Entretien sur la mécanologie – SIMONDON (SS)

SIMONDON, Gilbert.  Entretien sur la mécanologie. Revue de Synthèse, 6a. série, 130, 2, p. 103-32, 2009. Resenha de: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Avanço técnico e humanização em Gilbert Simondon. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 431-38, 2015.

Simondon, ainda que não conhecido do público não especializado, é um autor bastante importante, cujas ideias, ainda atuais, influenciaram o pensamento de estudiosos do fenômeno técnico como Jacques Ellul (2012 [1977]) e Andrew Feenberg (2015). Sua análise sobre a técnica tem como intenção principal declarada ajudar as pessoas a superarem um conhecimento limitado e/ou equivocado a respeito dela, de sorte a tornarem-se capazes de construir uma vida individual e coletiva melhor para si e para os demais. Os principais problemas sociais de nosso tempo, em sua opinião, não advêm de uma excessiva tecnificação da vida, mas, ao contrário, de um atraso da cultura com respeito às possibilidades do desenvolvimento técnico. É por isso, então, que ele se opõe aos humanistas de sua época, para os quais estaria na máquina o mal a ser combatido, e não o remédio a ser procurado e desenvolvido. Tais ponderações estão presentes, como se verá, nestas entrevistas de 1968.

Outro ponto importante do pensamento de Simondon, e que o opôs à cibernética de Norbert Wiener (1948; 1968), é a natureza e o papel da informação. Ainda que, para o francês, a informação de realimentação, necessária para o feedback promotor da homeostase, seja um caso particular daquilo que mais amplamente seria a informação, ela tanto pode dar-se de maneira rústica, estranha à moderna cibernética de Wiener, quanto é insuficiente ou apenas parcial, no que tange efetivamente à informação, por duas principais razões. Por um lado, em termos biológicos, a informação não tem por fim apenas o equilíbrio do organismo, mas está na base dos processos de individuação pelos quais ele passa (cf. Barthélémy, 2014, p. 146-7). Por outro lado, em termos sociais, as informações providas pelos mais diversos mecanismos artificiais de controle ou mensuração só são úteis para a ação reguladora, se for provido ou considerado também o panorama total de fundo, em relação ao qual essa informação poderá ser interpretada e fazer sentido (cf. Barthélémy, 2014, p. 147-8; Simondon, 1989 [1958], p. 284-5). Assim, uma teoria da informação deveria estar ocupada com a gênese da informação, nas trocas mútuas entre os indivíduos e deles com seus meios associados (cf. Barthélémy, 2014, p. 149), muito mais do que com o ruído, o canal de transmissão ou perdas, a predição e a reconstituição da mensagem enviada.

Não obstante tais diferenças entre os dois autores, as entrevistas farão referência apenas ao possível caráter rústico da homeostase. Juntamente com isso, elas aludirão a outro ponto de divergência entre eles, o caráter marcadamente subversivo ou ampliador que uma invenção técnica autêntica potencialmente tem em face ao estabelecido culturalmente. Com isso, o grande valor da informação estaria, para Simondon, em ela ser principalmente potencializadora da individuação e da invenção, e não em seu papel de asseguradora da ordem estabelecida, através da regulação ou da conformação homeostática (cf. Barthélémy, 2014, p. 150-3).

Isso posto, procederemos agora à apresentação das entrevistas de Simondon, que será seguida de uma breve problematização de alguns pontos de sua teoria.

Entretien sur la mécanologie é a transcrição de duas entrevistas concedidas por Simondon em 1968 ao jornalista canadense Jean Le Moyne. O entrevistador estava em vias de elaborar três filmes sobre a técnica, um para cada um dos três modos técnicos de existência apresentados por Simondon em Du mode d’existence des objets techniques (1958), as quais Le Moyne chama de estático, dinâmico e reticular. Nas 56 duplas de perguntas e respostas que compõem esse documento, Simondon passará por diversos dos pontos-chave de sua reflexão sobre a técnica, aprofundando e esclarecendo certos aspectos de sua obra de 1958.

Naquilo que se segue, vamos ater-nos às partes das entrevistas que nos parecem ser as mais relevantes para explicitar essa que Simondon toma para si como sua principal meta, a de ajudar-nos a melhor compreender o fenômeno técnico e a assumi-lo como lugar de uma “revolução cultural” (p. 128). Com isso, partes substanciais do material, que funcionam principalmente como um detalhamento ilustrativo para a elaboração do filme de Le Moyne, serão deixadas de lado.1

Uma primeira característica da técnica é que ela funciona sempre como mediação entre o ser humano e o mundo, ou entre os objetos técnicos (p. 106). Por essa razão, de modo a ser uma realidade material que opera tal mediação, o objeto técnico precisa, antes de tudo, individuar-se, constituir-se como uma unidade, como algo sólido. Essa unidade também pode ser obtida pela integração de subunidades, como nas máquinas. Seja como for, o elemento básico de onde se parte será sempre, em si, uma unidade material (p. 107 [2]). E à medida que o objeto técnico vai tornando-se mais complexo, o papel da informação para que ele subsista aumenta enormemente, porque uma máquina, assim como um ser vivo, precisa ser estável, ou seja, precisa dispor de mecanismos de autorregulação (cf. p. 107 [3]) para alcançar a homeostase. Esse estado de equilíbrio, contudo, já está presente em objetos bastante primitivos, como uma lâmpada a óleo, não sendo uma prerrogativa dos modernos robôs ou outros sistemas automáticos, nos quais existem estruturas específicas de comunicação e controle (cf. p. 123-5 [44]).

