Labirintos da Modernidade: memória/ narrativa e sociabilidades | Antônio Jorge Siqueira

Antônio Jorge Siqueira tem formação acadêmica no campo da Filosofia, Teologia, Ciências Sociais e da História, o que, em grande medida, reflete em seus escritos. No seu olhar sobre os problemas do Brasil, e em particular do Nordeste, podemos identificar essas várias facetas que compõe o intelectual e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Não é por acaso que em suas obras e artigos aparece insistentemente um Jorge multidisciplinar. É essa heterogeneidade intelectual que torna a sua narrativa densa e complexa, e ao mesmo tempo instigante, pois apresenta para o leitor outras possibilidades de analises sobre a nossa contemporaneidade.

Começo explicando o real interesse pela obra de Jorge Siqueira, ou seja, o que me motivou a elaborar estas considerações. Devo mencionar que sua escrita contempla questões complexas do campo das ciências humanas, aspectos que devem, sem dúvida, fazer parte das discussões e de nossa formação enquanto intelectuais. É de fato um livro denso, recheado de questões atuais e pertinentes ao oficio do historiador. Trata-se de uma coletânea produzida ao longo de quase vinte anos, com muitos de seus textos já com ampla circulação, mas que de alguma maneira foram agora organizados mantendo uma conexão entre si, há um fio condutor. Dito isto, o passo inicial para construir um entendimento sobre o conjunto dessa obra é procurar se aproximar – daquilo que poderia ter sido – do exercício de escrita agenciado por Jorge Siqueira. Com este objetivo, procurei em Orhan Pamuk, no livro A maleta do meu pai, imaginar o que poderia significar o ato de escrever para Jorge.

Afirma Pamuk:

Quando o escritor passa anos recolhido para aprimorar seu domínio do ofício – para criar um mundo –, se ele usa as suas feridas secretas como ponto de partida, consciente disso ou não, está depositando uma grande fé na humanidade. Minha confiança vem da convicção de que todos os seres humanos são parecidos, que os outros carregam feridas como as minhas – e que portanto haverão de entender. Toda a verdadeira literatura vem dessa certeza infantil e otimista de que todas as pessoas são parecidas. Quando um escritor se recolhe por anos a fio, com esse gesto ele sugere uma humanidade única, um mundo sem centro (pp. 27-28).

Este fragmento me fez pensar melhor no esforço que exige o ofício do escritor. Muito provavelmente o autor recorreu ao isolamento, ao silêncio, e assim foi capaz de construir, com sua narrativa, outras imagens do mundo para cada um de nós. E, levando em consideração o volume de sua obra, foram longos períodos de trabalho intenso, de solidão com seus autores de referência. Seus textos e conferências organizados neste livro são provas desse trabalho. E, como afirma Pamuk, posso pensar que Jorge tem a convicção de que sua escrita irá inquietar outros, que as questões por ele problematizadas ao longo das quase 400 páginas de alguma maneira irão atingir inúmeros leitores. Isso significa que em Jorge, de fato, ainda permanece uma certeza infantil e otimista na humanidade.

Sua escrita apresenta temas extremamente densos, mas o faz de maneira suave. Questões diversas como modernidade, pós-modernidade, ciência, humanidade, historiografia, Nordeste, sertão, catolicismo popular, Brasil e América Latina, entre outras tantas, foram tecidas obedecendo a um estilo e estética capaz de bem envolver o leitor. Apenas para ilustrar, reproduzimos aqui um pequeno fragmento sobre a crise da modernidade, temática recorrente na obra:

Resultado dessa consciência de crise e de desamparo humano é que terminou por se falar no esgotamento da modernidade racionalista e cientificista, cedendo lugar a um novo período nebuloso – a pós-modernidade, que, também pode ser concebida como Contemporaneidade ou mesmo Modernidade Tardia. Mas importante do que a nomenclatura – e ela é muito complexa e sem unanimidade – são os questionamentos que essa contemporaneidade faz à razão modernista. Está posto em dúvida o conhecimento da realidade como algo constante, estável e imutável; ou seja, critica-se o domínio positivista da razão. Coloca-se sob suspeita a aceitação unânime do conceito de progresso como substantividade, duvidando-se de que ele seja o garantidor de uma vida melhor para a humanidade. Suspeita-se, de igual modo, das grandes narrativas que seriam subjacentes às crenças num futuro cada vez perfeito (pp. 38-39).

O fragmento projeta uma concepção de modernidade a partir de suas experiências, de alguém que conhece os dramas e as tramas dos grupos sociais aos quais se refere. A modernidade é analisada considerando-se as particularidades inerentes ao Brasil e ao Nordeste. As questões postas e seus personagens são de alguma maneira conhecidos, versam sobre coisas comuns aos nossos sentidos. Aliado a tudo isso, não há uma simples transposição ou acomodação de perspectivas teóricas. Entendo que o autor é um observador das questões culturais, sociais, políticas e econômicas da contemporaneidade, e a concepção teórica adquire significado porque se encontra articulada a sua condição de crítico de seu tempo, possibilitando, assim, maior identificação do leitor, pois seus textos tratam de questões complexas, significativas, mas que são próximas, permitindo-nos identificar a modernidade como um tempo conhecido para nós.

