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Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação – CARNIELLI (M)
CARNIELLI, Walter A.; EPSTEIN, Richard L. Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação. [?]: Editora Rideel, 2009, 384p. Resenha de: SILVA, Jairo José da. Critica do pensamento crítico. Manuscrito, Campinas, v.35 n.2 July/Dec. 2012.
“Razão” é um termo onipresente na filosofia, e de longa data; ambíguo também, e polissêmico. Sua acepção mais comum é a faculdade que se supõe tipicamente humana de argumentar; ou seja, sacar conclusões de pressupostos ou conclusões previamente obtidas, tudo devidamente expresso linguisticamente. Mas há argumentos e argumentos, há os bons e há os maus. Os bons são aqueles que a partir de pressupostos verdadeiros nos dão conclusões necessariamente verdadeiras ou, pelo menos, provavelmente verdadeiras. Aqueles são os argumentos dedutivos; estes, os indutivos. São maus os argumentos a veracidade de cujas conclusões não está garantida, nem com necessidade nem com probabilidade. Argumentos dedutivos são aqueles em que a transmissão da verdade (dos pressupostos às conclusões) está garantida; por exemplo, a inferência do particular a partir do geral; os indutivos, onde só está garantida a transmissão da falsidade (ou retro-transmissão da verdade, da conclusão aos pressupostos); por exemplo, a conclusão do geral a partir do particular.
Cânones de argumentação dedutiva podem ser precisamente codificados em sistemas; deduções são irrefutáveis se as regras do sistema forem cuidadosamente obedecidas; já a indutiva não admite regras precisas, ficando um pouco a mercê de um vago “bom senso”. Por exemplo, se pressuponho que todos os homens são mortais, então a mortalidade de qualquer homem em particular está logicamente garantida (regra de especificação: o particular é conseqüência necessária do universal). Considere agora as inferências: (1) todas as evidências científicas obtidas até o momento sugerem que fumar é prejudicial á saúde; logo, fumar é prejudicial á saúde; (2) minha avó fumou até os 90 anos e morreu asfixiada por um pedaço de maça; logo, fumar não é prejudicial à saúde (mas maças sim!). Qualquer pessoa racional aceitaria (1) e refutaria (2), ainda que ambas as inferências sejam generalizações a partir de casos, só que (1) tem uma base indutiva bem mais cogente. O importante é que qualquer conclusão cuja veracidade não está garantida está do ponto de vista racional constantemente sob suspeita. E a pessoa racional, que é apenas outro nome para o amante da verdade, se compromete a aceitá-la apenas enquanto não for desmentida por evidências em contrário. Mais, ela também se compromete a submeter constantemente a conclusão sub judice ao teste da evidência em contrário, o que separa nitidamente a pessoa racional da pessoa de fé ou do ideólogo, que preferem, estes, ignorar as evidências que falseiam suas crenças, ou então interpretar essas evidências em contrário de modo a torná-las inócuas, ou, o que é pior, reforçar suas crenças (são esses compromissos que, segundo Popper, separam o cientista do pseudocientista).
O livro Pensamento Crítico: o poder da lógica e da argumentação (São Paulo: Ed. Rideel, 2009), dos Profs. Walter Carnielli e Richard Epstein, quer nos ensinar a bem raciocinar, aderindo aos bons argumentos e evitando os maus (desde que, claro, sejamos amantes da verdade; se não, o livro também é útil, ensinando-nos modos já bem testados de sofismar. Ou seja, seja você cientista ou advogado, o livro tem algo a lhe ensinar. Mas, ao que me parece, os autores nos preferem racionais).
Bem argumentar, em especial dedutivamente, como já disse, envolve regras. O que garante a validade dessas regras? O uso, a tradição? Se assim fosse teríamos a estranha situação em que regras de raciocínio dedutivo seriam validadas indutivamente. Mas se não assim, como? Os autores não dedicam nenhuma atenção a esse problema filosoficamente muito sério, por isso vale a pena nos debruçarmos um instante sobre ele.
Considere o silogismo clássico: (P) Todo homem é mortal; (p) Sócrates é homem; logo, (C) Sócrates é mortal. P e p são, respectivamente, a premissa maior e a menor, e C a conclusão. Para convencer a si próprio ou a outrem da validade da inferência de C a partir de P e p alguém poderia raciocinar assim: suponhamos que C seja falsa, ou seja, que Sócrates não seja mortal; ora, então, ou Sócrates não é humano (supondo que todo homem é mortal) ou nem todo homem é mortal (supondo que Sócrates seja humano). Das duas, uma, ou P é falsa ou p o é. Logo, se P e p são verdadeiras, C necessariamente também o é.
