Capital et idéologie | Thomas Piketty

PIKETTY, Thomas. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A perspectiva histórica das ideologias das desigualdades no recente livro de Thomas Piketty. Revista de Teoria da História, v.23, n.2, p.349-357, 2020.

Flávio Dantas Martins – Universidade Federal do Oeste da Bahia. Barreiras, Bahia, Brasil. Email: flaviusdantas@gmail.com.

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Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450 – BAXANDALL (Ph)

BAXANDALL, Micheal. Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450. Tradução Maurice Brock. Paris: Seuil, 2013. Resenha de: CARDIM, Leandro Neves. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 1, p.235-249, jan./jun., 2016.

A versão mais próxima para o português do título deste livro de Micheal Baxandall (1933-2008) escrito originalmente em inglês é: Giotto e os oradores. Os humanistas observadores da pintura na Itália e a descoberta da composição pictórica 1350- 1450. Sua primeira edição de 1971 é ilustrada e vem acompanhada de um aparato crítico extraordinário. A última tradução para o francês é a que tomaremos por referência nesta resenha. Mas é preciso dizer que esta tradução, apesar de seu cuidado linguístico, peca principalmente por dois motivos: ela não traz nenhuma das dezesseis ilustrações, tão importantes para o texto de Baxandall, nem os vinte excertos de textos em latim e em grego de alguns dos autores trabalhados no corpo do livro. Supressão injustificável pratica e teoricamente: na prática, tanto as imagens quanto os textos poderiam ser consultados como fontes de pesquisa; teoricamente, porque faz parte da tese do livro mostrar a relação entre tais imagens e textos. Quanto às ideias veiculadas pelo livro é preciso chamar a atenção, desde seu longo título, para o fato de que o autor se propõe analisar não só a obra dos primeiros humanistas que foram observadores da pintura, ou melhor, aquilo que eles disseram sobre a pintura, mas também, e este é o ponto alto do livro, analisar a descoberta propriamente humanista do conceito de composição.

Baxandall toma todo o cuidado de relacionar de modo muito estreito as regras da figuração pictórica com a arte da retórica, e é isto que tentaremos tornar sensível nesta resenha; mas veremos, além disto, que em um mesmo movimento, o autor rastreia a historicidade do conceito de composição com o objetivo de marcar momentos de continuidade e de ruptura relativamente a seu uso vigente no início do Renascimento. Quanto à referência a Giotto e aos oradores, ela deve ser compreendida como o horizonte do livro. Giotto e os oradores delineiam o índice de um problema de fundo que envolve as delicadas e controversas relações que se estabeleceram historicamente entre as duas disciplinas em questão: a pintura e a poesia. O leitor não deve procurar ali alguma espécie de discurso sobre o alcance da pintura de Giotto, não se trata de um livro sobre a história da pintura de Giotto e de suas relações com os oradores, exímios usuários da retórica antiga. Porém, é possível dizer que o livro nos conduz de tal modo através de várias considerações sobre Giotto entre os primeiros humanistas que, no limite, talvez seja possível depreender dali um debate sobre a história da arte no sentido estrito da palavra.

