Sex, skulls, and citizens: gender and racial science in Argentina (1860-1910) | Ashley Elizabeth Kerr

Todos nuestros huesos persisten al paso del tiempo. Son los últimos registros del archivo viviente que llamamos cuerpo. Frágiles e indestructibles, los restos óseos resisten archivados bajo tierra (o minan) nuestro vínculo con el pasado. Esto parece aún más evidente en una Argentina en la que los restos humanos se han transformado en poderosos agentes de las narrativas históricas. Quizás un ejemplo paradigmático de esto sean los restos de las víctimas del terrorismo de Estado de la última dictadura militar, que, activados por los equipos de antropología forense y los organismos de derechos humanos, se transformaron en actores indiscutibles en los procesos por la verdad, la memoria y la justicia.

Sex, skulls and citizens aborda otros restos: aquellos que durante décadas permanecieron como botines de guerra en las vitrinas de los museos. Este libro se ocupa de aquellos cuerpos violentados por el proyecto expansionista del Estado argentino para indagar sobre los puntos de contacto entre ciencia, raza y sexualidad en la formación de la argentina moderna. Leia Mais

Clichês baratos: sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

SCHETTINI C sexo e humor
Cristiana Schettini | Foto: cafehistoria.com

SCHETTINI C Cliches baratos sexo e humorEm busca de diversão noturna, homens que viviam no Rio de Janeiro do início do século XX encontravam inúmeras opções de entretenimento no centro da cidade. Teatros, cinematógrafos, casas de chope e jardins são apenas alguns exemplos, dentre tantos outros locais de sociabilidade masculina. Não raro, nesses espaços, elementos relacionados ao sexo e ao humor eram mobilizados para atrair e satisfazer os anseios de uma ampla e diversificada clientela. “Estrangeiros no tempo”, leitoras e leitores de Clichês Baratos: sexo e humor na imprensa carioca do início do século XX, novo livro de Cristiana Schettini, iniciam seu percurso por esse mundo com um passeio que reproduz roteiros disponíveis a muitos consumidores desse lazer repleto de apelos eróticos. As perspectivas masculinas, porém, estão longe de serem as únicas, tampouco as mais enfatizadas pela historiadora.

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a autora fez uma tese sobre a prostituição carioca no início do período republicano. Esse trabalho foi premiado pelo Arquivo Nacional e deu origem ao livro “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas, publicado em 2006. Desde então, ela tem se dedicado a pesquisas sobre o tema e sobre imigração no Brasil e na Argentina, com ênfase na perspectiva de gênero. Publicou inúmeros artigos e organizou coletâneas, sendo a mais recente em parceria com Juan Suriano, intitulada Historias Cruzadas: diálogos historiográficos sobre el mundo del trabajo en Argentina y Brasil (2019). Atualmente, leciona no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidade Nacional de General San Martín (USAM) e é pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Leia Mais

História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva

Historia e outras eroticas3 sexo e humor
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |

SANTOS M Historia e outras eroticas 2 sexo e humorNinguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker

Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.

Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.

A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.

Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.

Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.

No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.

Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.

No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.

Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.

No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.

Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.

Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.

Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).

O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.

No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.

Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.

Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.

Nota

2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.

LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: nperescarvalho@gmail.com.


MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

Sex, Law, and Sovereignty in French Algeria, 1830–1930 | Judith Surkis

SURKIS Judith sexo e humor
Judith Surkis | Foto: Brown University |

SURKIS J Sexo law sexo e humorIn recent decades historians, postcolonial theorists and feminist scholars have demonstrated how, in a variety of geographical settings, gendered stereotypes supported the conquest and domination of overseas territories by European colonial regimes. Judith Surkis’s ‘colonial legal genealogy’ of Algeria under French rule significantly develops these now well-established observations by tracing the historically contingent emergence of a legal regime in which ‘sexual fantasies and persistent desires’ underpinned the regulation of both land and legal personhood (p.14). Her objective, she explains, is to ‘reconstruct the “cultural life’ of Algerian colonial law, which is to say the material, political, and affective resources and resonances on which its elaboration and its powerful effects depended’ (p.8). By recognizing the affective dimension of the production, application and negotiation of colonial law, Surkis provides new perspectives on the workings of colonial power in Algeria, and makes an exceptional contribution to historical understanding of the colonial legal regime.

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The Sexual Question: A History of Prostitution in Peru, 1850s-1950s | Paulo Drinot

A few years ago, while reviewing archival material on Valparaíso, Chile, I ran across reports of women engaging in sex work in temporary housing after the 1906 earthquake. The authorities quickly made it clear that sex work itself was not the main issue; much more important was where it was happening. I thought there was a much larger story to be told, but since I was researching a rather different topic, I took a picture and made a note of it. Paulo Drinot, in his new book The Sexual Question: A History of Prostitution in Peru, 1850s-1950s, takes on the subject of sex work in Peru and does so by drawing on an enormously wide range of sources, care for geography, and an attention to historical change from various angles. Leia Mais

¿Reconocimiento o redistribución? Un debate entre marxismo y feminismo | Judith Butler e Nancy Fraser

Introducción

La presente reseña tiene como objetivo problematizar el debate Fraser-Butler, no a través del análisis de los dos postulados principales, sino a través de la crítica de los mismos y de las posibilidades que en ellos se encierran. Este ejercicio lo que pretende problematizar es la relación entre genitalia-sexo-género, con el capitalismo y la disolución de las certezas ontológicas con la pérdida de vigencia de lo denominado como moderno.

Tanto el debate Fraser-Butler, surgido en la New Left Review en el año 2000 y convertido en libro en 2017, como el debate filosófico en torno a la modernidad, aparecido en las primeras décadas del siglo XX, no son nuevos. Sin embargo, las problemáticas que abordan siguen estando vigentes, sobre todo, ahora, que los feminismos autodenominados radicales están en plena ofensiva reaccionaria poniendo en riesgo las vidas de las personas trans y lanzándose a una aventura colonizadora sobre aquellos cuerpos que consideran abyectos. Esto hace necesario señalar cómo determinadas articulaciones feministas pueden constituirse como represivas, donde una interpretación falaz de la relación entre género y sexo puede llegar a funcionar como vehículos de la dominación. Esto permitiría a grupos feministas enrocarse en el biologicismo y el etnocentrismo para instrumentalizar la lucha por la liberación y convertirla en su monopolio. De este modo, garantizarían, a través de la defensa de una feminidad cis y blanca, la invisibilización, persecución y represión de los colectivos más desfavorecidos. Es esta labor represiva de determinadas articulaciones feministas con vocación universalista y eurocéntrica, que se amparan en interpretaciones falaces de la realidad, la que constituye el objetivo de crítica de esta reseña. El texto de Fraser nos serán muy útiles para comprender este tipo de posiciones reaccionarias, sin que esto suponga que acusemos a Fraser en el presente por las afirmaciones teóricas mantenidas hace veinte años. Leia Mais

Tereza Batista cansada de guerra | Jorge Amado

Esta resenha objetiva descrever e analisar algumas passagens do romance acima citado no intuito de perceber as relações elencadas por Jorge Amado, que possibilitam um conhecimento da época, do espaço e das relações sociais, que todas as obras literárias carregam nas entrelinhas de sua trama. No caso de Jorge Amado, escritor baiano que começa a escrever na década de 1930, estas relações são postas intencionalmente para mostrar a sociedade na qual o autor está inserido e é observador atento do cotidiano do povo. Aqui identificaremos estas relações enfocando a mulher como sujeito social no cenário proposto pelo autor.

Posto que Jorge Amado trabalha com uma temporalidade que descreve os meandros por que perpassam a memória, fazendo uma alusão ao caráter popular que ele dá as suas obras, traçaremos aqui uma linha cronológica que nos permita caminhar por uma ordem que não segue necessariamente a do livro.

Tereza ficou órfã muito cedo e passou sua curta infância com uma tia. Foi uma criança livre, gostava de correr e subir em árvores. Com os meninos, seus colegas, aprendeu que um bom guerreiro não chora. Aos doze anos ela foi vendida ao Coronel Justiniano, por uma quantia irrisória e um bracelete barato. Seu tio foi contra a venda, não por um gesto altruísta, mas por desejar ser ele a tirar o “cabaço” da menina. Sabendo que sua esposa conhecia suas intenções, não se atreveu a falar nada.