Quem raciocina assim justifica o mais simples pelo mais complicado, já que a justificativa envolve, além de contrafatuais, isto é, situações contrárias àquelas que efetivamente se deram (quando consideramos, por exemplo, a situação em que Sócrates não teria sido humano), silogismos ainda mais elaborados que o original. Porém, como Aristóteles observou (inventado assim a Lógica Formal), a validade de uma inferência não tem nada a ver com o que houve ou poderia ter havido, mas apenas com o significado de certos termos como “todo” e “algum” e a forma das asserções, por oposição a seus conteúdos (o como se diz, não o quê se diz). A forma do silogismo é esta: (P) todo H é M; (p) S é H; logo, (C) S é M, onde “H” e “M” denotam propriedades quaisquer de certa classe de indivíduos e “S” um indivíduo qualquer dessa classe. Podemos interpretar P extensionalmente, como afirmando que a extensão de M, isto é a classe dos indivíduos com a propriedade M, contém a extensão de H; ou intensionalmente, que a propriedade M “está contida” na propriedade H (ou seja, quem diz H diz, a fortiori, M). Em qualquer caso, segue que se o indivíduo S tem a propriedade H, então também tem a M.
Mas, novamente, a justificativa da inferência depende da aceitação de inferências envolvendo classes: de H ⊆ M e S ∈ H segue que S ∈ M (que depende essencialmente, dada a definição de ⊆, da validade das regras de especificação e modus ponens: de se A, então B e A, conclua B) ou entidades intensionais: se o sentido de H “contém” o de M, então se S tem a propriedade H, S tem também a propriedade M. Parece então que a validade de algumas inferências depende da validade de outras, o que nos leva ou a uma regressão infinita ou a inferências injustificáveis que são tomadas como fundamentais simplesmente porque nenhum indivíduo racional duvidaria delas.
Em suma, a noção de razão como a capacidade de raciocinar por inferências válidas requer um cânone da razão, ou seja, um conjunto de regras básicas de inferência cuja aceitação define o indivíduo racional (no caso de inferências indutivas o cânone é mais fluido). No caso dedutivo, esse cânone consiste em definições em uso (ou implícita) de certos termos (ditos lógicos). Por exemplo, podemos tomar o silogismo acima em sua forma: (P) todo H é M; (p) S é H; logo, (C) S é M como parte da definição implícita do conceito de “todo”: dizer que todo H é M é dizer a mesma coisa que se S é H, então S também é M, não importa que S seja esse. Se alguém me pede para justificar isso basta dizer “pense no que você quer dizer por todo“. A cadeia de explicações, como diria Wittgenstein, termina sempre num “é assim que se faz”. Ou seja, o cânone da razão, para continuar com Wittgenstein, é parte de uma “forma de vida”.
Agora, uma pergunta inconveniente: há apenas um cânone da razão, válido em qualquer contexto, qualquer época, para qualquer pessoa? Ou haveria outras “formas de vida” com outros cânones, outros modos de ser-se racional? Seriam diferentes cânones como diferentes ordenamentos jurídicos, em que a noção de verdade e os modos de obtê-la variariam como naqueles a noção de crime e os modos de puni-los? Com essas perguntas, aparentemente tão inócuas, começa o assalto à fortaleza da razão. Por muito tempo parece não ter havido dúvidas, ou pelo menos dúvidas sérias, sobre a unicidade e universalidade de um cânone que por falta de melhor termo chamarei de “clássico”, propriedade de todo homem racional. Hoje, parece, isso não é mais o caso. Até o que significa fazer uma asserção tornou-se matéria de debate. “Classicamente”, asserir é comprometer-se com a realidade da situação que a asserção representa linguisticamente. Mas há os que pensam diversamente, para os chamados “intuicionistas” afirmar é comprometer-se com a efetiva possibilidade de verificação do que é afirmado. Se o “classicista” diz “17 é um número primo” ele acredita enunciar um fato; o “intuicionista” também, só que outro fato, que há meios para se verificar que 17 é um número primo. Essa divergência implica que nem toda regra de inferência válida para o primeiro o é também para o segundo. Por exemplo, o “classicista” aceita que, independentemente de qualquer verificação, se um determinado número não é composto, então ele é primo (já que qualquer número ou é primo ou não é primo, ou seja, é composto); já o “intuicionista” acredita que só se pode afirmar isso se estamos de posse de um método para verificar, dado um número qualquer, se ele é primo ou não. Aqui não há problema, pois esse método existe, mas não é difícil imaginar situações de divergências. Em suma, “classicistas” e “intuicionistas” não compartilham o mesmo cânone da razão (porém, quando apenas asserções sobre o mundo empírico estão em causa, não há conflito entre eles).
