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Saúde Mental para a Atenção Básica – SOALHEIRO (TES)
SOALHEIRO, Ninaorg. Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 249p. Resenha de: MIRANDA, Lilian. Desafios para o cuidado integral: saúde mental na Atenção Primária em Saúde. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, maio/ago. 2018.
O livro Saúde Mental para a atenção básica, coletânea organizada por Nina Soalheiro, assume sua especificidade desde o título: não se propõe a falar da ou sobre a Atenção Básica (AB), mas oferecer conceitos, orientações e reflexões que sirvam aos trabalhadores, gestores, usuários e quaisquer outros atores sociais implicados no cuidado à saúde. Trata-se de uma oferta oportuna, na medida em que se materializa num contexto de crise sociopolítica, diminuição substancial de gastos públicos e transformação de importantes princípios estruturantes da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB (Brasil, 2017).
Há que se admitir, contudo, que num cenário de deterioração de condições materiais de trabalho, de referenciais éticos e, sobretudo, de esperanças em torno da justiça social, uma discussão sobre Saúde Mental é urgente, mas também arriscada. Risco que a coletânea assume desde sua epígrafe, uma citação de Michel Foucault que nos remete à incomensurabilidade da experiência de um livro, cuja conclusão é sempre incerta.
Também arriscada, mas consonante com seu objetivo de abordar a Saúde Mental para a Atenção Básica, campo reconhecidamente amplo, é a intenção do livro de utilizar uma linguagem simples e refratária à dominação de quaisquer discursos, inclusive os psi. É assim que um grupo de 16 autores enfrenta o desafio de tratar de modo acessível, mas sem prejuízo à complexidade, temas que se estendem de discussões sobre (des)institucionalização, território, processos de trabalho em saúde e medicalização, até envelhecimento, suicídio, práticas corporais e medicina chinesa. Sem esgotarem-se em suas reflexões e relatos de trabalho e pesquisa, os 12 capítulos ainda sugerem leituras de aprofundamento das temáticas por eles tratadas. Diante desse material, convidado a usar conceitos como ferramentas de trabalho, o leitor logo se pergunta até onde chegará uma coletânea com temática tão extensa e por quais percursos será conduzido em sua leitura.
Percursos múltiplos e diversos! É essa a aposta arriscada da coletânea. Risco coerente com o que parece ser sua principal discussão conceitual: a (des)institucionalização, tratada detalhadamente no segundo capítulo e retomada em grande parte dos demais. Sustentando o objetivo de construção de ferramentas, trata-se de uma discussão que nunca é empreendida de modo abstrato, mas sempre remetida a situações específicas do trabalho em saúde e, para tanto, o território também se configura como categoria teórica básica para o livro, apresentada no seu terceiro capítulo a partir da perspectiva da geografia crítica.
Na composição de uma espécie de tripé de alicerce da coletânea, seu primeiro capítulo oferece o direcionamento ético e o substrato afetivo que imprimem vitalidade à discussão sobre (des)institucionalização e território, encorajando o leitor a empreender um percurso de leitura tão amplo. Reconhecido como referência histórica e bibliográfica para todo o livro, Antonio Lancetti presenteia-o com este capítulo de abertura, oferecendo seu testemunho acerca da intensidade necessária ao trabalho em saúde mental nos territórios complexos da Estratégia Saúde da Família. Descrição de recursos, estratégias e cenas de trabalho, acompanhadas de orientações didáticas sobre questões que não podem ser desconsideradas num trabalho em Saúde Mental não manicomial, são apresentadas de modo a abrir o caminho dos demais capítulos do livro.
Ao longo da coletânea, as conquistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RP) são reconhecidas, mas com a ponderação de que se trata de um processo social complexo, cuja definição é remetida a autores brasileiros, como Paulo Amarante, e à tradição da psiquiatria democrática italiana. Na condição de processo, é contínua e compromissada com a constante construção de movimentos instituintes. Antonio Lancetti materializa este condicionante lembrando a importância de trabalhar na Atenção Básica com a circulação de pessoas, afetos, assim como sofrimentos e sintomas. Estes, em Saúde Mental, não são passíveis de amputação, mas podem circular, desde que acolhidos e tratados num território que precisa ser vivido, (re)apropriado e mesmo (re)construído por todos os atores envolvidos no cuidado à saúde.
Ao empreender esse processo de envolvimento com o território, os profissionais optam pela complexidade crescente porque o foco de cuidado desloca-se do problema para os sofrimentos, traduzidos a partir de um emaranhado de questões sociais, políticas, intersubjetivas, culturais e materiais envolvidas em cada pessoa. No bojo dessas reflexões, uma minuciosa apresentação das diferenças conceituais entre espaço, lugar, local e território, bem como territorialidade, região e cotidiano, permite que o leitor amplie sua compreensão sobre a complexidade do trabalho territorializado, recorrentemente defendido na Política de Saúde Mental.