Algo que não está presente nas entrevistas, mas que é amplamente trabalhado por Simondon em outras partes (cf. Barthélémy, 2014, p. 37-42), é o constante e infindo vir-a-ser ou devir que caracteriza todo indivíduo, técnico ou vivente, em sua relação com seu meio associado. No caso do objeto técnico, sua evolução caminha em direção à concretude, que se configuraria por uma unidade sinergética interna e uma integração/ adaptação crescente ao meio (cf. p. 121-3 [40-43]). Assim, um objeto concreto seria aquele capaz de manter-se (autorregular-se) e no “qual, organicamente, nenhuma das partes pode ser completamente separada das outras sem perder seu sentido” (p. 122).

Em seu desenvolvimento histórico, todo objeto técnico passaria por três fases ou etapas. Ele surgiria indivisível, estático, uma vez que, como se viu, toda solução técnica, ainda que composta por subunidades, apresenta-se como uma unidade material. Na sequência, viria a fase dinâmica da dicotomização, caracterizada pela adaptação do objeto técnico ao mundo exterior e ao usuário. No primeiro caso, teríamos mais propriamente a evolução técnica, marcada pela crescente concretização e pelo desenvolvimento de funcionalidades. No que tange à adaptação aos usuários, podem intervir valores não técnicos (por exemplo, econômicos), de modo que, para tornar o objeto atraente ou desejável pelo comprador, ele é inserido em uma embalagem que faz com que sua natureza técnica seja dificilmente percebida. É daí que pode surgir, então, o desejo de trocar de carro, por exemplo, por ele estar “fora de moda”, o que é um “erro cultural fundamental” (p. 109), já que “estar na moda” tem muito pouco a ver com a natureza própria da técnica. Por fim, uma vez que o objeto está estabilizado, teríamos a fase de rede, possível unicamente depois da industrialização, quando as diversas partes em que ele foi subdivido estão padronizadas e podem ser facilmente trocadas ou consertadas. O objeto torna-se, com isso, mais barato e mais fácil de ser mantido/conservado (cf. p. 108-10 [7]). Por conta da padronização, ele torna-se também mais versátil, podendo ser facilmente integrado em outras configurações (cf. p. 122-3 [42]). Pagase, não obstante, um preço pela entrada nesta última etapa, uma diminuição na robustez do objeto. Algo semelhante à perda de autonomia do motor elétrico em relação à rede de alimentação, quando comparado com o motor a vapor e aquilo que lhe serve de combustível. De fato, quando o objeto torna-se parte ou dependente de uma rede, o mau funcionamento ou deterioração dessa rede pode torná-lo inoperante. Foi o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, quando as locomotivas elétricas deixaram de funcionar por conta do colapso da rede de alimentação, enquanto o trem a vapor, em sua menor especialização, pôde seguir funcionando, sendo alimentado por lenha, carvão e outros materiais combustíveis à disposição (cf. p. 112-3 [15-20]).

Seja como for, o fato é que, segundo Simondon, existe um grande desconhecimento acerca da técnica pelas pessoas. Isso acontece porque a analisamos com uma razão que não lhe é contemporânea, mas que está atrasada em relação ao estágio de seu desenvolvimento. Para que pudéssemos superar essa defasagem, compreendendo adequadamente o objeto técnico, precisaríamos “saber como ele é constituído em sua essência e ter assistido sua gênese, seja diretamente, quando possível, seja pelo ensino” (p. 110). Isso, entretanto, está quase que absolutamente ausente em nossas sociedades, nas quais não dispomos de um adequado ensino de história das técnicas (cf. p. 108-11 [7-8]).

A técnica, contudo, não é algo alheio ao ser humano (cf. p. 129 [56]). Ao contrário, ela é proveniente da realidade humana, tem origem na incompatibilidade que buscamos superar entre aquilo que desejamos poder realizar (a ordem do antecipado) e aquilo que conseguimos (ordem do real) (cf. Simondon, 2008, p. 140). A bem da verdade, a técnica é não apenas o mediador entre nós e o mundo, ela (também) assegura nossa harmonização com ele. Com efeito, é a técnica que pode tornar a natureza um lugar mais seguro e propício para a vida humana, ao mesmo tempo em que, ao racionalizar nossa atuação sobre o mundo, reduz nossos danos e impactos ilógicos sobre ele (cf. p. 129 [56]). É nesse sentido, então, que o mundo carece de poetas técnicos (cf. p. 111-2 [14]), de pessoas capazes de desenvolver a conaturalidade entre a “rede humana” e a “geografia natural da região”, entre as pessoas, enquanto grupos e sociedades, e o mundo no qual elas habitam. Tais técnicos seriam poetas, uma vez que suas invenções representariam encontros de significações; não uma violência ou uma submissão da natureza, mas um auspicioso desenvolvimento humano em harmonia com ela.

E esse devir da técnica, do mesmo modo daquele que se observa no desenvolvimento dos seres viventes, não acontece segundo linhagens unilineares, mas múltiplas, porque, diante de realidades ambientais distintas, as mediações entre o ser humano e o mundo tendem a ser diferentes. De fato, “não se faz uma ferramenta com o que quer que seja” (p. 121), de modo que o desenvolvimento técnico acaba por relacionar-se com as razões técnicas de utilidade (aquilo que se busca resolver), de inteligência (o arsenal de conhecimentos e habilidades de que o grupo dispõe) e com a natureza ambiente (o habitat em que vive o grupo e aquilo que ele oferece como base material possível para a construção do objeto) (cf. p. 120-1 [39]).

