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A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico – NIXEY (AN)
NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desassossego, 2018. Resenha de: SILVA, Paulo Duarte. Ecos de Gibbon: a s trevas cristãs revisitadas? Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020.
“A encantadora estátua de Atena [em Atenas, aproximadamente entre 529 e 532 e.C.], a deusa da sabedoria […] [n]ão foi só decapitada, como […] usada como degrau. […]. O ‘triunfo’ do Cristianismo estava completo” (NIXEY, 2018, p. 279). Assim Catherine Nixey encerra A chegada das trevas (The Darkening Age, Pan Macmillian, 2017).
Composta por 329 páginas, uma introdução e 16 capítulos, 1 mapa, 33 ilustrações referenciadas, 25 páginas de bibliografia e 6 de índice onomástico, a versão portuguesa possui poucos contratempos.1 Uma breve busca online mostra que o texto alcançou grande repercussão. Em linguagem acessível e amparada em novas — e tradicionais — referências, a jornalista recorre à sua formação em Estudos Clássicos em Cambridge e à sua experiência docente pregressa para discutir o papel do Cristianismo na “derrocada” do mundo clássico.
Segundo Nixey, tal ruína iniciou-se com a ascensão de Constantino, que teria inaugurado o “século I do domínio cristão” (p. 197, 201), desvirtuando um mundo em que religião e política não se misturavam (p. 243), já que eram civilizadamente regidos pelas leis (p. 255). Assim, embora reconheça a relevância de questões climáticas e demográficas (p. 157), das invasões “bárbaras” (p. 30-31, 264) e de suposta decadência moral romana (p. 37), a autora responsabiliza o Cristianismo.2
Ao considerar que muitos usa(ra)m “o monoteísmo e suas armas para fins terríveis” (p. 34, 129), a autora relaciona a temática ao debate público contemporâneo, pela alusão expressa à Palmira (p. 17-18, 29): sem citar a obra de Veyne (2015) dedicada à cidade síria, denuncia seu drama, arruinada pelos cristãos e, hoje, pelos muçulmanos.
Nixey argumenta que, após intensa contenda intelectual e a destruição de espaços e monumentos considerados “pagãos”, a pregação cristã voltou-se à moralização dos costumes sociais e sexuais (p. 28-29, 189-252).3 É difícil não tomar tal juízo como advertência às recentes discussões sobre televangelismo, movimentos antivacina e terraplanistas, “ideologia de gênero” e afins: provavelmente esta é a principal contribuição da obra e, a um só tempo, seu grande risco.
Deste modo, o primeiro eixo da obra remete ao embate entre os escritos de “pagãos” e cristãos, com o amplo escopo de interesses e a complexidade investigativa dos primeiros contrastados à relativa simplicidade dos últimos: por exemplo, ao apresentar os tratados de medicina de Galeno (p. 61-65), para quem “[e]ra preciso provar […]. Fazer outra coisa era, para Galeno, o método de um idiota. Era o método de um cristão” (p. 64).4
Além das contribuições “científicas”, outro âmbito elogiado é o da poesia e do teatro, pelas obras de Calímaco e de tragediógrafos como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (p. 160-172). A estes se somam textos satíricos e/ou sexuais, como os de Ovídio, Marcial e, sobretudo, Catulo (p. 171-179).5 No plano religioso, a autora exalta a interpretação cética de Celso em relação aos dogmas cristãos (p. 64-73), e o relativismo politeísta de Luciano, Plínio o Velho, Plutarco, dentre outros (p. 70-81, 110-111, 121, 173-181, 305).
São aclamados ainda pensadores como Cícero, Sêneca, Plínio o Novo (p. 99-113), Libânio (p. 141-152, 189-228, 254-255), Damáscio (p. 23-26, 259-272) e Símaco, líder da chamada “reação pagã” de fins do século IV (153-154). Em termos científicos, literários e religiosos, seus nomes e obras são reunidos sob o epítome da “cultura clássica” e os cuidados do imperador-filósofo Marco Aurélio (m. 180) (p. 61).