Já neste momento o autor sinaliza a falta de alternativa de Tereza. Era condição de ela perder a infância, pois se o Coronel não a desvirginasse violentamente o tio faria, fazendo-a perder, portanto a chance de ser uma “mulher direita”, posto que para isso era necessário ser virgem. Ela é coisificada e pela dimensão da violência deste processo ela é obrigada a aceitar esta condição.

Na casa do Coronel “Justo”, Tereza viveu um verdadeiro inferno a começar na sua chegada, na condição de “coisa sexual”, depois de resistir bravamente à primeira “cavalgada” (termo usado pelo próprio Coronel para referir-se aos estupros que comete) continua a ser estuprada. A descrição detalhada que o autor faz destas violências sexuais carrega nos detalhes a angústia, a raiva, a impotência do leitor, sensação esta que nos faz refletir sobre a nossa condição como participantes desta sociedade que carrega embaixo de um fino pano as injustiças contra a mulher.

Tereza foi escrava sexual por cerca de três anos, até ser seduzida por Daniel, jovem boêmio, sem caráter, muito semelhante fisicamente ao anjo pendurado na parede do quarto do Coronel, que presenciava toda a violência cometida contra a menina. Por Daniel, Tereza foi capaz de matar o Coronel quando ele descobrir a relação dos dois e humilhou o rapaz.

Neste momento o autor nos desvela que o Coronel não conseguiu anular a coragem da menina, agora mulher, com as surras e os estupros. A coragem lhe era inerente, só ficou adormecida por um tempo, despertando na primeira oportunidade.

Quem libertou Tereza da prisão, já que ela matou o Coronel na presença de Daniel que a denunciou acusando-a covardemente (e nós leitores sabemos que ela o fez para salvá-lo), foi o Coronel Emiliano, este já havia se encantado pela menina quando lhe fez uma visita ao, agora, falecido Justo, e tentou, na ocasião, “comprá-la”, mas não teve sucesso. A menina viveu durante seis anos na condição de “amásia” do Coronel Emiliano, ele a colocou numa casa, lhe deu vestidos, contou-lhe uma porção de coisas e ensinou-lhe a ser uma “senhora”. Porém nunca tornar-se-ia uma “senhora”, posto que as “mulheres de família” suportavam as “protegidas” dos Coronéis por medo e respeito aos mesmos, sua condição de “mulher da vida” iria acompanhá-la para sempre, como uma sombra.

Apesar desta condição de “amásia”, Tereza foi feliz durante aqueles anos, e quando finalmente o Coronel revelou seu amor por ela (dizendo-lhe inclusive que pensava em lhe dedicar parte da herança), confessando sua infelicidade no seio familiar, ele morreu, durante o ato sexual, dentro de Tereza. Novamente sem ninguém e sem nada a menina-mulher “cai na vida”.

O Coronel Emiliano reproduziu com Teresa a mesma lógica de todos os Coronéis, inclusive a do Coronel Justino, o vilão do primeiro capítulo. Mas pela primeira vez a menina, que perdeu a infância, foi tratada com carinho, ele fez o papel de pai e amante e este fato em contraste com os momentos vividos com o outro primeiro Coronel acabou aliviando a culpa deste.

O contraste também se faz presente na estrutura do texto, que nos transporta para dois momentos respectivamente: ora são descritos os momentos de felicidade de Tereza ao lado do coronel Justino, ora o desfecho da morte deste e o sofrimento da perda por Tereza, aliado a chegada da família, que o Coronel dizia nunca tê-lo amado. Neste momento as lembranças da menina são nossos guias, pois o autor nos faz enxergar o Coronel pelos olhos da personagem.

As relações dos dois espaços da mulher nestas cidades são descritas neste capítulo quando Amado narra a função de Tereza como “amásia”: a mulher sustentada e protegida por um Coronel próspero. Estas mulheres normalmente são tiradas de prostíbulos e colocadas na casa de descanso destes Coronéis, a maioria tem que estar consciente de seu papel; elas esperam os Coronéis terem vontade de estar com elas, fazendo, quando isso acontece, todas as vontades deles. Esta relação de submissão fica clara quando Tereza aborta, ao saber, pela boca do Coronel Emiliano, que ela não era mulher para ter filhos dele.

O Coronel então morreu durante o ato sexual e quando a família legitima dele chegou, Tereza se viu obrigada a ir embora sem nada. O autor deixou explicito o orgulho da personagem e o amor sem interesses materiais que ela mantinha pelo falecido, indo embora sem reivindicar nada. Ao partir, deixou todos os bens materiais que recebeu do Coronel para a família que se mostrava avarenta, pois mostravam-se mais preocupados com a herança do que com a morte do ente. Este é um cenário sempre presente na obra de Amado, tendo em vista sua busca por retratar as famílias patriarcais, tradicionais baianas, onde as diferenças sociais sempre são a tônica central.

Tereza instalou-se numa cidadezinha e lá trabalhou como “rapariga” (termo usado para designar as profissionais do sexo). Logo conheceu um médico e mudou-se com ele para uma cidadezinha do interior quando ele foi promovido. Mas em meio à tranqüilidade da saúde na cidade, houve um surto de Bexiga Negra, o médico que permaneceu por pouco tempo no local, recebeu a ajuda de Tereza que neste curto período aprendeu um pouco sobre a doença e o tratamento. Quando o médico fugiu, num ato covarde, com medo de contrair a doença, assim como fizeram as autoridades da cidade (sobraram apenas os mais pobres, que não tinham como fugir), Tereza ficou para tentar amenizar o problema. O autor a descreve como uma guerreira, que mesmo diante de tão heróicos feitos é condenada pelas más línguas da cidade devido ao seu passado e sua condição. O autor nos mostra a dificuldade de aceitação de uma mulher que foge das regras da sociedade, seja esta uma condição ou uma escolha.

Antes de encontrar a paz, Tereza ainda passaria por mais uma batalha. Este último capítulo é iniciado por uma Mãe de Santo que fala do destino de Tereza. Ela era querida no lugar onde agora vivia e trabalhava novamente como “mulher da vida” de coronéis muito poderosos, devido a sua exuberante beleza. Em sua narrativa, o autor nos apresenta uma distinção sócio-econômica entre os prostíbulos: existiam os mais simples, onde era aceito qualquer cliente, e os mais sofisticados, onde os clientes eram ricos e em sua maioria coronéis, estes tinham mulheres fixas, como Tereza que também se apresentava em shows de dança.

O governo decidiu deslocar os prostíbulos mais pobres para uma região de condições precárias. O autor descreve detalhes destas relações puramente políticas, sem preocupação social, mostrando como a vida do povo estava subjugada aos desígnios das autoridades locais. Por mais que Tereza não estivesse envolvida, tomou aqueles acontecimentos como se fossem dela, pois quando as mulheres se recusaram a sair, a polícia as reprimiu violentamente. A idéia veio de Tereza, as “profissionais do sexo” não trabalhariam enquanto o problema não fosse resolvido. Concomitantemente estava por chegar um navio com muitos marinheiros americanos que iriam movimentar a cidade com seus dólares, porém sem a atuação das “mulheres da vida” este movimento se reduziria significativamente.

A polícia ao saber da greve tentou violentamente reprimi-la, mas com a ajuda dos Deuses africanos, os Orixás, Tereza incentivou todas a não voltarem às atividades naquela noite. “A greve do balaio fechado”, um dos possíveis títulos para este capítulo sugerido pelo autor, deu certo, mas Tereza foi presa e apanhou muito na cadeia.

As torturas não foram suficientes para acabar com sua beleza e ela foi pedida em casamento por um antigo pretendente. Tereza por ter perdido seu grande amor, um marinheiro que ela conheceu quando ele a salvou da polícia no inicio do livro, e por ela estar acreditando que ele havia morrido no mar, sem nenhuma esperança de amar novamente aceitou o casamento. Porém, momentos antes de se casar, seu grande amor apareceu reivindicando seu lugar no coração de Tereza.