Mas quais são as consequências, agora para a cultura, do desconhecimento de tudo isso que Simondon apresenta como característico da técnica? A consequência principal ou mais insidiosa é que acabamos por privar-nos daquilo que poderia ser uma das formas de superar várias de nossas mazelas sociais. Com efeito, a possibilidade de superação da tecnocracia, da degradação ambiental e de diversos dos males do modo como vivemos em sociedade, e que é muitas vezes imputado à técnica, passa justamente por tomá-la em sua essência, libertando-a da condição de escravidão a que a submetemos, em nossa busca por poder e controle sobre a natureza e sobre as outras pessoas (cf. Simondon, 1989 [1958], p. 126-8; 1989, p. 287-90). O elemento de humanização da técnica encontra-se no fato de que ela, em seu desenvolvimento autêntico, subtrai-se das ordenações finalistas que frequentemente caracterizam e submetem a ordem social: “o homem liberta-se pela técnica da restrição (contrainte) social; pela tecnologia da informação, ele torna-se criador dessa organização de solidariedade que uma vez o aprisionou” (Simondon, 1989 [1958], p. 104). Com isso, a técnica oferece a possibilidade de libertação das naturalizações de certas estruturações culturais, permitindo-nos também a nós, individual e coletivamente, devir. Entretanto, por conta da nossa ignorância a respeito de sua real natureza, o que acaba por suceder é o contrário disso, ao invés de fazermos a cultura adiantar-se, alargar-se para entrar em fase com o desenvolvimento técnico e as novas possibilidades de encontros de significações que ele nos traz, tendemos a submetê-lo àquilo que ele era vinte anos antes (cf. p. 109).

Assim, porquanto o futuro técnico seja cada vez mais o das redes, estudá-las é fundamental. A dificuldade que podemos ter para entendê-las advém do fato de que, tomada nesse nível, a técnica está tanto relacionada a coisas muito grandes quanto representa a mediação entre o ser humano em sociedade e a natureza (cf. p. 126). Seja como for, pensar as redes, assumir conscientemente o seu desenvolvimento e a articulação delas em redes de redes, é o desafio daqueles que não querem apenas construir a história (do passado), mas incidir na transformação cultural do presente e do futuro. A superação do atraso cultural e de tantos de nossos problemas pode vir exatamente disso (cf. p. 127-8 [50-51]). Conhecer verdadeiramente a técnica e permitir seu desenvolvimento autêntico é, então, a porta para uma verdadeira revolução cultural (cf. p. 127-8).

Esse é, pois, o itinerário seguido por Simondon nessas duas entrevistas publicadas pela Revue de Sinthèse. Nelas, como se viu, a importância da reflexão cuidadosa sobre o fenômeno técnico ocorre com vistas a que possamos construir conscientemente o futuro que queremos para nós. Futuro da maximização das nossas possibilidades de ser, da harmonização com a natureza e da amizade com o objeto técnico (que nos impediria de reduzi-lo a meio para a dominação e o controle). A técnica, porém, é incapaz de desenvolver-se a si própria. Uma invenção só pode ter lugar na mente humana, como mediação possível entre aquilo que desejamos (ou antecipamos) e aquilo que já existe (cf. Simondon, 2008, p. 186-7). É por essa razão que Simondon idealiza a figura dos técnicos-poetas, capazes da construção de novos sentidos e harmonizações entre nós e o mundo. Disso resultaria a subsequente pressão sobre a cultura para que ela se amplie, que é a condição de possibilidade de seu próprio devir e do das pessoas.

A teoria de Simondon, entretanto, enfrenta um problema de difícil superação, que é a sua compreensão de que o desenvolvimento técnico pode ocorrer à margem e independente dos valores sociais. Em sua concepção, haveria uma força interna que, por si só, governaria o processo de aumento de concretude dos objetos já existentes e de surgimento de novas mediações entre o ser humano e a natureza. Contudo, tal entendimento, além de ser de difícil constatação empírica, parece desconsiderar o fato de que o técnico inventor, aquele que percebe a tensão entre a ordem do real e a do antecipado, buscando soluções técnicas para compatibilizar as duas, é um ser humano, membro de uma comunidade e de uma cultura, além de ser um técnico. Assim, parece forçoso admitir que boa parte daquilo que lhe chamará a atenção no mundo, ou seja, os problemas ou desejos que lhe seduzirão, será aquilo que, de alguma forma, é significativo, caro ou (aparentemente) urgente/ necessário para o grupo ao qual ele pertence. Desse modo, a técnica encerraria em si também valores e buscas sociais, de sorte que o seu desenvolvimento seria campo também para disputas políticas. É o que sustenta Feenberg (cf. 1995, 1999, 2002, 2003). Com respeito à análise da incorporação de valores sociais ao fenômeno técnico, poderíamos citar ainda diversos outros autores. É o caso, por exemplo, de Mumford (cf. 1964) e Winner (cf. 1979; 1986). Cada qual, entretanto, adotará uma abordagem distinta, seja pelo tipo de leitura que faz – de cunho mais histórico, político ou filosófico –, seja pelo entendimento que constrói e aquilo que propõe a partir dele.

Além disso, parece que Simondon concebe que toda nova funcionalidade encerraria sempre e necessariamente apenas o potencial de fazer o bem ao ser humano, à sociedade e ao meio ambiente. Os efeitos colaterais dela e seus riscos potenciais, como bem o analisam, por exemplo, Ellul (cf. 2008 [1954], 2012 [1977], 1990, 1962), não são jamais por ele considerados. Porém, se os riscos e os efeitos colaterais fazem parte da técnica, tanto quanto sua capacidade de nos prover mediações com o mundo natural, e se os valores que possuímos enquanto seres humanos fazem-nos enxergar o mundo, suas possibilidades e seus aspectos intocáveis de maneira singular, então múltiplas soluções técnicas para um mesmo problema são teoricamente possíveis (cada qual tributária do local existencial e valorativo de que se parte) e uma ou algumas delas serão mais legítimas para quem as avalia do que as outras. É o que defende Hugh Lacey (2011). A luta por fazer prevalecerem as soluções técnicas mais de acordo com os valores que os grupos têm para si, em detrimento daquelas que lhes são menos legítimas, seria a base da democratização da tecnologia proposta por Feenberg.

