A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego | Márcio Ananias Ferreira Vilela

Fruto da pesquisa para alcançar o grau de mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, orientado pelo professor Dr. Antônio Torres Montenegro, Márcio Vilela nos apresenta um interessante trabalho, em escrita leve, sem o pedantismo que quase caracteriza as produções acadêmicas, a respeito de um dos últimos coronéis que atuaram e marcaram, durante bastante tempo, a vida social e política do Brasil e, com maior longevidade no Nordeste. O livro nos entregue dividido em seis partes, sendo as duas últimas dedicadas à bibliografia e aos anexos. A primeira parte, formada por dois capítulos encarregados de nos atualizar sobre as bases teóricas utilizadas na análise dos documentos e depoimentos recolhidos, mas, principalmente para nos oferecer uma recensão crítica dos estudos clássicos sobre o coronelismo no Brasil como os de Victor Nunes Leal [1] , Raymundo Faoro [2] , Maria Isaura de Queiroz [3] , mas detendo-se com maior cuidado nos casos de Pernambuco, Sergipe e Ceará, estudos por Marcos Venicios Vilaça/ Roberto Cavalcanti [4] , Iberê Dantas [5] , Maria Auxiliadora Lamenhe [6] , além de um estudo mais acurado sobre o Mandonismo, seguindo as trilhas abertas por José Murilo Carvalho.[7]

A segunda parte, composta de cinco capítulos dedica-se a desvelar o Mecanismo de construção de um líder político. Mas, quando lemos o escrito, vemos que nosso autor nos leva também ao processo de manutenção dessa liderança, que veio a esbarrar no processo modernizador da modernidade da qual ela é parte.

Francisco Heráclito do Rego, referendado popularmente como Chico Heráclito, foi uma força política que se firmou após os anos de 1930 na região Agreste de Pernambuco, na senda do Partido Social Democrático, fundado após a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas e, em Pernambuco, capitaneada pelo sertanejo Agamenon Magalhães. Analfabeto, Francisco Heráclito soube usar as nuances da literatura, manejando a mão de Antônio Vilaça, pai de Marcos Venicios Vilaça [8], para comunicar-se com os alfabetizados e os analfabetos que viviam nas cidades e povoados que cresceram sob a sua proteção e cuidado.

Cinco capítulos formam a segunda parte deste estudo e eles estão voltados para nos auxiliar a entender como se forjou e se construiu uma liderança política, ora apelando para o encontro direto e pessoal com os agentes social, ora usando indisfarçadamente a produção literária, nos jornais, em boletins, em cordéis lidos e proclamados nas feiras livres da região e nas praças do Recife, onde também tinha eleitores que voltavam a cada eleição para sufragar aqueles indicados pelo Senhor das Varjadas. Márcio Vilela nos apresenta aspectos interessantes como a utilização do patriarca, João Heráclito do Rego, morto em 1934, que evitou uma participação politica ostensiva, cabendo essa atividade ao seu filho, que teria sido ungido, ainda no seio materno, (p 109ss) para liderar a família e a região. Aqui uma observação. Márcio Vilela, que nos recorda que a escolha do nome, Francisco, homenagem ao Santo de Assis, celebrado um dia antes do nascimento, a cinco de outubro – que há uma indicação de que ele nasceu para servir aos pobres.

Mas ainda há outro estranhamento, de que nos dias seguintes ao nascimento de Francisco Heráclito, seu pai já está a postos, no roçado e não obedecendo ao ritual de dedicar os dias seguintes ao nascimento do herdeiro em comemorações, o que, na região denomina-se „cachimbo‟. …quebrava uma tradição muito comum e de algumas regiões do Brasil serem os primeiros cinco dias após o nascimento de uma criança reservado às comemorações do ao acontecido. Na nota 32, nosso autor lembra que o cachimbo é uma bebida composta de cachaça, água e mel. Lembra ainda que esta bebida é apreciada após o nascimento. Aqui, creio que uma visita à tradição europeia que enaltece São Francisco de Assis e o esforço para colocar esse coronel na sua tradição, uma tradição de civilização, educação e própria da formação tradicional e culturalmente dominante, há outra preocupação: a de afastar o nascituro, futuro líder político da organização e modernização da cidade do Limoeiro das tradições indígenas.

Sabemos da prática da couvade entre nossos antepassados indígenas e, nela o repouso pós-parto era próprio para o pai da criança que, dessa forma, anunciava socialmente a paternidade social da criança. A bebida com mel é ofertada, ainda hoje nos cultos da Jurema Sagrada, religião de cunho e raízes profundamente brasileiras, mas que à época era praticada por poucos, e nas matas, distante dos olhares dos civilizados. Esses acontecimentos – o pai trabalhando no dia seguinte ao nascimento do filho e não utilização do cachimbo, é o esforço de afastar aquela família dos “caboclos do mato”, dos índios que naquele período eram conceituados bem negativamente. Assim São muitos os cuidados no processo de criação de um mito ou liderança.

A terceira parte do livro nos remete às práticas deste e de outros coronéis que atuaram no período da chamada Democracia Liberal, entre os anos de 1945 e 1964. São cinco capítulos, dois deles dedicados a analisar a situação econômica, social e política de Limoeiro e o lugar que o líder ocupa naquele momento da vida local e nacional e dois capítulos dedicados a compreender como agia este líder para manter seu prestígio e respeito social, as suas práticas diárias, o seu comportamento no período eleitoral e sua reação àqueles que não seguiram as suas ordenações e ordenamentos. E essa era uma situação nova, a prática democrática começava a por em dívida o poder de mando. É um período de ruptura com outros agentes da cúpula do PSD, e por isso é o início de um novo tempo, que não está na preocupação de Márcio Vilela, mas que ele tangencia, sem chamar a atenção necessária, que o processo de formação de novos coronéis, novos senhores dos votos que assimilam algumas práticas e introduzirão novas.

Nas eleições de 1954, pensando em sentar-se na cadeira presidencial, Etelvino Lins faz emergir a candidatura do General Cordeiro de Farias, em uma aliança que envolve o PSD, o PL, PRT, PSP e dissidentes udenistas. Dizia Etelvino que era uma chapa para unir Pernambuco, como lembrado por Cordeiro de Farias, em depoimento ao CPDOC, e provocou a divisão do PSD que apoio Neto Campelo, com outros partidos, entre eles o PST. Neste partido estava Miguel Arraes de Alencar que, mais tarde veio a ser eleito governador de Pernambuco apoiado por essa dissidência do PSD, uma aliança com os coronéis. Embora não fosse esse o objetivo da dissertação de Marcio Vilela, teria sido interessante uma nota de pé de página no sentido de apontar como as relações políticas e pessoais orientam os caminhos dos homens na história.

Notas

1. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Riod e Janeiro Nova Fronteira, 1997.

2. FAORO, Raymundo. Os donos do Poder. São Paulo: Globo, 2001.

3. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

4. VILAÇA, Marcos Venicios; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de.

5. DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, PROEX/CECAC/ PROGRAMA EDITORAL,1987.

6. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família Tradição e Poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo, ANNALUBE/Edições, 1995. Coronel, coronéis: apogeu e declínio dos coronéis no Nordeste. Riod e Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

7. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

8. O poeta é hoje membro da Academia Brasileira de Letras.

Severino Vicente da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor associado do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: severino.vicente@gmail.com


VILELA, Márcio Ananias Ferreira. A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2014. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. Um Coronel em revista. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.1, p.302-305, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

Um historiador fala de teoria e metodologia, ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.

Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.

Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.

Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.

A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.

A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.

A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.

A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.

Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.


CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]