As coisas se complicam ainda mais quando o que se põe em dúvida é a validade universal de um cânone racional, qualquer que seja ele, independentemente do contexto – aquilo sobre o qual se julga – e do lugar e momento, ou seja, da história e da cultura de quem julga. Quando se acreditava que a razão era um presente de Deus aos homens era mais fácil acreditar na sua unicidade. Não havia dúvidas então que o homem era um animal racional e os mecanismos da razão, únicos. Quando perdemos o direito a essa centelha de divindade e fomos deixados à mercê de forças naturais e culturais, ficou mais fácil duvidar que todos os homens sejam racionais do mesmo modo, ainda que, se supõe, todos sejam racionais de algum modo.
O problema com o relativismo histórico ou cultural da razão é que, do ponto de vista de um cânone, os outros são necessariamente perversões da razão. Contrariamente ao “classicista”, que mais ou menos entende como o “intuicionista” raciocina, já que ele pode traduzir o cânone dele no seu (a recíproca não sendo o caso; para o intuicionista os argumentos estritamente clássicos não são a rigor falácias, mas incompreensíveis), as barreiras culturais e históricas são em geral intransponíveis. Mas a relativização dos cânones racionais vai mais além. Uma novidade que nenhum pensador mais equilibrado teria concebido é a crítica “pós-modernista” da própria noção de verdade. Começou com Nietzsche, que levantou a questão do valor da verdade, e terminou em relativismos de todo tipo. A verdade, versão “pós-modernista”, já não se distingue da mera opinião; tornou-se um ponto de vista, um instrumento de poder, um esquema de ação, uma interpretação. Se um feiticeiro tribal afirma que a epilepsia (que ele considera uma possessão demoníaca) é curável por meio de encantamentos, quem ousaria dizer, hoje, que a afirmação é pura e simplesmente falsa sem temer ser classificado de “colonialista”? Para o mantra “pós-modernista” a afirmação do feiticeiro é tão boa quanto a mais sofisticada teoria psiquiátrica (se não melhor! “Afinal”, diz o relativista, com a convicção dos justos, sujeitando a lógica à ética, “pelo menos encantamentos não envenenam o corpo e a mente como o arsenal químico da psiquiatria”). Enfim, se nem a verdade é mais a mesma, porque haveria de haver um cânone universal para obtê-la?
Curiosamente, e ironicamente, ao relativismo da verdade, e outros “relativismos”, opõe-se com vigor a Igreja, uma crítica feroz da hegemonia da razão. Se o uso da razão enfraquece a fé, como parece inevitável (não estava a árvore do conhecimento proibida ao homem? E provar do seu fruto não foi nosso pecado original? E que metáfora visual forte da sinuosidade dos argumentos racionais é a serpente, que efetivamente argumentou com Eva!), aquela deve ser restrita para que haja espaço para esta. Mas a dúvida quanto à validade universal do que quer que seja, até dos artigos de fé, que parece advir de posturas relativistas, também não pode, segundo a Igreja, ser tolerada. A “verdade revelada”, fortalecida pela “tradição” e pela “autoridade”, não está aí para ser questionada, pensa a Igreja, nem pelo exercício da razão, nem por outras “verdades”, de outras tradições, fundadas sobre outra autoridade (para o homem estritamente racional, porém, a verdade só se revela em sua experiência pessoal, ainda que herdade de outrem, mas mesmo assim, sujeita ao crivo da crítica e aberta à revisão. O absolutismo de uma “verdade revelada”, imutável, e ainda por cima assentada em autoridade e tradição inflexíveis lhe são intoleráveis).
Além da concorrência de outras normas para a argumentação correta, das críticas “pós-modernas” a lhe atribuir descarada má-fé, das suspeitas que seu exercício pode por a perder nossa alma imortal, o cânone clássico da razão ainda é freqüentemente mal manipulado, intencionalmente ou não, em sofismas, aporias, falácias e malandragens várias. No livro em análise o uso correto da razão é implicitamente entendido em sentido clássico, segundo nossa “forma de vida”, de tradição ocidental e cientificamente informada, segundo nossos modos de aceder à verdade; entendida esta como atributo de asserções que dizem dos fatos exatamente como os fatos são, independentemente de nossa vontade ou conveniência.
É um pouco surpreendente que o livro privilegie uma compreensão retórica da argumentação, mas sobre isso não se detenha. Segundo os autores a argumentação não é primariamente nem a busca pelos fundamentos da verdade, isto é, regressivamente, pelo incondicionado a que a verdade está condicionada, nem progressivamente pelas conseqüências necessárias ou prováveis da verdade, mas um modo de convencer, a si próprio ou a outrem, da verdade ou probabilidade da conclusão para a qual a argumentação converge. Claro que a argumentação tem ambas as funções, lógica e retórica, além de outras mais, mas a fundamental é a lógica, e a capacidade de reconhecer um argumento logicamente válido é a melhor maneira de precavermo-nos do erro de tomar um que não o é como se o fosse, que é o objetivo da má retórica.