Em suma, então, se é certo, por um lado, que a teoria de Simondon, tratada em alguns dos seus pontos principais nestas duas entrevistas por ele concedidas em 1968, oferece-nos elementos bastante interessantes e atuais para a reflexão sobre a técnica, por outro, ela parece poder ou requerer ser enriquecida, alargada ou transformada, de modo a dar conta de aspectos do fenômeno técnico que originalmente parece deixar descobertos.

Notas

1 Para facilitar a localização do texto na Revue de Synthèse, várias das referências a ele constarão da numeração da página, seguida por um número entre colchetes, que corresponde à dupla pergunta-resposta em que elas aparecem, numeradas sequencialmente.

Referências

BARTHÉLÉMY, J. H. Simondon. Clamecy: Les Belles Lettres, 2014.

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_____. La technique ou l’enjeu du siècle. Paris: Économica, 2008 [1954].

_____. Le systhème technicien. Paris: Cherche Midi, 2012 [1977].

FEENBERG, A. Alternative modernity: the technical turn in philosophy and social theory. Berkeley: University of California Press, 1995.

_____. Questioning technology. New York: Routledge, 1999.

_____. Transforming technology: a critical theory revisited. New York: Oxford University Press, 2002.

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_____. Simondon e o construtivismo: uma contribuição recursiva à teoria da concretização. Scientiae Studia, 13, 2, p. 263-81, 2015.

LACEY, H. A imparcialidade da ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientiae Studia, 9, 3, p. 487500, 2011.

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SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techinques. Paris: Aubier, 1989 [1958].

_____. L’individuation psychique et collective – à la lumière des notions de forme, information, potential et métastabilité. Paris : Editions Aubier, 1989.

_____. Imagination et invention, 1965-1966. Paris: La Transparence, 2008.

WIENER, N. Cybernetics: or control and communication in the animal and the machine. New York: The Technology Press, 1948.

_____. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução J. P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1968.

WINNER, L. Tecnología autónoma: la técnica incontrolada como objeto del pensamiento político. Barcelona: Gustavo Gili, 1979.

_____. Do artifacts have politics? In: _____. The whale and the reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: University of Chicago Press, 1986. p. 19-39.

Cristiano Cordeiro Cruz – Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2013 / 18757-0.  E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br

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[DR]

 

Imagination et invention, 1965-1966 – SIMONDON (SS)

SIMONDON, Gilbert. Imagination et invention, 1965-1966. Edição estabelecida por Nathalie Simondon. Apresentada por Jean-Yves Chateau. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2008. Resenha de: CAMOLEZI, Marcos. Sobre o conceito de invenção em Gilbert Simondon. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 439-48, 2015.

I

Publicado em 2008, o curso Imagination et invention, 1965-1966 expõe o que Gilbert Simondon denomina ciclo genético das imagens. No pano de fundo, está em jogo uma ontologia da transformação operada pelos conceitos de defasagem, transdução e metaestabilidade, resultantes da tese principal L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information (Simondon, 2005). Embora por ela não tenhamos ocasião de avançar, o apontamento é importante na medida em que esclarece o perfil da reflexão que organiza o próprio desenvolvimento de Imagination et invention. O curso mostra haver uma autonomia no tratamento da evolução ontogenética das imagens com relação aos operadores conceituais ontológicos que, internamente, definem o ciclo em movimento. Assim, Simondon afirma tratar-se de uma análise fenomenológica “no sentido próprio do termo” (p. 15), um estudo das “manifestações concretas” das imagens, cujo sentido efetivo é o de “impor sua natureza”.

O autor concebe quatro fases do circuito ontogenético das imagens: imagens motoras, imagens perceptivas, imagens afetivo-emotivas (ou imagens-símbolo) e, por meio da invenção, objetos-imagem. Aqui, vamos dirigir-nos diretamente à passagem da terceira à quarta fase, relativa à invenção dos objetos técnicos. Nela está em jogo mostrar como o universo dos símbolos é portador de um potencial que não pode atualizar-se intrinsecamente, isto é, unicamente por meio do reordenamento e multiplicação dos próprios símbolos. Enquanto imagem, o símbolo abarca um conjunto de possíveis que só podem atualizar-se em sentido concreto e preciso por uma mudança de ordem de grandeza. Em situações concretas, imagens-lembrança e imagens-símbolo compõem um universo mental tensionado com estruturas exógenas, como os membros do corpo e os objetos. É quando esse universo “está saturado, não podendo mais acolher experiência nova, que o sujeito deve modificar sua estrutura para encontrar dimensões de organização mais vastas, mais ‘potentes’, capazes de superar as incompatibilidades experimentadas” (p. 21). A invenção deve consistir justamente na saturação de um universo metaestável de imagens à medida que um campo nascente de finalidade não pode ser resolvido pelo campo das experiências passadas.