Ainda dentro dessa gama de questões muito me sensibilizou um aspecto recorrente ao longo do livro: as relações entre tempo e memória. A narrativa apresenta uma memória inconsciente – memória que entendo como experiência de vida, de aprendizagem. Ressalto aqui o momento em que o autor narra sobre a obra de Graciliano Ramos, São Bernardo, que se encontra no capítulo treze. São vários mundos e temporalidades que se entrelaçam naquele São Bernardo: o caos, a desordem, a doença, a morte, a traição, enfim:

Percebe-se que em São Bernardo é o espaço ficcional que permite figurar tudo isso, a um só tempo, fundindo e confundindo temporalidades históricas. Seu Ribeiro, Paulo Honório, Madalena e Padilha são personagens, racionalidades, tempos, narrativas, memórias e linguagens simultâneas, afins e diferentes. Até porque a viagem narrativa de Seu Ribeiro em direção a um tempo pretérito de felicidades pode significar um simbólico recuo de Paulo Honório… (pp. 207-208).

Sua concepção de tempo e a forma como foi articulada na narrativa fez-me recordar uma experiência que acredito em muito assemelhar-se ao que o autor entende por tempos múltiplos. A imagem que chega aos sentidos é a da travessia de um rio, em particular do rio Ipanema, que corta o município de Águas Belas/PE, onde nasci e vivi até atingir a maioridade. Em determinada época do ano (claro que com mais regularidade que em anos recentes) seu leito era coberto pelas águas e sua travessia exigia certas habilidades. Suas águas escuras não nos permitiam ver onde estávamos pisando, de modo que cada passo precisava ser dado com cautela, sendo necessário examinar a segurança do passo seguinte. A depender da força de suas águas, era praticamente impossível realizar a travessia em linha reta, mas sempre em diagonal, acompanhando o curso de sua correnteza. E não significava que uma vez feito o traslado havíamos descoberto uma passagem segura para as novas travessias, isso porque nunca sabemos como se comportam as correntezas, visto que em determinados momentos mudam de direção, fazendo surgir naquele caminho outrora seguro inúmeras armadilhas, depressões. As correntezas não necessariamente têm o mesmo sentido, há uma dinâmica imprevisível, em dado momento poderão nos levar para o fundo do leito, ou projetar uma força capaz de fazer flutuar sobre as águas o aventureiro, ou mesmo o conduzir em movimentos circulatórios, enfim, poderá ainda nos levar rio abaixo ou rio acima.

Essa obra é também uma travessia, uma passagem. O tempo no livro Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, em minha leitura, não se apresenta seguindo uma linearidade, pelo contrário, ele é curvo, cheio de surpresas, de idas e vindas como são os trajetos que percorremos em um labirinto. A construção dos vários textos que compõem este livro teve seu tempo, e eles apresentam marcas da nossa contemporaneidade.

Márcio Ananias Ferreira Vilela – Universidade Federal de Pernambuco.


SIQUEIRA, Antônio Jorge. Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades. Resenha de: VILELA, Márcio Ananias Ferreira. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.32, n.1, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

 

Os Padres e a Teologia da Ilustração – Pernambuco 1817 – Antônio Jorge Siqueira

O historiador Manuel de Oliveira Lima, em seus escritos, relata que a Revolução Pernambucana de 1817 poderia também ser conhecida como A Revolução dos Padres. Não era para menos, a participação dos clérigos foi bastante vultosa, misturando as mais variadas ordens eclesiásticas e os seus diversos graus hierárquicos em um movimento que rompeu laços com o Império Lusitano por mais de 70 dias. Em 1817, o extenso bispado da Diocese de Olinda se encontrava vago, pois por volta de 1815 o clérigo que exercia a sua direção havia viajado à corte no Rio de Janeiro para receber a sagração episcopal (BERNARDES, 2006) e até então não retornara. Nesse ínterim, o cabido ficou responsável pelo controle do bispado, tendo o Deão Bernardo Luiz Ferreira Portugal como a sua maior autoridade. Rebentada a revolução em 06 de março de 1817, o deão apoiou o movimento com entusiasmo, emitindo ordens a toda a diocese e a todos os padres, para que abraçassem a pátria [1] e logo instruíssem os fiéis a fazer o mesmo. Além da adesão da maior autoridade eclesiástica do bispado à revolução, outro padre, João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, Professor de desenho do Seminário de Olinda, foi um dos governadores que compôs a junta governativa, formada por cinco membros. Exemplos não faltarão sobre a participação do clero em 1817: além de ocuparem cargos governando a revolução, serviram como soldados, comandantes de tropas, emissários, propagadores dos ideais revolucionários e até o cronista por excelência de 1817 também era membro do clero. Trata-se de Francisco Muniz Tavares que nos legou a obra História da Revolução de Pernambuco em 1817, publicada pela primeira vez em 1840, um clássico da historiografia obrigatório para quem quiser entender o movimento de 1817. Leia Mais