A alusão a tal complexidade poderia desanimar o leitor. Mas o contato prévio com o capítulo de Lancetti, concluído após sua morte, pela colaboração de seu filho, paradoxalmente, impede tal infortúnio. A apresentação do Projeto Qualis, descrito pelo autor como uma “experiência de vitalidade eletrizante” empreendida num cenário de ausência de saúde pública, gera esperança e abertura para a leitura dos demais capítulos. Vários destes dialogam diretamente com os profissionais de saúde, reconhecendo as dificuldades e angústias próprias ao campo da Saúde Mental, marcado pela ausência de protocolos ou orientações objetivas para lidar com “casos que não fecham” e sofrimentos que não cessam, embora possam se modificar e se redirecionar. Para discuti-los, o conceito-chave é a (des)institucionalização que, tomada como um modo de gestão do cuidado, não visa à cura, constituindo-se numa perspectiva bastante diversa até mesmo na AB, cujos profissionais ainda são formados, hegemonicamente, a partir do paradigma biomédico e cujos investimentos em educação em saúde e recursos não medicalizantes se mostram limitados (Tesser, Poli Neto e Campos, 2010).
Fica evidente no livro a defesa de que limites como esse comprometem a operacionalização de um tipo de cuidado compreendido como encontro entre sujeitos. Um encontro que possibilita que o sofrimento e a doença sejam apropriados por usuários e profissionais e, assim, compartilhados (não mais se restringindo ao domínio de um único saber, geralmente o biomédico). No intuito de colaborar com a viabilização dessa forma de cuidado, são sistematizadas ao longo do capítulo várias discussões teóricas, bem como algumas normativas políticas e orientações acerca do trabalho em Saúde Mental. Mas, ao fazê-lo, os autores destacam que todo constructo teórico ou normativo é materializado em contextos específicos, que lhes impõem entendimentos e usos também singulares.
Respaldados por tal alerta, alguns capítulos trazem reflexões e orientações para problemas que ocupam espaços ainda pequenos nas discussões do movimento da RP e nas políticas de Saúde Mental. Entre eles destaca-se o suicídio, cuja detecção precoce pode ser feita, prioritariamente, na AB, mas exige alto investimento no treinamento dos profissionais. Também necessitado de investimentos é o campo da atenção ao idoso, hoje pautado, basicamente, nos cuidados desempenhados pelos familiares e num apoio insuficiente e pouco formalizado dos serviços de saúde. Tanto em relação ao suicídio quanto ao envelhecimento, os capítulos abordam o sofrimento que envolve usuários, famílias, profissionais e entorno social, chamando atenção para a necessidade de compartilhamento das necessidades de cuidado, sob o risco de que a individualização e naturalização de alguns papéis sociais acabem por gerar negligência e violências.
O livro apresenta também alguns temas que envolvem práticas mais experimentadas nos serviços de saúde, embora não hegemônicas ou consolidadas. Aborda, por exemplo, a lógica da redução de danos, a medicina chinesa, os dispositivos grupais e as práticas corporais ligadas à promoção da saúde, remetendo-se às discussões sobre (des)institucionalização e território, associadas a diferentes modos de compreender a própria noção de saúde. Embora distintas entre si, tais compreensões podem se transformar em importantes ferramentas para a desconstrução do modelo biomédico, na medida em que evidenciam os prejuízos ou a baixa eficácia de práticas que desconsideram as especificidades pessoais e comunitárias dos usuários do serviço. Questões fundamentais são então enfrentadas, tais como a tendência a ver os riscos à saúde de modo universalizado e naturalizado, desconsiderando a constituição histórica dos indivíduos. Ou o desafio de trabalhar em favor da responsabilização e da ampliação da autonomia dos usuários, sem culpabilizá-los e sem desresponsabilizar o Estado. Ou, ainda, o tênue limite entre a territorialização dos serviços comunitários e a regulamentação da vida privada.
O enfrentamento dessas questões se faz, em alguns capítulos, de forma didática, com a apresentação de conceitos próprios a correntes teóricas que, embora fundamentem grande parte de dispositivos e práticas da saúde coletiva, são pouco compreendidos pelos profissionais. É o caso da concepção de grupo segundo a esquizoanálise, de biopoder, segundo Michel Foucault, e de trabalho, numa leitura do materialismo histórico. Trata-se, sem dúvida, de uma heterogeneidade teórica bastante expressiva, com especificidades que não devem ser esvanecidas, mas que podem se transformar nas ferramentas de análise crítica e reconstrução da realidade que o leitor é convidado a construir. Um convite cujo aceite proporciona prazeroso compartilhamento da diversidade de olhares e aberturas à transformação, próprios do campo da saúde mental orientado pela lógica da (des)institucionalização.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=68&data=22/09/2017> Acesso em: 22 mar. 2017. [ Links ]
TESSER, Charles D.; POLI NETO, Paulo; CAMPOS, Gastão W. S. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 3, p. 3615-3624, 2010. [ Links ]
Lilian Miranda – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: limiranda78@hotmail.com
[MLPDB]