Finalmente ela encontrou a paz nos braços de quem amava, no convés de um barco, e foi no mar que ela descarregou as três mortes que pesava em suas costas: o Coronel Justo que ela matou com uma facada, o Coronel Emiliano que morreu durante o ato de amor e seu filho que ela matou ainda no ventre dela.

Através dos olhos de um narrador que se diz presente na história contada e que sempre coloca sua opinião apaixonadamente influenciando desta forma a opinião do leitor, Jorge Amado denunciou uma realidade dolorosa, cruel e ainda atuante. Tereza Batista é a personagem que carregou em suas costas as experiências de meninas que se tornam mulheres condicionadas a um futuro de escolhas limitadas. Tereza parece ser o grito desesperado de denuncia que Jorge Amado vem trazendo em todas as suas obras, estereotipada na mulher baiana que é muito sensualizada e que só encontra saída na sujeição do próprio corpo.

A estratégia estrutural do texto nos induz aos caminhos da memória, onde podemos ouvir a voz e as impressões do narrador presente, que tudo indica ser um taxista que conta a história para um passageiro, relembrando o que viu unido ao que ouviu da boca do povo que até transformou a história em cordel. Para dar veracidade à história ele usa o argumento desta ser conhecida nas ruas da Bahia, valorizando a oralidade e a tradição oral como forma de perpetuação da História de um Povo (deste povo marginalizado e oprimido que nunca é privilegiado pela história oficial). Esta tradição oral que veio nos navios negreiros e esta tão presente nas religiões e costumes de origem africana, com as quais o autor sempre trabalha.

Conhecemos Tereza Batista por meio da “Memória”, a mulher forte e inteligente é fruto de uma vida de violências físicas e psicológicas de uma sociedade machista, limitadora, patriarcal, injusta, desigual e muito violenta. Tereza pagou o preço por nascer mulher, negra, bonita e pobre, mas ela não desistiu, não se rendeu e venceu a guerra, cujas as batalhas por serem tão violentas fazem com que, nós leitores, duvidemos que seria possível vencê-la. Tereza perdeu o medo de apanhar, de sentir fome, de ser sozinha e talvez tenha sido isso que a fez querer enfrentar este monstro que é a sociedade, apresentando-se a ela na figura de um coronel, de uma doença (Bexiga Negra), da prisão, da lei, a mulher sem infância a enfrentou e mesmo diante de tanto sofrimento e desilusão, não perdeu a capacidade de amar.

Luciana Santos Barbosa – Mestra em História Social pela PUC-SP.


AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Martins, 1972. Resenha de: BARBOSA, Luciana Santos. O grito de denúncia de Tereza: história, corpo e literatura. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.7, p. 403-411, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Testo Yonqui – PRECIADO (REF)

PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa, 2008. 324 p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Mulheres testosteronadas: adictas, malditas, transgressoras, bombásticas? Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

Beatriz Preciado é filósofa, estudou teoria de gênero na New School for Social Research, em Nova York, onde foi aluna de Jacques Derrida e Agnès Heller. É autora do livro Manifesto contra-sexual, traduzido para cinco idiomas, e entre seus ensaios destacamos Sex Design (Centre Pompidou, 2007), Multitudes Queer (Multitudes, 2004) e Savoirs-Vampires@War (Multitudes, 2005). Atualmente, ensina teoria contemporânea de gênero em diferentes universidades, entre as quais destacamos Paris VIII, l’École des Beaux Arts de Bourges, e Programa de Estudios Independientes del Museu d’Art Contemporani, de Barcelona. A autora se fundamenta nas teorias feministas contemporâneas, que problematizam a performatividade dos gêneros e servem como marco conceitual para discutir corpo, sexualidade e gênero.

O livro Testo Yonqui é dividido em 13 capítulos, dentre os quais destacamos as seguintes discussões: era farmacopornográfica; história da tecnossexualidade; farmacopoder; pornopoder; micropolítica de gênero na era farmacopornográfica; e vida eterna. Preciado qualifica sua obra como livro de autoficção, pois se trata de um protocolo de intoxicação voluntária à base de testosterona sintética, de um ensaio corporal, do corpo experimental em mutação no período que dura a escrita do livro. Ela descreve o uso da testosterona sintética em forma de gel, que é absorvida na pele; basta uma dose de 50 miligramas de Testogel diárias para experienciar o que ela nomeia como mutação de uma época. Leia Mais

Screening Sex – WILLIAMS (CP)

WILLIAMS, Linda. Screening Sex. Durham/London, Duke University Press, 2008, 412p. Resenha de: PARREIRAS, Carolina. Beijos, atos, orgasmos e telas: o sexo em exibição. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

Se há um tema recorrente nos escritos de Linda Williams, este certamente é o sexo. Já em 1989, ano da publicação de seu mais conhecido livro – Hard Core. Power, pleasure, and the “frenzy of the visible” –, ela traça como objetivo entender as diferentes configurações do gênero pornográfico, especificamente as produções cinematográficas heterossexuais hard-core1 (comerciais ou não, como é o caso dos stag movies2) e desse modo contribuir para a escrita de um viés da história desse que é considerado por muitos uma parte menor ou menos importante do cinema. Sob a influência do pensamento de Foucault, ela acredita que os filmes pornográficos seriam mais um exemplo dos intricados mecanismos de poder que produziriam determinados prazeres e saberes.

No epílogo de Hard Core escrito para a edição de 1999, Williams oferece alguns dos insights que darão base ao seu argumento em Screening Sex. O principal ponto apresentado ali é a ideia de on/scene. Nessa primeira formulação, o termo aparece como o marcador das controvérsias em torno das representações sexuais, o responsável por tensionar as noções de público e privado e, consequentemente, do que é chamado de lascivo, pruriente ou obsceno (que significa literalmente off/scene).

O argumento apresentado em Screening Sex caminha por um sentido semelhante e tem no conceito de on/scene a base para grande parte da discussão proposta. Mas antes de partir para a conceituação teórica é interessante pensar no modo como o livro foi construído. Em linhas gerais, o objetivo central é contar a história da exibição do sexo em filmes produzidos principalmente nos Estados Unidos no período de cerca de um século.

Já na Introdução, a autora faz a ressalva de que ela não pretende fornecer uma história completa da exibição do sexo em produções cinematográficas e que os filmes escolhidos para a análise são trabalhos que marcaram períodos ou momentos na história do cinema. Além disso, ela também ressalta que muitos deles despertaram nela – literal ou figurativamente – alguma forma de “saber carnal”3 (carnal knowledge). A discussão proposta passa então por essa localização da própria autora, sendo que, na maior parte dos capítulos, ao descrever os filmes, ela parte de reminiscências sobre os momentos em que os viu pela primeira vez, tentando mostrar os sentimentos, as sensações e os pensamentos que provocaram. Assim procedendo, ela claramente se situa em relação à análise: os pontos de vista contidos no livro são de uma mulher branca, heterossexual, norte-americana, com influências teóricas diversas que vão desde Foucault e Bataille, passando pela psicanálise freudiana, pela teoria crítica com Walter Benjamim, pelas formulações feministas e por estudos sobre mídias.

No percurso escolhido para entender a exibição (ou não) do sexo, Williams constrói um texto que se fosse transformado em filme forneceria um longo e denso documentário sobre as maneiras como o sexo foi colocado em discurso nas produções cinematográficas desde os seus primórdios. A organização dos capítulos proporciona, ao longo da leitura, a sensação de estar visualizando as cenas descritas pela autora, bem como o contexto mais amplo em que elas foram concebidas. Facilita esse processo, principalmente para os não muito inteirados sobre a história do cinema ou sobre os filmes citados, o uso cuidadoso de imagens de diversas das produções analisadas e sua preocupação em dissecar as cenas, apresentando-as em detalhes juntamente com análise dos comentários de produtores, diretores e críticos de cinema.

A divisão dos capítulos se baseia na delimitação de eras na produção cinematográfica. O critério para o estabelecimento de cada era não é exatamente cronológico, visto que em termos de datas ocorrem interpenetrações entre elas e um único período pode apresentar manifestações diferentes em relação à exibição do sexo.