À intelligentsia antiga opuseram-se os “grandes gigantes da Igreja” (p. 47). Neste grupo, figuram Tertuliano (p. 91-105, 174-183, 219-228), Orígenes (65-69), Cipriano, Jerônimo (227-241), Martinho de Tours (p. 143-151), Shenoute (p. 243-256) e Agostinho; além de Atanásio (p. 37-49), Teófilo (p. 141-144, 164) e Cirilo (p. 154-167), bispos de Alexandria (p. 157-167), e Crisóstomo, importante pregador cristão (p. 189-252).
Na disputa com os “pagãos”, estes contariam não somente com o apoio de imperadores,6 mas de hostes violentas e temerárias: além de monges que, segundo detratores, eram “vulgares, malcheirosos, mal-educados, violentos” e “falsos” (p. 141, 231-239), as fileiras eram compostas por maqueiros, coveiros, parabolanos alexandrinos (p. 167), além dos circunceliões africanos (p. 252-256).
Subentende-se que o Cristianismo só teria superado o “gênio” cultural clássico pelos favores imperiais e, sobretudo, por meio da violência. Como “todo um modo de vida […] desaparecia” (p. 201), Nixey enfatiza a destruição promovida pelos cristãos, dividindo-a em três ramos: das estátuas, dos monumentos e espaços urbanos e do citado patrimônio literário.
Quanto às estátuas, a autora destaca, dentre outras (p. 127-130, 138-139), as dedicadas à Atena em Palmira (p. 17-18, 280) e Atenas (p. 273), e a ateniense dedicada à Afrodite (p. 137), que ilustra a capa da versão portuguesa. Considera ainda tanto a reutilização dos materiais quanto associa suas castrações ao recrudescimento da pregação cristã (p. 143-153, 252). Centrando-se em Atenas (p. 27, 117, 267-273), e, principalmente, Alexandria, Nixey denuncia a devastação promovida pelos cristãos. Assim, lamenta a destruição da “maior biblioteca do mundo antigo” (p. 27, 157-167), bem como do Farol, do Serapeu e do Museu (p. 117-122). As referências dispersas pelo texto dão a entender que, em âmbito local, outros espaços sociais relevantes foram sendo destruídos ou abandonados, como os teatros, jogos, circos e banhos (p. 221-228).7
Daí resultaria a perda colossal de textos (p. 28, 30-31, 71), “combinação de ignorância, medo e idiotice” (p. 198) e, no campo artístico, correlata à “maior destruição […] que a história humana alguma vez assistiu” (p. 33, 71, nota 97). Tal estrago associou-se a dois processos: por um lado, e não sem problemas, as letras clássicas seriam adequadas ao filtro cristão, que lhes concedia pouca ou nenhuma brecha (p. 171-186); por outro, a censura e a queima de livros cresceriam, com a referida moralização dos costumes testemunhada nos sermões cristãos (p. 189-228).
A nosso ver, Nixey tem dois méritos: criticar contundentemente a interpretação histórica demasiado otimista sobre o “triunfo cristão” (p. 18, 25-26, 33, 273), ao recorrer parcialmente às recentes discussões historiográficas. Assim, ainda que concorde com a premissa dos pesquisadores tardo-antiquistas, pela qual a expansão cristã deva ser considerada um fenômeno histórico relevante e multifacetado, a autora critica o viés positivo que algumas interpretações assumiram (p. 130-134, 148-149), como a de Brown (1997, p. 212-213 apud NIXEY, 2018, p. 149, nota 322), que minimizaria a destruição de templos, ou mesmo a alegação de que o Cristianismo seria “protetor da tradição clássica” (p. 171).8 Para tal, recorre aos recentes argumentos de Drake (p. 129, nota 260) e Garnsey (p. 150, nota 327), e do próprio Brown (p. 158, nota 346) a respeito da “tolerância cristã”, além de Shaw e Gaddis sobre a “violência sagrada” cristã (p. 243-256).9
Contudo, em que pese reconhecer seus méritos, a leitura do texto promove diversos incômodos. Formalmente, a falta de um plano de capítulos e o fato de que os títulos de cada sessão nem sempre são esclarecedores criam uma sensação de repetição. Porém, mais embaraçoso é perceber que, mesmo ao incorporar importantes contribuições historiográficas, um juízo gibboniano permeia o texto, pelas citações diretas ao historiador britânico (p. 65-66, 95, 121, 132, 192, 201, 264) e pelo tom pejorativo com que interpreta, ironicamente, o “triunfo cristão”.