O livro analisa três gerações de humanistas para mostrar que a palavra e a imagem estão emaranhadas na produção de uma mesma estrutura retórica: a composição de uma beleza ordenada. Baxandall aborda “dois problemas conexos”: o primeiro e mais geral é o de saber “o quê, nas preferências visuais, procede da linguagem”, o segundo e mais local diz respeito à “contribuição mais interessante dos humanistas à nossa apreensão da pintura”: o conceito de composição. Em primeiro lugar, Baxandall insiste que “a gramática e a retórica em uso em uma língua dada inflecte substancialmente a maneira com a qual se descreve as imagens” (BAXANDALL, 2013, 21). Isto é compreensível porque a referência à gramática e à retórica determina o tipo de atenção que os primeiros humanistas dirigem à pintura. É justamente isto que põe em relevo o interesse de Baxandall pelo latim humanista, detentor de características formais bem acentuadas. Trata-se de colocar em evidência “as condições linguísticas e literárias nas quais os humanistas operavam quando eles formulavam considerações sobre a pintura” (BAXANDALL, 2013, 21). Em segundo lugar, Baxandall afirma que a ideia de que um quadro tem uma “composição” tem uma dupla fonte: ela foi sugerida por uma categoria humanista e pela própria situação da pintura em uma determinada época. O conceito em questão nasce de um conjunto de problemas e de uma determinada configuração linguística que polariza a atenção do autor para aquelas relações que “unem os hábitos da linguagem à atenção visual”. É neste contexto que a tese do livro deve saltar aos nossos olhos: “é a língua latina que estrutura o ponto de vista humanista” (BAXANDALL, 2013, 22).

As condições linguísticas e literárias devem ser circunscritas em torno do interesse comum dos primeiros humanistas pela ordem retórica e pelo latim neoclássico. A retórica era o centro de suas principais competências e o latim neoclássico era um interesse comum a todos os humanistas: “a arte dos humanistas era a gramática e a retórica” (BAXANDALL, 2013, 26). A situação dos humanistas ao formularem seus discursos sobre a pintura era ao mesmo tempo prática e linguística: eles eram secretários, professores, historiógrafos, e enquanto tais seus campos de atividades intelectuais eram bem específicos. Ao nascerem é óbvio que eles aprendiam sua língua natal, mas enquanto humanistas eles conversavam entre si com uma “língua literária que não estava mais em uso já fazia mil anos”. Esses homens também se esforçavam para diferenciar este latim neoclássico das formas do latim medieval que já estavam degradadas, mas que ainda eram usadas pela Igreja e pelos homens da lei. Conviviam, assim, uma “língua cultural de elite” e uma “língua vernácula e seu uso culto”. Ora, comparado com o latim medieval, o latim neoclássico era muito mais pródigo em discriminações internas, e mesmo seus recursos sintáxicos eram mais ricos do que os das línguas vernáculas da época. Essas línguas, como por exemplo o italiano, não concorriam com o latim neoclássico, o qual era um “complemento especializado” delas. Os primeiros humanistas estavam imersos em uma paisagem cultural e linguística bem peculiar: muitas versões do latim pós-clássico, leituras muito diferentes daquelas que poderíamos imaginar (enciclopédias medievais, retóricas da antiguidade tardia e traduções latinas dos tratados apócrifos de Aristóteles), uso da retórica grega e romana ao mesmo tempo com intenção de persuadir e de ensinar, um público determinado ao qual o orador se referia (o orador pronunciava discursos em casamentos, enterros, investiduras de magistrados, aulas inaugurais). Sob este pano de fundo é possível dizer que a novidade dos primeiros humanistas consiste na “firme resolução de se reapropriar e de praticar a língua de Cícero: eles se veem nesta tarefa com uma energia e um ardor inteiramente novos” (BAXANDALL, 2013, 31). Para nós, esta situação é estranha: qual interesse haveria em fazer um “pastiche de Cícero”? Baxandall nos mostra que “o que há de fundamental e heroico nos primeiros humanistas é o pastiche de Cícero: eles colocavam sua melhor energia em reencontrar estruturas linguísticas perdidas fazia mil anos” (BAXANDALL, 2013, 32). A contribuição destes homens para a cultura pictórica consiste em que eles estudaram os hábitos linguísticos da própria pintura. Para além de um simples uso de palavras e de sintaxe latinas, é preciso ver aí um “comportamento verbal altamente formalizado se aplicar à mais sensível das experiências visuais quase sem que se produza interferências” (BAXANDALL, 2013, 35).