Para que a invenção seja consumada, entretanto, é necessário que no desenvolvimento da imagem confira-se predominância a uma determinada valência intrínseca, até então equalizada no interior do símbolo. Se o símbolo está disponível ao sujeito apenas de modo ambivalente (como imago, por exemplo, p. 127-31), ele não poderia oferecer condições suficientes para que o sujeito aja por ele, esgotando o potencial do objeto simbolizado segundo uma tendência específica de ação. Compreender a invenção consiste, antes de tudo, em entender que a passagem do símbolo ao objeto propriamente dito efetiva-se por uma queda do equilíbrio (metaestabilidade) ao desequilíbrio. Ao longo de todo o livro, procura-se redefinir a imaginação em termos contínuos e dinâmicos; não como faculdade justaposta a tantas outras, mas como potencial motor, perceptivo e afetivo capaz de objetivar conjuntos ordenados de imagens. Nesse sentido, a invenção resulta como um movimento da imaginação, uma atualização de energia potencial por reestruturação: “um problema é apenas uma isca, uma colocação em movimento” (p. 173). É, portanto, somente no instante em que a imagem ordena-se de modo a atualizar uma de suas linhas potenciais segundo um desígnio preciso que o estado de saturação alivia-se construtivamente e a invenção consuma-se.

Uma vez definido o processo dinâmico que resulta na invenção, Simondon procura compreender a essência dos objetos tornados autônomos. Em primeiro lugar, a invenção técnica consiste essencialmente na restituição de compatibilidade que se torna possível entre os modos de ação e os objetivos previstos. Em segundo lugar, em razão dessa restituição, a invenção tem por consequência essencial a amplificação dos potenciais da ação.

Como compatibilização, o que está em jogo na invenção de um objeto técnico é a criação de um sistema de transferência entre ordens distintas. A alavanca e o guincho, por exemplo, transferem movimento, servindo como mediação entre o que é movido e o organismo de acordo com uma ordem que não é possibilitada pela ação direta da estrutura psicomotora do operador. O “sujeito faz parte da ordem de realidade em que o problema é colocado; ele não faz parte daquela do resultado imaginado; a invenção é a descoberta de mediação entre essas duas ordens” (p. 141-2). Vemos um objeto e o tocamos, ele é dimensionado por uma síntese entre a visão e o tato; batemos com os nós dos dedos em sua superfície, ouvimos o som que dele ecoa e avaliamos o material de que é feito, estimando sua densidade por uma síntese entre o tato e a audição. A apreciação que prepara a ação adequada sobre o objeto não decorre, portanto, apenas de um ou outro sentido, mas da integração entre todos eles. Ela pode, ainda, ser amplificada pela simbolização metrológica a fim de que a ação que pretendemos sobre ele torne-se mais precisa. Assim, a imagem do objeto, desenvolvida a partir do nível sensório-motor aos níveis perceptivo e simbólico, não deixa de consistir em uma “reserva de soluções para a invenção concreta, um pouco como um mapa de ruas é uma reserva sempre pronta de itinerários”, de modo que os “desvios possíveis preexistem na imagem” (p. 146). Pelo potencial de antecipação da imagem, a invenção eclode como ordenação de objetos previamente oferecidos, mas não previamente ordenados. Ela consiste, portanto, em uma compatibilização, uma comunicação, uma organização, enfim, uma solução que deve atravessar duas ordens de grandeza.

Podemos conceber o objeto técnico como se fosse organizado em três camadas. As camadas externa e intermediária seriam as instâncias de compatibilidade extrínseca entre, respectivamente, o objeto e o meio e o objeto e o operador. No caso do carro, a camada externa corresponderia ao design exterior e aos acessórios. A camada propriamente intermediária corresponderia às estruturas de mediação do condutor com a camada interna (chave de ignição, pedais, câmbio, volante). É por ela que o organismo controla a maneira como se desloca, em comunicação mediata, porém ininterrupta, com o motor, chassi, eixos, rodas etc., isto é, com o “núcleo de tecnicidade produtiva e resistente”, sobre o qual “as camadas externa e média desenvolvem-se como parasitas, com uma importância variável segundo as circunstâncias sociais e psicossociais” (p. 167). O que define a invenção do objeto carro é, portanto, apenas a camada interna, que manifesta de modo essencial a compatibilidade intrínseca que o objeto é capaz de produzir, por meio da compatibilização de recursos naturais (petróleo) com o desígnio (deslocamento) e as condições do corpo humano.

Considere-se o advento da fotografia, das primeiras experimentações aos anos 1960, marcados pela invenção do aparelho Polaroid. Essencialmente, a invenção da fotografia é uma compatibilização fotoquímica. Embora cada um dos componentes mecânicos e químicos necessários à produção da reação fotoquímica no interior das “câmeras analógicas” fosse conhecido separadamente antes da fotografia, essa invenção só pôde consumar-se por meio da estruturação satisfatória entre uma câmara escura, um mecanismo obturador e uma superfície química fotossensível. Todo o desafio aí consiste em produzir e interromper uma reação fotoquímica em instantes exatos, caso contrário a reação permaneceria ativa e a foto passaria a desfigurar-se. Ora, por mais que se intensifiquem a compatibilização de processos primitivos, nenhum aperfeiçoamento das câmeras analógicas deixa de repousar sobre o mesmo princípio. É provável que Simondon concedesse apenas à fotografia digital o estatuto de nova invenção essencial, uma vez que nela a compatibilização é realizada por um sistema ótico que converte os raios de luz em caracteres numéricos e, em seguida, reconverte-os para que apareçam em visores digitais.