A responsabilização do Cristianismo conduz a um indisfarçado senso de superioridade estética e cultural dos antigos frente aos seus rivais. Comparados a crianças (p. 126), os cristãos teriam erguido, sobre as ruínas dos templos antigos, edifícios de pior qualidade (p. 117-121, 261), e possivelmente só equiparariam o volume documental da biblioteca alexandrina em meados do século XIV (p. 161).
No texto, a ênfase da autora em um contraste caricato entre a ignorância destrutiva dos cristãos e a liberdade “iluminista” antiga é ressalvada de modo muito pontual (p. 31, 117, 137-138, 173-174, 225, 272). Pior: esbarra em frases categóricas como “quer o politeísmo greco-romano fosse verdadeiramente ‘tolerante’ ou não, não restam dúvidas de que os velhos hábitos eram, na sua base, liberais e generosos” (p. 153), ou, ao comentar sobre Plínio o Novo, indicar que este era “o romano perfeito: demasiado educado para se dedicar a uma fervorosa crença nos deuses” (p. 104).
Nixey subestimou a capacidade intelectual dos cristãos no embate com os “pagãos”, mas não apenas. Em um dos raros comentários sobre as contendas intelectuais entre cristãos, afirma que
[o]s heréticos eram intelectuais, portanto os intelectuais eram, se não heréticos, sem dúvida suspeitos. Assim era o silogismo. A simplicidade intelectual ou, para usar um nome menos elogioso, a ignorância, era largamente celebrada […]. A ignorância era poder. (p. 180).Talvez por isso, também tropece em questões metodológicas e conceituais. Quanto aos documentos, frisa-se o relativo cuidado em relação às fontes selecionadas (p. 31-33, 50, 55, 65, 86, 130-134, 139-143, 238): este, contudo, se ofusca por uma reflexão tardia sobre contingências materiais que então envolviam a produção textual (p. 196, cf. p. 64, 68, 80, 171-186) e pela discrepância com 4 de 5 que examina, minuciosamente, a variada documentação cristã10 em busca da “lente distorcida” (p. 107) e de sua “visão deturpada” (p. 185), e que não encontra equivalência no caso dos “pagãos” (cf. p. 85-90, 99-113).
Quanto aos conceitos, ainda que atente sobre o uso de termos como “nação”, “religião” e “pagão” (p. 33, 133-134), o mesmo não ocorre com outros termos decisivos, como “cristão” e correlatos, como “bíblia” (p. 57, 129, 197), “heresia” (p. 70), “herético” (p. 80, cf. p. 134, 180) e mesmo “judeus” (p. 164-165), indispensáveis em qualquer estudo sobre o assunto. Em verdade, à exceção da menção a bispos e à “elite cristã” (p. 203), não se oferece uma reflexão sobre igreja(s) e Cristianismo(s).
Nota-se que, embora recuse parte do otimismo de diversos estudos tardo-antiquistas, Nixey desconsiderou aspectos que, em conjunto, resultam em uma obra que não atenta devidamente às nuances que envolvem o estudo das relações entre cristãos e “pagãos”. É significativa a ausência de menções aos trabalhos seminais de Jaeger (2014, original de 1961) e Cameron (1991), que mostraram que as fronteiras entre os discursos de cristãos e pagãos eram muito mais porosas do que se supunha.
Assim, embora saudemos a iniciativa em trazer à tona assuntos delicados, com os quais a historiografia vem demonstrando certo embaraço e dificuldade no debate público, frisamos que a dispensa de importantes ressalvas pode apenas reforçar o clichê gibboniano sobre as “trevas” cristãs: corre-se o risco de os muitos lados se entrincheirarem ainda mais. Resta saber como o público lusófono vai tomá-la.11
Referências
CAMERON, Averil. Christianity and the Rhetoric of Empire: the development of Christian discourse. Berkeley: University of California, 1991.
JAEGGER, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega. Santo André: Academia Cristã, 2014.
NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desassossego, 2018.
