Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart / Eduardo L. G. Amaral

“HÁ MUITO TEMPO DESEJO-LHE ESCREVER…”:

ITINERÁRIOS HISTORIOGRÁFICOS NA ESCRITA DE CARTAS

Poucas figuras proeminentes do cenário intelectual brasileiro no séc. XIX tiveram sua imagem pública tão dissecada quanto João Capistrano de Abreu. De fato, as peripécias e infortúnios que cercam a vida deste historiador cearense serviram de matéria a um número vultoso de estudos e publicações. Espírito reservado, temperamento forte, estilo irônico, inteligência aguda, compulsão pela leitura, aversão a homenagens e honrarias, desmazelo nos cuidados com a aparência pessoal são algumas das características que tornaram Capistrano uma fonte quase inexaurível de situações inusitadas, oscilando em movimento pendular, do cômico ao trágico. Durante muito tempo, suas correspondências com amigos, parentes e colegas forneceram uma cornucópia de curiosidades, ensejando a difusão de anedotário que hoje praticamente se funde à personalidade do escritor.

Felizmente, o epistolário de Capistrano vem sendo revisitado por críticos e historiadores ocupados em apreender ali traços relevantes de seus métodos de pesquisa, interesses intelectuais e interpretações da história do Brasil. Na verdade, percebe-se atualmente uma certa tendência a devassar as idéias de pensadores e artistas por meio dos vestígios dessa escrita íntima. Paroxismo do fragmento? Entronização do indivíduo? Estratégia do mercado editorial? Não há dúvida quanto ao peso desses ingredientes no entusiasmo lucrativo de publicar correspondências pessoais. Contudo, existe uma força latente que brota de tais documentos. Nas cartas é possível encontrar declarações afetuosas, relatos de cenas cotidianas, troca de confidências, mas também a expressão de convicções políticas, a opinião ajuizada sobre comportamentos e fatos públicos, o questionamento ou afirmação dos preceitos morais e dos códigos axiológicos que marcam uma época. Entre a

idiossincrasia do missivista e o quadro das relações sociais de determinado tempo e lugar, desenha-se um itinerário pontuado de tensões, receios, incoerências atinentes às possibilidades de ação do sujeito histórico imerso nas circunstâncias específicas de sua existência.

No que diz respeito à figura de Capistrano de Abreu, a pertinência historiográfica de investigar suas cartas é superlativa, dado o esmero peculiar que envidou no manejo deste gênero literário. Algumas facetas dessa complexa trajetória intelectual, por vezes expressa na narrativa paralela dos diálogos manuscritos, pode ser aquilatada com a leitura de Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, de Eduardo Lúcio Amaral – volume 19 da Coleção Outras Histórias (linha editorial do Museu do Ceará). No livro se destaca a comunicação escrita, cultivada durante trinta anos (1892-1922), por dois expoentes da pesquisa histórica brasileira no séc. XIX, cujo encontro se dera em tempos de juventude, partilhando os mesmos bancos escolares na Fortaleza provinciana dos anos 1860. O autor observa que, à parte a conterraneidade, o respeito mútuo e a extrema dedicação à pesquisa documental, tinham ambos os historiadores pouco em comum. Capistrano se embrenhou arduamente na investigação empírica e na reflexão do passado nacional, alheio ao reconhecimento dos pósteros e à exaltação cívica. Studart, por seu turno, acreditava no papel civilizador do conhecimento e na elevação moral das camadas populares, quer pela instrução formal, quer pela virtude religiosa. O próprio título honorífico com que foi agraciado, outorgado pelo Vaticano – Barão de Studart –, indica a enorme diferença que separava os dois amigos: um enredado nas muitas confrarias e sociedades letradas em profusão nos alvores da república, o outro declaradamente arredio aos lugares de sociabilidade institucional, custoso que lhe era “pertencer à sociedade humana”.

No decorrer do trabalho, diversas questões de suma relevância são abordadas, como a intensa colaboração tecida entre Capistrano e Studart no andamento de suas pesquisas, a percepção de ambos sobre os primórdios da história do Ceará e a ênfase dada ao sertão e ao litoral como pólos da colonização do Brasil. Eduardo Lúcio salienta a opção metodológica de Capistrano por examinar as paragens interioranas, pois identificava ali o fluxo primordial das migrações e sedimentações provisórias que conformariam a dinâmica da sociedade colonial. Como a quase totalidade dos historiadores de sua época, Studart tomou direção oposta, pensando a história local e nacional com os olhos voltados para a costa litorânea, articulada a uma idéia conservadora de história, ainda submetida ao peso dos fatos grandiosos, dos atos do Estado português, dos personagens notáveis e das divisões administrativas.

Um dos pontos salientes do texto aborda a crítica metódica dos documentos, tal como desempenhada por Studart e Capistrano. Percebe-se ali a vivacidade e o engenho de ambos, especificamente em torno da verdadeira autoria de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. A questão há muito inquietava numerosos pesquisadores, uns postulando a existência real daquele que assinou a referida obra – André João Antonil –, outros julgando tratar-se de um pseudônimo. Debruçando-se sobre esse desafio, os dois historiadores cearenses chegaram, por caminhos diferentes, à mesma conclusão: Antonil era o anagrama aproximativo de João Antonio Andreoni, eminente jesuíta italiano do fim do séc. XVII e início do XVIII que atuou em terras brasileiras. Ao recuperar, nas cartas, o relato de tão notória descoberta, Eduardo Lúcio convida a uma revisão de preconceitos arraigados, notadamente entre os aspirantes a historiador. Pois não é incomum a rotulação prévia de muitos pesquisadores oitocentistas, assaz diversos uns dos outros, reunidos sob a alcunha desabonadora de positivistas, como a indicar que comporiam uma esdrúxula tribo de fetichistas do documento, imbuídos de ingênua passividade ante os registros que o passado nos legou. Ao contrário, avulta o esforço investigativo quanto à procedência e autenticidade dos vestígios de outras épocas, demandando criatividade, astúcia e imaginação no cotejo das fontes. Mais que isso: reitera-se o exame meticuloso dos testemunhos como um dever indeclinável à faina do historiador.