Quanto à invenção do sistema Polaroid, especificamente, trata-se de levar a invenção primitiva a um grau ainda mais elevado de compatibilidade. Enquanto na maior parte dos objetos técnicos as camadas constituem-se como linhas independentes que passam a divergir segundo demandas psicossociais, o dispositivo Polaroid é capaz de reuni-las. O princípio da reação permanece o mesmo, mas a reunião das três camadas produz efeitos inteiramente inovadores. Isso porque o próprio princípio manifestase materialmente em poucos segundos nas mãos do operador, na forma de foto revelada, fazendo reunirem-se a reação fotoquímica, como compatibilização primária, e o uso social que dela se faz após a revelação. Disponibilizada quase instantaneamente, a foto pode servir de base para o aperfeiçoamento imediato de uma nova foto. Ou seja, o princípio materializado em outra ordem de grandeza (foto revelada) é capaz de retroagir, em uma nova foto, sobre a maneira como os participantes da imagem vão comportarse, sobre o enquadramento, as condições ideais de luminosidade etc. Assim, o próprio princípio (camada interna do objeto técnico) reúne-se com o emprego que o usuário faz do aparelho (camada intermediária) e, ainda, com a maneira como o aparelho manifesta-se socialmente (camada externa).

O exemplo da fotografia serve também a outra definição da essência do objeto técnico. Nele se pode verificar também um caráter orgânico, cuja “autocorrelação estrutural e funcional” (p. 169) não pode ser interrompida sem a perda da eficácia do próprio dispositivo. Pela analogia orgânica, trata-se de pensá-lo como totalidade individualizada, coesa e coerente, organizada em função de uma sistematicidade que não se pode violar. Como objeto técnico de caráter orgânico, o que a câmera fotográfica, por exemplo, realiza por meio de sua estrutura essencial é, em última análise, a formalização da própria natureza (luz natural), homogeneizando-a funcionalmente com outras estruturas.

É nesse sentido que se esclarece a ideia de uma clivagem do equilíbrio das valências da imagem-símbolo ao desequilíbrio dos modos operatórios e das funções da imagem-objeto. À medida que os objetos e os recursos naturais vêm a organizar-se em um sistema, o potencial trazido por cada um deles no estado de dispersão é atualizado em linhas de força específicas. Isso deve explicar a razão pela qual a ordenação sistemática não produz resultados limitados às expectativas iniciais de resolução de um problema. A atualização dos potenciais de cada subconjunto não produz uma soma simples, pois, na armação sistemática, ocorre uma verdadeira amplificação do potencial dos efeitos obtidos. As condições do problema são ultrapassadas porque a invenção recria novos potenciais, atualizáveis mediante novas invenções, instaurando novos ciclos genéticos de imagens.

Para demonstrá-lo, Simondon trata da invenção do concreto protendido em substituição à construção por pedras e ao concreto armado (p. 173-4). Tal substituição apresenta diversas vantagens, especialmente pelo fato de que o concreto é um material modelável, de baixíssimo desperdício e transporte conveniente. Contudo, o uso do concreto por si só não deixa de ter inúmeros inconvenientes. Para lidar com sua fraqueza sob pressão, nele se podem integrar barras flexíveis de metal, de modo que da incorporação de elementos elásticos resulte, após secagem conjunta, uma tração permanente. Logo, “a construção em concreto protendido ultrapassa aquela que teria sido possível em pedra, madeira e ferro” (p. 174). Isso explica, portanto, por que a invenção técnica tem “funções superabundantes”, por que dá um “salto amplificador” sobre o potencial dos objetos separados, por que produz “mais-valia funcional” e por que, em resultado de uma “dialética amplificadora”, verifica-se uma naturalização progressiva das técnicas.

Exposta a virtude de amplificação, Simondon vê-se em condição de relativizar o alcance das analogias topológicas (p. 179). Na verdade, o que está envolvido de maneira essencial na invenção “é o efeito de amplificação por recrutamento de realidades primitivamente não previstas e a inclusão dessas realidades, com poderes novos que ultrapassam a origem, em um sistema formalizado” (p. 179). Como nos seres vivos, os subconjuntos exercem um efeito modulador entre si, uma “ressonância interna” (p. 183), de modo a aperfeiçoarem o nível de compatibilidade intrínseca do sistema. Dessa dinâmica resulta que uma invenção jamais poderia deixar de evoluir, uma vez que ela se desenvolve intrinsecamente, elevando seu nível de compatibilidade, e amplifica seus efeitos potenciais, oferecendo condições renovadas para a reinauguração de outros ciclos de imagens.

II

Lembremo-nos de que a invenção como problema filosófico não poderia ser tomada por novidade no contexto francês do final do século XIX. Gilbert Simondon é beneficiário de uma longa tradição, heterogênea e internamente divergente, que se reúne na tentativa de representar os fenômenos da vida segundo um modo evolutivo e dinâmico.

Passemos diretamente aos anos 1900, quando Henri Bergson (1859-1941) despontava como figura de síntese em um cenário intelectual cada vez mais esmigalhado entre, por um lado, a adesão à ciência e a recusa da metafísica e, por outro, a defesa da irredutibilidade da vida e a recusa da unificação das ciências naturais por meio do método das ciências da matéria. Ao pensar a filosofia a partir da crítica de problemas científicos que ocupavam sua época, Bergson teve necessariamente de responder ao menos a duas questões. Em primeiro lugar, quais seriam precisamente as raízes biológicas e os hábitos psicossociais sobre os quais o reino dos homens chegara, ao longo da evolução da vida, à riqueza intelectual e cultural da virada do século XIX? Em segundo lugar, se já não resta mais dúvida de que a inteligência não é dada desde o princípio dos tempos, mas transforma-se ao longo da evolução do reino animal, qual será, então, a definição precisa do alcance e dos limites do mais nobre fruto da vida inteligente, as ciências? Embora muito se possa dizer a respeito de cada uma das inúmeras hipóteses evolucionistas dos anos 1900, limitar-nos-emos a ressaltar que um dos episódios mais ruidosos e cativantes dessa discussão (cf. Azouvi, 2007) foi preconizado pela publicação e recepção de A evolução criadora (Bergson, 1959 [1907]).