VEYNE, Paul. Palmyre: l’irremplaçable trésor. Paris: Albin Michel, 2015.
Notas
1 Para além de erros de datação (p. 117), ortográficos (p. 185, 221, 234, nota 584), de concordância (p. 246, 254) e de tradução (p. 47, 72, 149), frisa-se a ausência dos títulos dos capítulos no sumário (p. 9).
2 Não à toa, ao defender que o citado “triunfo cristão” teria precipitado gradualmente a “Idade das Trevas” (p. 264), recorre a conhecidos episódios em que os cristãos teriam sobrepujado a “filosofia”, como no assassinato de Hipácia em 415 (p. 158-167) e na destruição da Academia ateniense (p. 30-32, 259-273). Ademais, ressaltam outros em que o “paganismo” teria sido suplantado, caso dos monumentos alexandrinos em fins do século IV, e da promulgação do Código de Justiniano, em 529 (p. 262-264).
3 Reconhecendo, timidamente, que tais reclames estivessem de acordo com ditames prévios de parte da aristocracia (p. 215-216).
4 Da mesma forma, é saudada a teoria atomista de Demócrito, além de físicos, matemáticos e astrônomos como Arquimedes, Erastóstenes, Aristarco, Hiparco (p. 161-162, 272) e a citada Hipácia.
5 No caso deste, Nixey ressalta que o pudor editorial para com seus textos não se limitou aos oitocentos, chegando mesmo até traduções de fins do século passado (p. 176-177).5 de 5
6 Mesmo ambíguo e vacilante, Constantino teria aberto caminho ao “rugido do mundo” cristão (p. 55-57). Justiniano, por sua vez, é mencionado quando se aborda o ímpeto moralizador cristão (p. 211, 252-271).
7 Em compasso à superação das festas antigas (p. 228, 238, 261-262).
8 Além de expor o pudor com que se pode tratar, ainda hoje, a sexualidade em Catulo (p. 171-179) e Ovídio (p. 196), ou mesmo exibida em Pompeia (p. 205-212).
9 Outros temas relevantes remetem à destruição de estátuas por Kristensen (p. 138, nota 279) e à censura de livros por Chadwick e MacMullen (p. 186, nota 438) e Rohmann (p. 198-228).
10 Hagiografias (p. 143-147), epístolas (p. 152-153), histórias (p. 185-186) e, sobretudo, os relatos martiriais (p. 90-98) e de perseguição (p. 99-113), dentre outros.
11 Em 2018, Nixey concedeu uma entrevista ao semanário Expresso, de maior alcance em Portugal no mesmo ano. Disponível em: https://leitor.expresso.pt/diario/29-05-2018/html/caderno-1/cultura/catherine-nixey–o-meu-livro-mostra-como-os-cristaos-destruiram-estatuas-e-templos-e-queimaram-livros-1. Acesso em: 7 jul. 2019. Ao passo que historiadores como Cameron (2017) e Drake (2019) já produziram resenhas de amplo alcance em língua inglesa, a recepção do público lusófono continua ainda particularmente atrelada à blogosfera cristã, vide: https://logosapologetica.com/ critica-do-livro-a-chegada-das-trevas-de-catherine-nixey. Acesso em: 7 jul. 2019.
Paulo Duarte Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em História Comparada da mesma instituição (PPGHC-UFRJ). E-mail: pauloduartexxi@hotmail.com.
Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo | Leila Rodrigues da Silva
Fruto da tese de doutoramento defendida em 1996 pela autora, a obra Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga reflete sobre o modelo de monarca presente nos escritos de Martinho, bispo de Braga, destinados ao monarca suevo Miro. Produzidos na esteira do processo de aproximação entre os bispos da Galiza de vertente católico-nicena e a monarquia sueva, tais escritos expressariam não somente a conjunção entre os entes político e eclesiástico como, em especial, destacariam o cunho moral e normativo da missiva eclesiástica dirigida à liderança germânica.
Ainda que evidentemente enriquecida pelas pesquisas desenvolvidas, desde então, junto ao Programa de Estudos Medievais (PEM-PPGHC/UFRJ), a publicação mantém estrutura similar à de sua tese de doutorado defendida em 1996, de caráter sistemático e enunciativo. Leia Mais