Se, atualmente, a noção de crítica documental sobrepuja largamente as preocupações estritas com o “teor de verdade” dos fatos e registros passados, há que reconhecer, sem adulação, os esforços das gerações precedentes de eruditos e pesquisadores no amadurecimento das práticas, métodos e conceitos que presidem a disciplina histórica. Implicitamente, este livro observa que o exercício, ponderado e conseqüente, da reflexão crítica deve também nos resguardar do julgamento cômodo – e anacrônico – de outras épocas segundo nossas próprias categorias de pensamento e valoração.

Uma questão teórica pertinente, tocada apenas de soslaio, ficará contudo reservada (assim espero) para estudos vindouros. Refiro-me às correntes antagonistas dispostas a devassar a história do Ceará, uma sob a égide da ocupação litorânea, outra pautado em apreender a dinâmica das migrações pelo sertão da capitania. Ao contrário dos debates tradicionalmente levantados, cuja meta era afiançar uma das hipóteses às expensas da concorrente, Eduardo Lúcio destaca que está em jogo mais que porfias de eruditos, ou mesmo nuanças de adequação da análise aos fatos. Vislumbrar a história local com olhos postos sobre o mar ou priorizando os rincões do interior tampouco sugere a potência do determinismo geográfico. Ocorre que ambas as vertentes interpretativas são orientadas por noções diferenciadas de documento – escolha metodológica que iria repercutir decisivamente no modo de enfeixar os acontecimentos em favor de uma dada narrativa histórica. Alguns contornos dessa discussão vêm aduzidos à luz de trechos das cartas trocadas entre Capistrano e Studart.

O autor sintetiza a extrema riqueza que se descortina no escrutínio dessa correspondência cheia de mesuras, mas visivelmente pontilhada por inquietações historiográficas: “As cartas de Capistrano para Studart são exemplares para a compreensão do seu processo de construção do conhecimento, já que a partir da rede de informações construída entre os dois historiadores vêm à tona as sutilezas do trabalho de pesquisa e a subjetividade de Capistrano de Abreu.”

Ressalte-se, contudo, que ao leitor o sentido inverso e complementar também é plausível, ou seja: acercar-se dos métodos de trabalho e da produção científica do Barão de Studart, não somente através das cartas, como pela consulta a outro estudo de lavra do mesmo autor – Barão de Studart: memória da distinção (Coleção Outras Histórias, v. 9). Ali se descobre a figura de grande projeção que se firmaria no panteão da intelectualidade cearense, reunindo ao mesmo tempo os atributos modelares que o tornaram referência indisputável nos segmentos letrados de então: filho de inglês, cavalheiro, médico, erudito, católico, abolicionista, pesquisador incansável.

A leitura do texto de Eduardo Lúcio indica não ser este o resultado de investigação empírica previamente orientada. Deriva, sim, de análise centrada na fortuna crítica de Capistrano de Abreu, acrescida pela consulta de suas obras maiores, com especial atenção sobre a correspondência. Portanto, trata-se sobretudo de uma reflexão sedimentada em referências bibliográficas, a que vêm incorporar-se ponderações quanto aos possíveis sentidos da escrita da história, em fins do séc. XIX e alvores do XX.

“No princípio, era a pergunta” – essa a divisa de qualquer trabalho intelectual conduzido por historiadores. O opúsculo em questão, livre de pretensões biográficas e alheio a sínteses de vulto, traz na formulação de questionamentos o seu mérito: a que finalidades se presta o conhecimento histórico produzido naquele período? Quais os interditos duradouros que cerceavam a viabilidade de uma interpretação da época colonial menos subserviente à zona costeira e ao primado lusitano, mais atenta à ocupação lenta dos sertões? Como esses caminhos metodológicos divergentes influiriam nas futuras noções de história nacional? Sob que condições epistemológicas era plausível advogar a legitimidade de uma história local que remontasse à Colônia (como o projeto de história do Ceará defendido pelo Barão de Studart)? De que maneira a troca de cartas entre intelectuais pode se tornar um material elucidativo acerca dos rumos tomados pela historiografia brasileira? Qual o papel das celebrações e marcos cronológicos (a exemplo do “tricentenário do Ceará”) na consolidação de um modelo hegemônico de fundamentar, narrar e difundir a história? Indagações seminais, cujo enfrentamento poderá conduzir à aparição de novas pesquisas que tenham por objeto de estudo a própria criação historiográfica.

Com o lançamento de mais este livro, o Museu do Ceará reitera o compromisso com a reflexão crítica da história. Ao mesmo tempo, oferece ao leitor os contornos de duradoura interlocução privada, construída numa época em que os navios a vapor faziam as vezes de correio. Pródiga em descobertas eufóricas, estudos minudentes e recorrente solicitação de favores mútuos, a correspondência entre Capistrano e Studart nos sugere, acima de tudo, o empenho invulgar nas lides da pesquisa histórica e os tremendos obstáculos a serem vencidos. Registra, ainda, a notação de um outro ritmo, de comunicação e de vida, quando amigos distantes rascunhavam linhas para falarem de si ao outro, quando a ansiedade de uma carta por chegar exigia paciente expectativa, “à espera do próximo vapor”.

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho


AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2003. Resenha de: SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.5, 2004. Acessar publicação original. [IF].