O primeiro capítulo se concentra na era do beijo ou como Williams coloca já no título, o período da “longa adolescência americana”. Beijos foram durante muito tempo a única manifestação com conotação sexual mostrada em filmes. Assim a autora passa por produções que vão desde o primeiro beijo do cinema – The Kiss (Thomas Edison, 1896), passando pelo cinema mudo com Flesh and The Devil4 (Clarence Brown, 1927), por produções clássicas de Hollywood como Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e Notorious5 (Alfred Hitchcock, 1946) até o não tão mainstream Kiss (Andy Warhol, 1963).

No segundo capítulo, a intenção é mostrar como os atos sexuais e o que ela chama de “saber carnal” chegaram às telas norte-americanas entre os anos de 1961 e 1971. É salientada a importância dos filmes estrangeiros que serviram de inspiração para os diretores norte-americanos começarem a colocar sexo simulado em suas produções. Para que isso acontecesse, atuaram em conjunto a força da revolução sexual que acontecia no período, bem como uma série de mudanças na produção e comercialização dos filmes. Para colocar na tela essas novas performances, alguns recursos técnicos foram importantes, como por exemplo, a utilização de interlúdios sexuais.6 Dois filmes são o foco central da análise: The Graduate7 (Mike Nichols, 1967) e Midnight Cowboy (John Schlesinger, 1969). A parte final desse capítulo é dedicada a produções mais independentes – sexploitation8, blaxploitation9 e avant-garde10.

O terceiro capítulo é dedicado à análise de três filmes: Last Tango in Paris11 (Bernardo Bertolucci, 1972), Deep Throat12 (Gerard Damiano, 1972) e Boys in the Sand (Wakefield Poole, 1971). Grande parte da discussão gira em torno do momento inicial da pornografia mais comercial – chamada pela autora de pornô chique – heterossexual e gay e pela apresentação das provocativas e ousadas cenas de sexo presentes em O Último Tango em Paris. Já no quarto capítulo, a questão do orgasmo feminino é abordada, com o foco em filmes estrelados por Jane Fonda. A autora ainda mostra como naquele momento as idéias da sexologia em relação ao orgasmo eram importantes, especialmente nas formulações de Kinsey e Masters e Johnson, e também todo o ativismo político feminista e anti-guerra (“Make Love, not War”), com a apropriação do livro de Marcuse – Eros e Civilização.

No quinto capítulo, a atenção se volta para o filme O império dos sentidos (Oshima Nagisa, 1976) que representaria a fusão dos elementos gráficos da pornografia hard-core com a narrativa erótica do amor. Esse filme é o primeiro exemplo de produção cinematográfica que fez sucesso tanto como arte quanto como pornografia, exatamente porque tensiona estes dois pólos. O sexto capítulo é talvez o que mais traga a influência da psicanálise, especialmente das formulações de Freud sobre fantasias primitivas. Williams escolhe então recortes dos filmes, que chama de “cenas primitivas” para mostrar tabus relativos ao sexo presentes nas produções de Hollywood: em Blue Velvet13 (David Lynch, 1986) é pensada a questão do sadomasoquismo e em Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), a penetração anal.

Por fim, no capítulo 7, ela analisa filmes de arte erótica produzidos durante a década de 90 e reivindica para eles o rótulo de “arte erótica hard-core“. Este tipo de produção seria extremamente gráfica, como a pornografia hard-core é, mas não utilizaria os mesmos recursos da narrativa pornográfica, como a filmagem em close-up com grande detalhamento da anatomia corporal. No capítulo final, Williams se propõe a pensar nos desdobramentos mais contemporâneos da exibição do sexo. Para tal, toma como foco a multiplicidade de telas hoje encontradas: não há apenas a grande tela das salas de cinema, mas as telas de televisões (DVDs) e computadores (cyberporn), cada vez mais tecnológicas e interativas.

Feita essa apresentação, algumas questões que perpassam toda a obra merecem atenção. A primeira delas diz respeito ao uso do verbo to screen que tem um duplo significado: é uma projeção, uma exibição, aquilo que revela, mas também pode ser tomado como aquilo que elide e esconde. Há então na história das imagens de sexo em filmes uma relação dialética entre revelação e encobrimento. Beijos podem ser mostrados, mas há uma maneira correta de fazê-lo. Atos sexuais podem ser simulados, mas os sons do sexo devem ser elididos e por isto a necessidade de uma música. E é essa dialética que Williams tenta mostrar ao longo do livro, associando-a com um contexto político, econômico e cultural mais amplo.

Nesse contexto, aparecem momentos importantes como, por exemplo, a existência de um Código de Produção para os filmes de Hollywood (Hollywood Production Code). Este Código, atuante de 1934 a 1966, era um reflexo dos variados tabus da sociedade em relação ao sexo e proibia que os filmes mostrassem ou mesmo inferissem “formas baixas de relação sexual” identificadas como “beijos excessivos e lascivos”, “sedução ou estupro”, “perversão sexual”, “cenas de nascimento”, “doenças venéreas”, “nudez completa” e “exposição indecente”. Outro ponto que Williams destaca é que o Código não permitia a miscigenação, vetando toda e qualquer representação de atos sexuais inter-raciais.

Em substituição ao Código, foi criada em 1968 a Motion Picture Association of America (MPAA). Sua principal decisão foi criar um sistema de classificação dos filmes, tentando adequá-los às diferentes audiências. A primeira divisão era entre filmes para adultos e filmes para crianças. A MPAA é uma das responsáveis também pelo desenvolvimento da categoria “X”, a qual passou a ser utilizada, após o boom das produções pornográficas, para caracterizar esse tipo de produção.

Também faz parte do contexto mais amplo, a revolução sexual a partir dos anos 60. Era clara a relação das ideias de libertação sexual com a contracultura anti-guerra, anti-racismo, anticapitalista e anti-patriarcal. É nesse momento que o movimento feminista, os debates (morais, jurídicos e feministas) em torno dos conceitos de pornografia e obscenidade e as formulações de sexólogos se tornam importantes e permitem uma mudança nas convenções morais operantes, além de permitirem a produção de filmes como O último tango em ParisGarganta ProfundaBarbarella O império dos sentidos.

Em relação aos desenvolvimentos mais recentes da exibição de sexo, Williams traz importantes considerações sobre os avanços tecnológicos e o modo como eles proporcionam mudanças na maneira como o sexo é visto e sentido. O desenvolvimento do cyberporn e o crescimento do consumo de filmes em ambiente privado seriam duas das mais visíveis modificações ocorridas a partir dos anos 90. E elas têm um impacto considerável ao modificar a relação público/privado e as maneiras de recepção dos filmes. Não se trata mais apenas de uma audiência defronte a uma grande tela partilhando pública e grupalmente da exibição, mas sim de pessoas que podem estar em seus quartos, sozinhas ou acompanhadas, com a tela de seu computador, conectadas à internet e interagindo das mais diferentes formas com o que vê e sente. Ela reconhece ainda o papel da internet na crise da indústria pornográfica mais tradicional. A experiência de interatividade (e exemplos são os sites de sexo via webcam) mais ampla talvez seja o ponto que confere ao on-line uma diferenciação em relação às técnicas anteriores de interação expectador – tela de cinema.

Apesar de não acreditar que seja possível falar em uma hegemonia de uma das telas, ela afirma que o entendimento da exibição do sexo hoje deve considerar múltiplas possibilidades que incluem clicar, digitar, escolher e até mesmo ver o público assumindo o papel diretor: filmando, escolhendo os atos, as cenas e as interações.

Ao montar o percurso apresentado no livro, Williams possibilita relacionar sexo em sua forma cinematográfica não apenas à pornografia – sua manifestação mais conhecida, debatida e polêmica – ou ao erotismo, mas pensá-lo desde os quase inocentes beijos do cinema mais clássico, passando pelos orgasmos femininos cuja figura símbolo é Jane Fonda, até as relações em tempo real via internet com cybersex e cyberporn.