Além de uma discussão alentada e bem exemplificada do que é uma argumentação válida (pelos cânones clássicos), e dos cuidados para evitar argumentos falaciosos, os autores estão preocupados em nos ensinar a reconhecer asserções bem feitas, isto é, as que têm um valor determinado de verdade. Aqui, novamente, os autores exibem seu compromisso com o cânone clássico, já que admitem que uma vez livre de ambigüidade, vagueza, e outras imprecisões, uma asserção tem sempre um valor de verdade determinado, ainda que desconhecido e mesmo não passível de ser conhecido por meios que estão à nossa disposição.
Mas se argumentos partem de pressupostos, o que garante a veracidade deles se não outros pressupostos, numa regressão que arrisca ser infinita? Os autores também têm algo a dizer sobre isso. Segundo eles, se não a veracidade, pelo menos a probabilidade de asserções pode sustentar-se sobre a experiência direta dos fatos ou a autoridade reconhecidamente competente e desinteressada, descartando-se a autoridade emanada apenas do poder, os nossos desejos e conveniências (já que é tão mais fácil, mas não tão seguro, nos deixarmos convencer daquilo cuja veracidade nos traria prazer do que daquilo que nos causaria sofrimento), o “ouvir dizer” sem fundamento, a tradição fossilizada.
A urgência de um texto como esse é óbvia. Vivemos num mundo muito complexo onde decisões que afetam nossas vidas devem ser tomadas no embate de idéias em que fraudes intelectuais de toda espécie são moeda corrente. Devemos adotar a pena de morte? Liberar o aborto? Sob que condições? Eutanásia? Pesquisa com células-tronco embrionárias? Casamento entre pessoas do mesmo sexo? Discussões sobre esses assuntos freqüentemente envolvem definições (o que é um ser humano? O que é um cidadão?) e argumentação (o aborto é um assassinato; logo, deve ser proibido). Urge então saber o que é uma definição, evitar argumentar com conceitos imprecisos ou mal definidos, saber detectar pressupostos ocultos injustificados (o que é exatamente um assassinato? Por que impedir o desenvolvimento de um embrião de algumas poucas semanas é assassinato?). Em democracias onde essas decisões são tomadas ouvindo-se a população, não falta quem queira manipulá-la para seus fins. Aqueles que sabem que as suas opiniões são pouco defensáveis do ponto de vista racional são precisamente aqueles que não esitam em recorrer a falácias. Ensinar a desmascará-los é um serviço que se presta à democracia.
Mas, poderíamos perguntar aos autores, porque privilegiar o cânone clássico. A resposta é óbvia, se os relativistas têm razão, e qualquer cânone de razão é um produto do seu tempo e do seu meio, então só podemos raciocinar segundo o nosso cânone, fruto de nosso tempo e nosso meio. Se houvesse como julgar e selecionar dentre vários haveria um cânone absoluto, contra a hipótese relativista. Ademais, segundo nosso cânone os outros estão errados; pois, se admitíssemos alternativas racionais corretas ao que a razão nos ensina, incorreríamos em contradição, o que nossa razão abomina. Logo, segundo a hipótese relativista, estamos justificados a aderir ao nosso cânone simplesmente porque é o único correto. Por outro lado, se os relativistas estão errados, e só há um modo correto de raciocinar, não há porque os autores justificarem sua aderência a ele.
Uma última palavra quanto ao título do livro. O termo “pensamento crítico” está freqüentemente associado ao marxismo, que assim se denomina por acreditar que lhe cabe o papel de corte suprema à qual todos os outros modos de pensar devem submeter-se e serem condenados como “ideologias”. Estariam os autores com essa escolha apenas ironizando? Afinal, assim agindo não estaria o “pensamento” marxismo exercendo, como o cânone racional clássico, seu direito de proclamar-se absoluto? A diferença, claro, está em que o “pensamento” marxista não é um cânone de razão, mas um fruto do seu exercício; criticável, portanto, a partir dele. O mais certo é que com esse título os autores estejam simplesmente oferecendo seu livro como uma “crítica da razão argumentativa” do ponto de vista de uma concepção de boa argumentação. E nisso nos prestam um grande serviço.
Jairo José da Silva – Departamento de Matemática, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita”, 13500-230 Rio Claro, SP – Brasil. dasilvajairo1@gmail.com