No terceiro capítulo dessa obra, Bergson defendia com clareza uma ideia ousada à época. Se a inteligência (a consciência da matéria, distinta da consciência do tempo ou intuição) for uma função da adaptação ao meio, será preciso, então, que a inteligência e a matéria tenham sido geradas conjuntamente. Embora o próprio princípio da inteligência seja considerado por Bergson como um impulso simples que perpassa a matéria (impulso vital), essa ideia da gênese conjunta viria a destampar a possibilidade de pensar, a partir e para além do bergsonismo, a história da matéria e a história da inteligência, em sua dimensão fenomênica, como expressões em negativo. A história da matéria não deixaria de ser a história da inteligência da matéria (portanto, da ciência da matéria), a história das máquinas só poderia ser a história da ciência das máquinas etc.

No mesmo período em que Gaston Bachelard apresentava o conceito de “fenomenotécnica” (Bachelard, 1970 [1931-1932]), a ideia da gênese conjunta da matéria e da inteligência volta com força ao cenário da filosofia francesa. A atenção ao problema da técnica é fundamental nesse sentido. Em diversos textos desse período, Canguilhem (2011 [1937], 2011 [1938], 1943) defende que a técnica não poderia ser definida como ciência aplicada, pois constitui um conjunto de problemas não antecipáveis pela ciência. Antes, a técnica coloca problemas de ordem específica à ciência. A criação técnica só adquire inteligibilidade plena se considerada como atividade em que o conjunto previamente ordenado do conhecimento depara-se com situações não anunciadas previamente. Em parte, essa premissa filosófica explica o interesse de Canguilhem pela medicina a partir de 1936, já que, como propunha a introdução da tese de 1943, talvez nenhuma outra “técnica ou arte na encruzilhada entre as diversas ciências” seja tão exigente quanto a medicina. Afinal, no encontro entre o conhecimento prévio do médico e a situação particular e imprevisível posta pelo doente está em jogo o valor da vida, que insta a vida, por meio das técnicas médicas, à procura de novas condições para sua própria manutenção.

É com o maior interesse pela originalidade da criação técnica que Canguilhem retorna a Bergson, cuja obra ele recupera em comunicações e cursos de Liceu entre 1937 e 1938, e, no início de 1940, em uma série de cursos universitários (cf. Canguilhem, 1941-1942, 2007 [1943]) depositados no Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences (Caphés). O fulcro dessa revalorização reside justamente no terceiro capítulo de A evolução criadora. A gênese conjunta da inteligência e da matéria deveria implicar que o ferramental técnico do ser vivo não é coisa alheia ao pensamento, mas pensamento que penetra a matéria organizando a estrutura funcional dos objetos. O bergsonismo é revalorizado, portanto, como “filosofia biológica do maquinismo, que trata as máquinas como órgãos da vida, e que lança as bases de uma organologia geral” (Canguilhem, 1947, p. 332). Não é em outro sentido que, entre 1946 e 1947, Canguilhem constrói os textos da seção “Filosofia” de O conhecimento da vida (2009 [1952]). A técnica prolonga a ação do organismo, de modo que o meio não poderia ser considerado de modo estático, como se independesse da ação instrumentada.

Sabemos, entretanto, que a partir dos anos 1950 Canguilhem procura construir uma história dos conceitos científicos como modo a posteriori de fixar a extensão do conceito de ciência. O interesse pelo bergsonismo e pela “organologia” passava, então, a ceder lugar a certo projeto de história das ciências (cf. Braunstein, 2000). Em verdade, foi Gilbert Simondon, frequentador dos seminários do Institut d’Histoire des Sciences et des Techniques, aluno orientado por Georges Canguilhem (cf. Simondon, 1989), quem continuou e mais radicalizou a ideia de invenção segundo um ponto de vista dinâmico. Lembremo-nos da imagem que Bergson propunha no terceiro capítulo de Matéria e memória (1959 [1896]): a memória afunila-se e transforma-se em ação perceptiva tal como se o passado fosse um cone cuja extremidade produz um ponto no plano do presente. Nessa imagem, a filosofia de Simondon corresponderia à investigação dos modos constitutivos e operatórios segundo os quais os esquemas já construídos de ação reordenam-se, saturam-se potencialmente, mudam de grau atualizando-se em outro nível de concretude. Simondon concentra seus esforços de investigação sobre essa pequeníssima e decisiva extremidade do cone que se aproxima de modo assintótico da concretização das condições previamente acumuladas.

Não há dúvida de que seria preciso considerar ainda diversos outros segmentos epistemológicos catalisados por Simondon, resultantes da recepção de Martin Heidegger em Paris e, sobretudo, da psicologia da forma (Gestalt), com Kurt Goldstein e sua recepção original por Daniel Lagache, Canguilhem e Maurice Merleau-Ponty. Porém, embora não sigamos por aí, não poderíamos deixar de notar que Simondon cruza de modo particular o dinamismo bergsoniano com a ideia canguilhemiana da criatividade da técnica. Ele traz à luz uma dinâmica cujo modo de manifestação privilegiado dá-se na criação técnica, como dimensão da imaginação, ou seja, como imaginação em diversos níveis potenciais. A filosofia simondoniana integra a linhagem daqueles que procuravam mostrar – antes da configuração das fronteiras das ciências do século XX – como a percepção do ser vivo em seu meio não é passiva, mas antecipação da ação por meio de conjuntos sensório-motores previamente estruturados que “cortam” a matéria segundo os limites da ação possível.