Assim, faz sentido retornar à ideia de on/scene: a tese proposta por Linda Williams é a de que para pensar as representações sexuais na cultura norte-americana desde a invenção do cinema é necessário levar em consideração o grau em que os atos chamados um dia de obs-cenos (off/scene) foram se tornando on/scene. O que a autora intenciona ao propor o termo on/scene é evitar julgamentos apressados e usos levianos do termo obsceno. Seu percurso argumentativo, narrativo e analítico vem reiterar essa proposta: são muitos os modos de se retratar atos sexuais e essa profusão de imagens não pode ser entendida como descolada da história cultural e social do sexo, nem fora da retórica repetidas vezes mencionada por ela de revelação e encobrimento.

Referências

Williams, Linda. Hard Core. Power, pleasure, and the “frenzy of the visible”. Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1999.         [ Links ]

Notas

1 A consagrada divisão do gênero pornográfico em soft core hard core tem como uma de suas bases o discurso jurídico, responsável pela criação do termo hard core. O soft core aparece por contraposição, nomeando as produções com sexo implícito, sendo correntemente associado ao erotismo. Já o hard core se refere aos materiais com sexo explícito, nos quais os atos e órgãos sexuais são mostrados com detalhamento. É bom lembrar também que estas nomenclaturas se mantêm pela ação do mercado, sendo que elas funcionam como meio de segmentá-lo e deixar visível que tipo de produto está sendo produzido.

2  Produções amadoras em vídeo, ilegais e exibidas fora dos circuitos cinematográficos convencionais.

3  Saber carnal tem como definição clássica intercurso sexual, coito, cópula que visa a procriação. Do modo como Williams o emprega, o termo quer especificar uma série de trocas mediadas entre os corpos que assistem e aqueles encontrados na tela. O termo evoca um conhecimento corporificado não apenas dos corpos que se tocam na tela, mas também do deleite que pode provocar naqueles que assistem. A referência para essa formulação são as produções de Vivian Sobchack sobre embodiment e cinema.

4 O Demônio e a Carne.

5 Interlúdio.

6 Interlúdio sexual significa que o registro sexual era feito em um tempo distinto do restante do filme. Era comum a utilização de trilhas sonoras para os momentos de simulação de sexo.

7 A Primeira Noite de um Homem.

8 Filmes soft-core produzidos nas décadas de 60 e 70 que se caracterizavam pela exploração de temas adultos e grande exibição do corpo feminino.

9 Filmes, produzidos principalmente entre os anos de 71 e 74, onde havia a exploração aberta do sexo racializado, com a exaltação da virilidade do homem negro e de grande quantidade de situações de violência.

10 Filmes de menor exibição que mostravam atos sexuais explícitos, mas com estética e objetivos políticos e sociais bem diversos da pornografia hard-core.

11  O Último Tango em Paris.

12 Garganta Profunda.

13 Veludo Azul.

Carolina Parreiras – Mestre em Antropologia Social pela Unicamp e doutoranda em Ciências Sociais pela mesma universidade. E-mail: carolparreiras@gmail.com

Acessar publicação oficial

[MLPDB]

 

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens | Kate Gilhuly

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens é o primeiro livro solo de Kate Gilhuly e resultado de uma pesquisa intitulada Landscapes of Desire: The Erotics of Place in Classical Athens, desenvolvida no Radcliffe Institute for the Advancement of the Humanities entre 2007 e 2008. A autora é professora assistente do Departamento de Estudos Clássicos do Wellesley College e especialista em gênero e história da sexualidade na Grécia Antiga, tendo como publicações como publicações prévias mais importantes os artigos The Phallic Lesbian: Philosophy, Comedy, and Social Inversion in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2006) e Bronze for Gold: Subjectivity in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2008).

O capítulo introdutório, que podemos considerar como o ápice da obra, apresenta as bases teóricas – da matriz feminina do título – que nortearão as análises de textos antigos ao longo do livro – e que fornecem um novo leque de possibilidades a futuros estudos acerca das temáticas de gênero e sexualidade na Atenas Clássica. Leia Mais

Testo Yonqui – PRECIADO (CP)

PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid, Editora Espasa Calpe, 2008, 324p. Resenha de: CAMARGO, Wagner Xavier de.; RIAL, Carmen Silvia de Moraes. Hormônios e micropolíticas de gênero na era farmacopornográfica. Cadernos Pagu, Campinas, n. 34, Jan./Jun. 2010.

Assalto à razão e delírio artístico, dois ingredientes que fazem de Testo Yonqui uma obra acadêmica à parte, de difícil classificação: Ensaio literário? Etnografia do/no corpo? Manual alternativo de sexualidade? Auto-ajuda para transgêneros mudarem seus corpos com o auxílio de drogas e hormônios? Talvez se possa ler o pujante escrito da (pós)feminista Beatriz Preciado como pós-moderno, com riscos de evocar conceito tão polêmico. Muito provavelmente, porém, ela se irritaria demasiado com a pecha da definição!

Definitivamente, BP – como se autodenomina na obra – não gosta de definições e classificações. Seu texto talvez seja uma etnografia antropológico-reflexiva, auto-ficção, ou “auto-teoria”, como prefere a autora, que usa o próprio corpo como plataforma de análise e experimentação subjetiva. O que fica dúbio para os leitores é saber onde começam e onde terminam a vida e a arte, e talvez essa seja a contribuição mais interessante de Preciado.

Rizomático1, seu livro divide-se em 13 capítulos, que podem ser lidos em qualquer ordem, não havendo uma cronologia ou interdependência entre eles. Não há fio condutor. Curiosamente os capítulos pares são teórico-conceituais e os ímpares registram relatos de experiências, histórias pessoais, encontros e desencontros da própria protagonista-autora-artista. Produto de uma nova estética literária nas produções bibliográficas dos estudos de gênero – ou para sermos mais precisos, nos estudos gays, lésbicos, queer e transexuais – o trabalho de Beatriz Preciado mescla ficção, narrativa, filosofia e arte. Os relatos autobiográficos que emergem (relações sexuais, aplicação de hormônios, humor sarcástico e inúmeras rotas de fuga sem saída), nos entreatos analíticos que a autora apresenta, não são mais do que recursos que exercitam nossas subjetividades contemporâneas e mostram como construí-las ou descontruí-las.

A ideia de Preciado é abrir, a partir de sua etnografia reflexiva, uma discussão mais profunda sobre nossos sexos, nossos desejos, nossas percepções da realidade, acerca de um regime que nos comanda e governa nossas atitudes (ou não-atitudes), em respeito a uma múltipla combinação de fatores. De uma antropologia do corpo a uma filosofia da existência, a autora confere-nos um texto instigante e inovador. O que é questionável, para Preciado, é até que ponto a gestão biomidiática da subjetividade atual está sob controle do indivíduo ou passa despercebida por ele: a sua adição consciente à testosterona é parte de um projeto de micromutação fisiológica, política e teórica.2

A auto-etnografia propõe-se a ler criticamente a realidade da sociedade contemporânea sob uma perspectiva sexopolítica, onde o sexo e a sexualidade convertem-se no centro da política e da economia. O que era, até então, considerado por alguns como uma “sociedade do controle”, para ela passa a se designar sociedade farmacopornográfica, na qual o controle emerge de dentro do próprio indivíduo. Nessa nova ecologia política não teríamos mais o controle frio, calculado, disciplinar e arquitetônico do panóptico de Jeremy Bentham, explicitado por Michel Foucault3, mas sim um “controle pop” implantado no próprio sujeito através de uma plataforma viva de órgãos, fluxos, neurotransmissores e formas de agenciamento, que seriam, ao mesmo tempo, suporte e partes de um programa político – novamente aqui encontramos influência deleuziana.

O regime farmacopornográfico, por sua vez, alimenta-se de dois pólos auto-sustentados, que funcionam mais em convergência do que em oposição: a farmacologia (tanto legal quanto ilegal) de um lado, e a pornografia, de outro. A produção farmacopornográfica não é um novo período da economia política mundial pelo volume com que se auto-produz ou pela presença massiva na vida das pessoas, mas pelo seu teor narcoticosexual.

