus sucessores graças à transmissão feita através do mesmo rito.

O surgimento e existência de novas heresias durante os primeiros séculos do cristianismo foi um poderoso fator na criação de um cânon ortodoxo, bem como da progressiva hierarquização da Igreja. Esse processo de hierarquização se completou com a oficialização do cristianismo no início do século IV por parte do imperador Constantino.

Constantino se tornou imperador no início do século quatro, após derrotar Majêncio na ponte do rio Mílvio e no ano 313 juntamente com seu co-imperador Licínio tornou a religião cristã oficial dentro do Império Romano. Esse ato pode ser considerado como a conseqüência lógica de um processo que vinha se desenvolvendo desde a metade do século III. Nesse momento os cristãos eram um grupo numeroso e ao mesmo tempo muito bem organizado. Eram muito mais homogêneos em suas práticas e posições diante do Império. O cristianismo, nesse período se tratava de uma opção universalista à antiga e decadente religião civil romana. Nesse momento o velho Império tinha de tomar uma decisão: exterminá-la ou oficializá-la. Constantino optou por seguir o segundo caminho.

Constantino era um líder de visão reconciliadora e foi com o objetivo de manter vivo o Império romano que elaborou o edito de Milão. O problema é que a Igreja, agora apoiada pela máquina estatal, tratou de firmar -se como representante única do cristianismo e passou a perseguir aqueles que representassem ameaça a seus ideais de supremacia. A máquina estatal muitas vezes foi colocada a serviço da ortodoxia, por entender que uma ameaça à mesma representava também risco a ordem estabelecida.

Essa relação entre Igreja e Estado fez com que os papéis de liderança eclesiástica e civil fossem de certa forma confundidos e unificados. Nos dias de Constantino o imperador muitas vezes se envolveu nas disputas teológicas e religiosas para conseguir manter a ordem na Igreja. Por outro lado muitas vezes o bispo romano, bem como bispos de outras sedes episcopais importantes tomassem decisões no campo civil.

Com a oficialização do cristianismo católico a divisão entre o clero e o laicato cresceu de maneira vertiginosa. Os líderes cristãos se tornaram verdadeiros representantes de poder político, financeiro e principalmente aqueles que liderassem sedes episcopais de cidades importantes. Na segunda metade do século IV a Igreja se tornara a maior força do mundo romano ocidental rivalizando apenas com o imperador que então estava instalado em Constantinopla.

Nesse processo de ascensão da Igreja Cristã, a Igreja de Roma foi a maior beneficiária. O poder do bispo da cidade de Roma sobre as demais sedes que já era grande aumentou mais ainda. Desde seu início a Igreja de Roma era considerada rica. Além de sustentar um grande número de funcionários ligados à estrutura da Igreja ela prestava assistência a 1500 órfãos e viúvas. Além disso, nos debates teológicos que ameaçaram dividir a Igreja nos quatro primeiros séculos, o bispo romano sempre esteve ao lado da ortodoxia. O apoio do Imperador no quarto século apenas contribuiu mais um pouco para que a força da Igreja e do bispo de Roma crescesse mais ainda. Nem todos cristãos viam com bons olhos essa ligação com Império e uma separação entre o laicado e o clero. Isso ocorreu principalmente nas regiões mais distantes das sedes católica. O século IV foi marcado pelo recrudescimento da defesa das idéias da Igreja Católica por um lado e da reação de cultos heréticos bem estabelecidos nas periferias do Império. Jhonson destaca que essas disputas revelam muito mais do que simples querelas religiosas. As mesmas são sinais grupos cristãos periféricos ao cristianismo oficial representavam o desejo de sobrevivência de uma cultura provincial para que o Império era considerado universal e ao mesmo tempo parasitário.

Jhonson deixa claro que a diversidade religiosa e as divisões internas do cristianismo não impediram que o mesmo tivesse uma reação enérgica e eficiente contra seus inimigos externos. Isso ficou bem claro na reação cristã à tentativa de Juliano o “apóstata” ressuscitar a religião romana estatal. Tal campanha foi desastrosa e resultou em completo fracasso. Nos dias de Juliano o Império se tornara cristão e não retornaria de maneira alguma ao antigo sistema religioso.

Os próximos séculos (V – IX) representaram um período de reestruturação do Império Romano. A parte ocidental do Império se fragmentou e fundiu -se ao mundo germânico dando origem a uma nova civilização. O lado oriental se rendeu ao Islamismo. Dentro dessa realidade a Igreja Romana se adaptou continuou viva e graças à força do papado, a união com o Império Franco -Carolíngeo e teorização política da teologia agostiniana se tornou o maior poder do período conhecido como Idade Média. Esse poder seria decisivo na formação da Europa moderna.

Daniel da Rocha Junior – Graduação em História FAFIUV


JHONSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2003. Resenha de: ROCHA JUNIOR, Daniel da. Sobre Ontens. Apucarana, p.13-19, 2007.

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