Esboçar uma arqueologia desses problemas não deve significar, todavia, um enfraquecimento da originalidade de Gilbert Simondon. Como muito poucos, esse filósofo reuniu o conhecimento deslumbrante da tecnologia do século XX, e dele foi capaz de valer-se inclusive para contrariar a vontade de transcendência que por muito tempo animou os filósofos franceses da ação, de Maine de Biran a Bergson. Devemos apenas ressaltar que, partindo da inteligência material dos objetos técnicos e, portanto, insistindo na anterioridade da relação desses objetos com os seres vivos que os inventam, Simondon não visa apenas a dimensão técnica da vida humana, pois define a vida dentro da dimensão técnica.

Consideremos, por exemplo, a ideia de que a individualização de um objeto técnico implica, por um lado, uma redução e, por outro, uma amplificação do potencial de ação desse objeto. Nos termos em que Simondon a coloca, essa ideia resulta em uma contribuição poderosa a problemas filosóficos historicamente colocados pela segunda lei da termodinâmica. Desde as publicações de Rudolf Clausius em 1850, a ideia de irreversibilidade passaria a implicar a diminuição, ao longo dos ciclos térmicos, do potencial de um sistema que se vale de calor para produzir trabalho. A entropia aumenta, a energia se degrada; na formulação estatística, a entropia é função da desordem do sistema. À força dessa lei, como não pensar em um futuro trágico da vida, inteiramente dependente do consumo energético? O famoso “demônio de Maxwell” consiste em uma tentativa simples de ilustrar como alguns processos, a exemplo da própria vida, podem valer-se de informação para contrariar localmente a tendência à desordem. Entre um sistema com dois compartimentos de energia diferente, esse ser fictício superconsciente deteria informação e capacidade suficientes para fechar a portinhola a todas as partículas com energia negativa e, ao mesmo tempo, abri-la a todas as partículas positivas, de modo que, depois de certo tempo, todas as partículas positivas poderiam encontrar-se em apenas um compartimento. Tanto para máquinas quanto para os seres vivos, seria possível conceber, portanto, processos locais contrários à entropia (neguentrópicos) operados com base em uma informação.

É sobre a base desse esquema estatístico que a cibernética é pensada por Norbert Wiener, com quem Simondon teve interlocução aberta. Os mecanismos de circulação da informação, dentro de um indivíduo ou também dentro de um coletivo, constituiriam sistemas neguentrópicos de equilíbrio (homeostático). Em contrapartida, a desordem desses sistemas passaria pela perda de equilíbrio como concentração excessiva da comunicação de informação (do ponto de vista social, como alienação). Ocorre que Wiener (1962) parte da premissa de que há uma identidade entre os seres vivos e as máquinas automáticas, o que, em última análise, confunde o fato de que “os objetos técnicos tendem à concretização, ao passo que os objetos naturais tais como os seres vivos são concretos desde o início” (Simondon apud Barthélémy, 2014, p. 86). Assim, ao passo que Wiener pensa em situações de equilíbrio dinâmico comunitário (ou local) por meio de objetos já concretizados, Simondon procura pensar os modos de circulação “aberta” dos objetos por meio de uma gênese dinâmica. O curso Imagination et invention só deve reafirmá-lo. Enquanto Wiener toma dois termos estáticos para reconstruir um processo dinâmico, Simondon não parte nem do homo sapiens tecnológico nem dos objetos técnicos e das ciências já constituídos.

Aqui se verifica, portanto, o traço mais claro da afinidade de Simondon com a história de problemas acima mencionada. A filosofia do trans-individual parte da relação pré-individual que configura – em uma determinada condição técnica e não em qualquer outra – esquemas psicomotores mediante os quais um objeto técnico foi inventado e que reconfiguram os esquemas psicomotores mediante os quais esse objeto, uma vez individuado, vai ressoar externamente. Para compreendermos essa “dialética amplificadora” de Simondon, bastaria lembrarmo-nos de que os objetos técnicos não respondem unicamente às funções para as quais eles foram inicialmente inventados. Ainda, além de que o problema da informação é concebido por Wiener mediante analogias entre diversas ciências constituídas, ele o é também sobre o fundo de uma teleologia norteada pela ideia de equilíbrio homeostático (cf. Le Roux, 2007). Wiener assenta sua teoria cibernética diretamente sobre a base de valores em circulação na idade do Homem, ao passo que o dinamismo de Simondon coloca-se no interior da dimensão técnica da vida em geral, sem necessariamente recorrer a um anti-humanismo.

Não há dúvida de que o deslocamento operado por Simondon possa representar uma imprevisibilidade e, portanto, o enfraquecimento da ideia de equilíbrio e de destino da humanidade. Ao mesmo tempo, porém, abre-se a possibilidade de fazer com que o desenvolvimento técnico inegável dos últimos séculos seja acompanhado por uma consciência histórica da essência da técnica como consciência da dimensão técnico evolutiva da vida. Trata-se de opor-se ao fatalismo da alienação em um mundo exponencialmente tecnocientífico (cf. Laterce, 2009; Bardin, 2015). Assim, a consciência da dimensão técnica da vida pode, como em um processo de dialética amplificadora, constituir a intervenção sobre o curso dos objetos e sistemas que facilitam e controlam a vida.

Referências

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Marcos Camolezi – Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.  Universidade de São Paulo, Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: marcos.camolezi@usp.br

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