Aqui cabe uma digressão: para Beatriz Preciado, o novo regime farmacopornográfico se anuncia na sociedade científica e colonial do século XIX a partir do duplo movimento de vigilância médico-jurídica em relação às práticas condenadas (aborto, pedofilia e afins) e da espetacularização midiática (de aberrações e anomalias genéticas). Ele tem suas bases hegemônicas constituídas no nascimento da modernidade capitalista, a partir das ruínas do sistema feudal. A constituição dos Estados nacionais europeus e a edificação dos regimes de saber científico-técnicos ocidentais estão nas origens da era farmacopornográfica. Contudo, sua efetivação é mais recente: data de fins da Segunda Guerra Mundial, no âmbito da corrida tecnológica espacial, e adquirirá seu atual perfil no desmantelamento da economia fordista dos anos 1970. Pós-industrial, terá um up grade a partir das técnicas informáticas e digitais de visão e difusão de informações.

Nesse contexto, o corpo farmacopornográfico do século XXI não é dócil. É, na verdade, uma interface tecnoorgânica, segmentada e habitada por distintos modelos políticos. Preciado aponta, assim, para um novo tipo de “governabilidade do ser vivo” e submete seu arcabouço feminista (e as próprias teorias feministas) ao solavanco que a aplicação de testosterona provocará em seu corpo durante 236 dias de auto-administração por adesivos cutâneos: há que se saber até que ponto as mutações que se passam nela não são transformações de uma época.4

Para a autora, o corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Ele não é produto de um corpo pré-discursivo, como diria Judith Butler (2003), e nem teria seus limites contidos no envoltório da pele. O corpo não pode ser entendido hoje fora dos ditames da tecnociência e, portanto, essa entidade é entrecortada por milhares de fibras óticas, pixels e nanômetros. Trata-se, em realidade, de um tecnocorpo. Convocará Donna Haraway e a definição de tecnobiopoder para explicar porque essa nova tecnoecologia suplanta o biopoder de Foucault, justamente por exercer poder e controle de todo organismo tecnovivo interconectado.5 O que na leitura foucaultiana é biopoder, para Haraway é tecnopoder. E Preciado concorda. Assim, tanto a biopolítica (poder de controle e produção da vida) como a tanatopolítica (política de controle e gestão da morte) funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias de potentia gaudendi ou força orgásmica, potência (real ou virtual) de excitação total de um corpo.

Dessa forma, não só o sexo e a sexualidade poderiam ser pensados de modos diferentes, mas também o gênero. Por isso critica as primeiras teóricas do gênero (Margaret Mead, Mary Macintosh e Ann Oakley) por defini-lo na linha explicativa da “construção social e cultural da diferença sexual” (82). Isso gerou catastróficos efeitos que, em sua opinião, reverberam nas políticas atuais de gênero, de caráter estatal, empurrando o feminino para o beco binomial sem saída essencialismo/ construtivismo. Destaca que Teresa De Lauretis, Judith Butler e Denise Riley vão redesenhar os discursos feministas nos anos 1980.

Para ela, o gênero não nasceu da crítica feminista, mas foi gestado nos laboratórios de farmacopornismo da corrida tecnológica da Guerra Fria, ainda nos anos 40. Hoje não há como discutir o gênero. Há que se discutir as “tecnologias de gênero” (termos de Haraway), que codificam, descodificam, programam e desprogramam e são sintéticas, maleáveis, suscetíveis de serem transferidas, copiadas, produzidas e reproduzidas tecnicamente pelos sexos e gêneros dos “bio” e “tecno” sujeitos.6

É esse novo sujeito sexual farmacopornográfico que mantém e alimenta o farmacopoder. Lembrando o mecanismo disciplinar de controle do panóptico, seria como se agora esse fosse comestível e estivesse operando de dentro do sujeito e por ele próprio. Como exemplo, a autora lembra o caso das pílulas anticoncepcionais, inventadas e maciçamente divulgadas no meio do século XX com o que considera ser a fachada de controle de natalidade. A pílula feminina sempre funcionou, desde sua descoberta, não como uma técnica de controle da reprodução, mas de produção e controle de gênero, de acordo com Preciado. E mais: como foi elaborada para reproduzir tecnicamente os ritmos dos ciclos menstruais – ou seja, “imitar tecnicamente a natureza” – a autora sugere uma analogia: assim como as “drag queens” são homens biológicos que desempenham uma forma visível de feminilidade e as “drag kings” são mulheres biológicas que teatralizam uma forma de masculinidade, a pílula seria uma “bio-drag“, uma espécie de travestismo somático, ou ainda, “produção farmacopornográfica de ficções somáticas de feminilidade e de masculinidade” (130). O que se produz não é algo externo (estilo, vestimenta, comportamento social), mas um processo biológico.

A fonte última de produção e riqueza do regime econômico pós-industrial farmacopornográfico é a pornografia que se prolifera pelos suportes técnicos (TV, computador, etc.) em ondas óticas para todo o planisfério terrestre. É ela que, no limite, alimenta o pornopoder. Como dispositivo virtual (literário, audiovisual, cibernético) masturbatório, a pornografia é a sexualidade transformada em espetáculo. Nesse sentido, para a autora, ela estaria para a indústria cultural, assim como a indústria do tráfico de drogas estaria em estreita relação com a indústria farmacêutica. Na pornografia, o sexo é performance, isto é, uma representação pública e um processo de repetição continuada, politicamente regulada. Nem o corpo individual, nem a esfera privada e nem o espaço doméstico escapariam da regulação política. Dessa forma presenciamos, então, um processo de “pornificação do trabalho”, pois na economia farmacopornista, o trabalho é sexo. Como o termo “sexual” (no antigo conceito de divisão sexual do trabalho) silencia o aspecto normativamente heterossexual da reprodução, conferindo-lhe um caráter de única via natural, Preciado propõe reclassificar o conceito para “divisão gestacional do trabalho”, devido à ênfase na segmentação do corpo derivada da capacidade (ou não) de gestação em útero.

Contudo, destaca que presenciamos no regime farmacopornográfico um processo dialético entre fármaco e porno. Tal dialética estaria manifesta através de contradições de biocódigos (low tech ou high tech), que formam a subjetividade e que procedem de regimes diferentes de produção do corpo. Dessa maneira, assistiríamos a uma horizontalização das técnicas de produção do corpo, que não estabelece diferenças entre classes sociais, raça ou sexualidade, ou outras características. A partir dessa horizontalização que, de acordo com BP, se depreenderia que a heterossexualidade será tão somente uma estética farmacopornográfica como qualquer outra (ou muitas), que poderá ser imitada, exportada e apreciada, mas que já se apresentaria como modelo falido e decadente em nossas sociedades contemporâneas. Para ela, a heterossexualidade está fadada a desaparecer e em seu lugar haverá uma proliferação de produção de corpos e de prazeres desviantes, outrossim, igualmente submetidos às regulações farmacopornográficas.

Da radicalidade de Preciado em momentos de auto-experimentação, passando pelas densas argumentações teóricas e quedas livres que nos arremessam ao precipício, se não fossem ficções “somato-políticas”, como a própria autora destaca, elas provocariam em seus leitores insurreição contra uma ativista tão respeitada pelos estudos feministas. No entanto, Preciado não engana a quem está atento: apesar do tom catastrofista e do anúncio da auto-extinção imanente do ser humano, deixa possíveis saídas em seus capítulos finais7: aplicações maciças de testosterona e oficinas performáticas de drag king para bio-mulheres figurariam como propostas do que chama “micropolíticas de resistência” de gênero – aqui, novamente, a referência são as “micropolíticas do campo social” (Deleuze e Guattari, 2009:15).

Preciado anda às voltas com amigos e amigas em sua obra, sempre misturando propositalmente os gêneros e denominando-os por siglas (VD, V, GD). O protocolo de “intoxicação voluntária” que executa por rituais de administração de hormônio masculino, não significa mudança de sexo ou uma metamorfose transexual. É um processo de desnaturalização e de desidentificação. Mudam-se apenas os afetos e seu corpo.

O corpo é uma condição de perfeição e de ruína. Para ela, os corpos são recipientes inexoráveis de transporte de substâncias ilícitas e produtores de subjetividades adictas. São receptáculos produtores de excitação-frustração e circuito sob controle da gestão farmacopornográfica. O que importa, segundo ela, não é a produção de prazer, mas o controle do mecanismo cíclico excitação-frustração-excitação e de sua infinita repetição, que é justamente o motor do farmacopornismo em escala global. Está em cena, então, uma cooperação masturbatória entre corpos insatisfeitos, insaciáveis – que buscam hormônios, cocaína, pênis, vaginas, ânus – e novas formas de produção da repetição do mecanismo na contemporaneidade.

O legado de Beatriz Preciado com esta obra vai além de uma contribuição estilística e artística personalizada em estilo literário. Pode ser considerado uma nova luz-guia nas discussões acerca dos estudos de gênero e das produções das subjetividades dos (pós)corpos contemporâneos. Merece ser apreciado.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.         [ Links ]

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1. 6ª ed. São Paulo, Ed. 34, 2009 [Tradução Aurélio Neto e Célia Costa]         [ Links ].

FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. In: FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 8ª ed. Rio de Janeiro, Vozes, 1991, pp.173-199.         [ Links ]

HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. In: HARAWAY, D. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York, Routledge, 1991, pp.149-181.         [ Links ]

Notas

1 Conceito de Gilles Deleuze e Feliz Guattari (2009), o rizoma “conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza (…). Põe em jogo regime de signos muito diferentes e não conduz ao uno, nem ao múltiplo (…). Não se compõe de unidades, mas de dimensões (ou direções movediças); não tem início, nem fim, mas sempre transborda; é feito somente de linhas: de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linhas de fuga ou de desterritorialização, como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (Deleuze e Guattari, 2009:32 e ss).
2 É clara a influência de Deleuze e Guattari (2009) nos escritos de Preciado: ela faz o que os autores chamam de “micropolítica” no campo social.
3 Referência a “O Panoptismo” (Foucault, 1991, cap. 3, 3ª parte).
4 Aqui cabe destacar os capítulos mais personalistas acerca da administração hormonal: “Tu Muerte” (cap. 1:19-24) e “Testogel” (cap. 3:47-56).
5 Donna Haraway traz a discussão sobre a figura do “cyborg”, ou seja, do ser que descende das implosões de sujeitos e objetos, do natural e do artificial (Haraway, 1991).
6 Surgem as nomenclaturas bio e trans, como estatutos de gênero tecnicamente produzidos. Por um lado, os bio-homens e as bio-mulheres são aqueles que se identificaram com o sexo que lhes foi designado no nascimento e, por outro, os trans-homens e as trans-mulheres são os que contestaram tal designação e tentaram modificá-la com ajuda de procedimentos externos (técnicos, prostéticos, performativos e/ou legais). Tais designações não são melhores ou piores umas em relação às outras. Apenas dão conta do abismo que separa as pessoas bio das pessoas trans. Tal distinção, para a autora, tornar-se-á ultrapassada no futuro (Preciado, 2008:84 e ss).
7 Mais precisamente em “Micropolíticas de Gênero en la Era Farmacopornográfica. Experimentación, intoxicación voluntaria, mutación” (cap. 12:233-286).

CAMARGO, Wagner Xavier de.- Doutorando em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em estágio sanduíche no Instituto Latinoamericano da “Freie Univesität von Berlin”, Alemanha. Bolsista CAPES. wxcamargo@gmail.com.
Carmen Silvia de Moraes Rial – Doutora e professora dos departamentos de Antropologia e Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora CNPq. E-mail: carmensilviarial@gmail.com.

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Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature – FERREIRA-PINTO (REF)

FERREIRA-PINTO, Cristina. Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature. West Lafayette: Purdue University Press, 2004. 208 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. Sexo-política na literatura brasileira por mulheres. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

É de fôlego o estudo sobre narrativas escritas por mulheres de Cristina Ferreira-Pinto, seu mais recente trabalho depois do marcante O “Bildungsroman” feminino: quatro exemplos brasileiros (1990). No estudo, a autora enfoca a resposta contraideológica de escritoras. Enfatiza sua contestação em relação aos mitos femininos do cânone literário brasileiro através dos quais o discurso e o desejo masculinista terminaram por desfigurar e silenciar as mulheres. Precedido por uma abrangente crolonogia da atuação da mulher na sociedade brasileira e situação da produção literária de escritoras de 1752 a 2000, o livro é composto de uma introdução, seis capítulos e conclusão. Com trabalhos selecionados de escritoras várias, como Gilka Machado (1893-1980), Lygia Fagundes Telles (1923- ), Helena Parente Cunha (1930- ), Marina Colasanti (1937- ), Lya Luft (1938- ), Sônia Coutinho (1939- ), Myriam Campello (1948- ), Márcia Denser (1949- ) e Marilene Felinto (1957- ), sem deixar de passar pelo crivo de um pertinente elenco de teóricas feministas, o livro trata de questões de gênero no âmbito da individualidade. O âmago do estudo localiza nos discursos da sexualidade e do desejo das mulheres o delinear de sua identidade, que se plasma como literatura.

Na introdução, “A literatura das mulheres como discurso contra-ideológico”, Ferreira-Pinto afirma que há de fato uma tradição de literatura escrita por mulheres, ainda que em maior volume a partir do século XIX e como profissão estabelecida apenas no século XX, embora escritoras que fizeram nome e carreira na linhagem literária brasileira a partir do século XX apareçam como “exceções isoladas e esporádicas”. Ferreira-Pinto credita a Zahidé Lupinacci Muzart e seu imprescíndivel projeto de recuperação da obra de escritoras dos séculos XIX e anteriores a recuperação de tal tradição.

Anterior aos anos 1960, quando a produção literária da mulher se torna contundente na oposição ao patriarcalismo cultural brasileiro, ou “discurso dominate”, a autora assinala, portanto, que já existiam obras que procuravam interferir na hegemonia dos mitos que aprisionaram as mulheres em papéis sociais, papéis estes que limitaram seu desejo em identidades e experiências enfatizadoras apenas da beleza, da juventude e da delicadeza como os atributos definidores da feminilidade. A autora propõe expor como a linguagem poética dos textos que analisa mostra-se expressão tanto de uma realidade que se altera como do discurso sobre esta.

Em “Corpo de mulher, desejo de homem”, do Capítulo 1, a autora ilustra, com a produção literária escrita por homens, aspectos do “discurso dominante” ao qual se refere e o qual parece nortear a resposta das escritoras que analisa. Munida de conhecimento crítico nacional, com Antonio Candido, Dante Moreira Leite e Affonso Romano de Sant’Anna, e internacional, com Doris Sommer, Terry Eagleton, Michel Foucault e David Foster, para citar uns poucos, Ferreira-Pinto expõe celebrados mitos da literatura romântica e realista através de análises aptas. Mostra, por exemplo, como Iracema reúne em si a carga de papéis femininos como Eva, Maria e Pietá, com suas conotações de sensualidade e submissão, porém etnicamente marcada por sua origem indígena. Nas tramas de Memórias de um sargento de milícias, a autora apresenta a ideologia heterossexual voltada ao casamento e à reprodução como normas e o comportamento desviante da personagem Vidinha – mulata sensual – como a baliza que sugere a ordem social como tal. Dialogando com a celebrada análise de Antonio Candido, que nos deu a “Dialética da malandragem” entre a ordem e a desordem, Ferreira-Pinto sugere a dialética que, de um lado, coloca a mulher doméstica e, de outro, a mulher pública, dicotomia esta formada por uma dialética conceitual entre raça e sexualidade que, enfim, nos legou aquilo que a autora ironicamente denomina como o mito da “mulata cordial”. Rita Baiana d’O cortiço, claro, é mencionada como outro exemplo desse tipo, ao lado de outros estereótipos que servem de contraponto entre si: a lésbica Pombinha, a prostituta Leónie, as ninfomaníacas Estela e Leocádia, as reprodutoras Augusta e Piedade. Finalmente, considera as personagens de Machado de Assis aparentes ideais de feminilidade, mas de uma complexidade ímpar na literatura da época. As personagens, ainda assim, em seu julgamento, seguem os ditames das normas da vida doméstica, dentro do casamento e da vida urbana burguesa cujo alvo é a ascensão social.

No Capítulo 2, Ferreira-Pinto inicia o contra-discurso das mulheres, como propõe o título “Escritoras brasileiras: a busca de um discurso erótico”. Após uma introdução que discute os trabalhos de escritoras do século XIX como pano de fundo, a autora mostra que Gilka Machado supera o comportamento “subserviente ao desejo masculino”, pois expressa, em seu texto, os anseios do corpo da mulher. Ferreira-Pinto comenta que grande parte da crítica que se debruça sobre os estudos de gênero na literatura considera a obra de Gilka Machado como aquela que inaugura a Erótica que a autora focaliza entre as escritoras selecionadas para seu estudo. Usando elementos teóricos de críticas como Hélène Cixous, Luce Irigaray e Teresa de Lauretis, a autora dá vivacidade à temática da escritora carioca e nos revela uma criadora forte e contemporânea. Uma discussão que procura situar o discurso erótico feminino – distinguindo-o do texto pornográfico e do eroticismo pronunciado por personagens mulheres em textos escritos por homens, que terminam por endossar a “ideologia dominante masculinista” – é seguida da análise do erotismo como uma forma de reestruturar a identidade das protagonistas em A mulher no espelho, de Helena Parente Cunha, e em As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. A autora procede a uma análise minuciosa desses textos, tendo como ponto de vista fundamental o fato de que os trabalhos opõem a pulsão do desejo do macho adulto branco, que por muito tempo embasou as relações sociais no Brasil, ao menos no âmbito das elites.

As obras Quarto fechado, de Lya Luft, e As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, são enfocadas no Capítulo 3, “A representação do corpo feminino e o desejo: o gótico, o fantástico e o grotesco”. Nesse capítulo, Ferreira-Pinto envereda por uma visão inovadora das obras, quando considera os gêneros gótico, fantástico e grotesco como uma estratégia através da qual as escritoras comunicam o constrangimento e o deslocamento das protagonistas diante do ambiente patriarcal que as cerca e ainda cerceia. Outro tema crescentemente relevante, mas explorado há apenas poucas décadas, especialmente como atributo crucial da feminilidade, compõe o Capítulo 4, “O conto de Sônia Coutinho: o envelhecimento e o corpo da mulher”. A autora do estudo mostra como Coutinho expressa a decepção da protagonista quando esta verifica, surpresa, sua inabilidade de seduzir homens, quando percebe que os cosméticos não trarão de volta a beleza perdida com os anos e o fato consequente de que, para a mulher, o tornar-se idosa significa um progressivo descrédito como pessoa por causa da perda gradual de seu apelo sexual, também por não mais possuir a capacidade reprodutora. Ao mesmo tempo, o texto de Coutinho sugere que a fruição plena da sexualidade da mulher é possível apenas se ela transcender os mitos de feminilidade apresentados a ela como o curso natural das coisas pelo “discurso dominante”. Só assim pode a mulher se desvencilhar dos parâmetros de adequação, segundo os quais teria que “agir de acordo com sua idade”, e então ser livre para viver, sem as imposições que limitam sua existência a papéis prescritos por outrem.

No Capítulo 5, “O conto brasileiro contemporâneo escrito por mulheres: o desejo lésbico”, após oferecer um histórico que mostra o modo como a homossexualidade masculina e a feminina foram constituídas pelo discurso das instituições normativas, estando entre estas principalmente a Igreja, a autora mostra como diferentes teóricos (David Foster, Gloria Anzaldúa, Ronaldo Vainfas, Luís Mott, entre outros) trataram o assunto e como os temas queer foram expressos na literatura brasileira do século XX. Trabalhos de Edla Van Steen, Sônia Coutinho, Lygia Fagundes Telles, Myriam Campello e Márcia Denser são analisados tendo-se em conta a diversidade com que tratam do desejo lésbico, um espaço de transgressão e agência da mulher que desse modo se afirma livre como sujeito.

“Os trabalhos de Márcia Denser e Marina Colasanti: a agência feminina e a heterossexualidade” mostra que, mesmo apresentando protagonistas heterossexuais, as escritoras que o Capítulo 6 analisa assumem, muita vez, uma posição de confronto visà-vis ao patriarcalismo, o que as alinha politicamente com as escritoras que se expressam através do desejo lésbico. Com sua “ficção sexual”, para além da dicotomia entre erótico e pornográfico, Denser, segundo a autora, desestabiliza as convenções de gênero, assim promovendo a afirmação da sexualidade da protagonista, que demonstra um grande apetite sexual, o que não é comumente caracterizado como atributo de mulher “de bem” na literatura. Colasanti, por seu turno, se expressa através de um “erotismo do corpo” que afirma a mulher como tal – sem o costumeiro pejo com que somos ensinadas a disfarçar funções orgânicas. Ferreira-Pinto observa que, não se atendo ao lirismo e usando termos considerados de baixo calão, Colasanti se apodera das palavras usualmente pronunciadas pelos homens e, paradoxalmente, afirma a agência da mulher.

Na Conclusão, “Escritoras brasileiras no novo milênio”, Ferreira-Pinto reitera sua observação de que, sendo a sexualidade aquilo que define a identidade da pessoa, o desejo (erótico, homossexual, heterossexual etc.), que necessariamente expressa tal sexualidade, aborda de frente o princípio criativo das escritoras. Desse modo, o desejo que se faz texto expressa a identidade ou posição da escritora – poderíamos denominar tal posicionamento sua sexopolítica -, seguindo a vereda aberta pelo importante estudo de Kate Millett, o clássico Sexual Politics?

Como fica claro, este é um estudo que, embora panorâmico, utiliza um bom arsenal teórico para examinar algumas de nossas melhores escritoras. Em inglês, é ao mesmo tempo uma imprescindível apresentação das escritoras no âmbito de Women’s Studies na literatura brasileira e um estudo bastante útil nas salas de aula no campo Brazilian Studies dos Estados Unidos, onde tais análises são escassas, mas muito necessárias. No sentido de instigar Brazilianistas ainda mais em relação ao assunto, no entanto, teria sido interessante ver esmiuçadas algumas generalizações no decorrer do texto (“o discurso dominante masculinista”, “a mulher”, “a sociedade brasileira patriarcal e eurocêntrica”, “algumas mudanças sociais e políticas importantes [a partir de 1970]” etc.) e ter obtido um tratamento mais complexo à relação, central no estudo, entre sexualidade, desejo, identidade e formação discursiva, pontos que, embora sejam apresentados como subentendidos a estudiosos do assunto, por isso mesmo detêm, na chance única que a publicação do livro apresenta, a consideração de novos prismas na revisitação de velhos problemas.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

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Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher | Fabíola Rohden

A construção social da sexualidade vem sendo inventariada pelos mais diversos campos de conhecimento, mas, sem dúvida, é no discurso médico que vai encontrar um dos seus filões mais ricos de análise. Na virada do século XIX para o XX, a onda transformadora advinda da aceleração do processo urbano industrial, entre as suas inúmeras conseqüências, propiciou o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a elaboração do ideário feminista, descortinando-se, assim, novas possibilidades de relacionamento entre os gêneros.

Nesse cenário, tão profundamente marcado pelos ventos da mudança, impunha-se a necessidade de repensar e demarcar os papéis sociais. Leia Mais

La agonia del deseo: Antropología del lupanar – PAGÉS LARRAYA (RCA)

PAGÉS LARRAYA, Fernando. La agonia del deseo: Antropología del lupanar. Publicaciones del Seminario de Investigaciones sobre Antropología Psiquiátrica, Nueva Serie, Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, publicación n.25, Año VII, Buenos Aires, 1996. Resenha de: CÁRDENAS, Eduardo Medina. Revista Chilena de Antropologia, n.14, p.165-169, 1997/1998.

Eduardo Medina Cárdenas Acesso apenas pelo link original

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