Conscientes do fato de que o latim discriminava melhor certas regiões da experiência do que a língua vernácula, os primeiros humanistas aprenderam a manejar certos grupos de palavras que os levaram a modificar suas percepções da arte e dos artistas. Vem daí o expurgo sistemático e consciente do vocabulário degradado. Vem daí, também, que rastrear esse vocabulário não seja tão difícil. Mas vem daí, enfim, que não seja fácil rastrear as mudanças de sentido que muitas palavras sofreram. A mudança no sentido das palavras não se deixa apreender por aquilo que elas designam ou por aquilo a que se referem. A resposta de Baxandall é clara: “o uso faz o sentido”. Graças a isto é que em seus pastiches de Cícero os humanistas reconstruíram “redes de articulação do léxico” (BAXANDALL, 2013, 44). A propósito, é no interior destas redes que encontram-se as metáforas intersensoriais, as quais remetem o pesquisador à terminologia da retórica clássica que repousa sobre metáforas saídas da experiência visual. É deste recurso antigo sistemático às metáforas ― seja como procedimento estabelecido, seja como bagagem de expressões consagradas ―, é em contraste com este recurso que a novidade de Alberti ganhará relevo.

Os primeiros humanistas atribuíam “importância suprema” à frase periódica: o período ― “frase combinando vários pensamentos e afirmações em várias proposições equilibradas” ―, era o “paradigma da grande frase neoclássica” (BAXANDALL, 2013, 53). Havia aí uma forma artística fundamental que, no início do Renascimento, foi o modelo da composição artística em geral. Assim, para que a frase periódica oferecesse suas “delicadas combinações de elementos diversos”, era preciso, da parte de quem a manejava, um vasto conhecimento do campo semântico, da flexão das palavras, um domínio do vocabulário e da gramática clássica. O que atraía os primeiros humanistas no estilo periódico era, enfim, o uso das “antíteses” e dos “paralelos”.

Até mesmo Alberti usa a frase periódica, a qual opera um arranjo simétrico e equilibrado das palavras, das expressões, das proporções, e mesmo de noções abstratas.

Dos dois métodos que a retórica clássica dispunha para inventar o conteúdo de um discurso (o método especulativo e o método indutivo), foi o método indutivo que exerceu maior influência sobre os humanistas, afinal, eles procuravam algo que tivesse influência sobre suas próprias vidas e práticas literárias. Enquanto o método especulativo só ensinava argumentar em um tribunal, o indutivo ensinava “levar uma vida feliz ou ter um estilo elegante em prosa”. A comparação, modo de operar do método indutivo, tinha um duplo estatuto: funcionava como argumento e como ornamento, funcionando, neste caso, como processo de estilo.

Eles praticavam tanto esses exercícios comparativos que tais exercícios acabaram se tornando um hábito: a comparação está na origem seja de suas observações, seja de suas noções relativas às artes visuais. A natureza de seus discursos exigia comparações extraídas da pintura e da escultura, eles agiam assim baseando-se em precedentes clássicos em que Cícero e muitos outros autores clássicos faziam comparações entre o estilo literário e as artes figurativas. Os humanistas “se remetiam ao material clássico e modificavam, transpunham ou renovavam comparações já empregadas por Cícero e outros autores” (BAXANDALL, 2013, 73). Assim, as anedotas, a mitologia da história da arte, seus lugares comuns, lhes serviam de material, não para fazer considerações diretas sobre a pintura, mas para uso em benefício próprio em seus textos e vidas: “o uso de comprar a literatura à pintura se tornou um jogo humanista” (BAXANDALL, 2013, 78).

O tipo de uso da linguagem que é feito entre os humanistas pode ser delineado desde que notemos que se trata, precisamente, de observações humanistas sobre a pintura.

No elogio ou na censura que eles faziam de uma obra de arte pressupunha-se que o ouvinte não conhecesse a obra, mas isto deveria forçar o orador a possuir o máximo de habilidade usando, então, o registro “florido”: “alguém agencia pigmentos sobre um suporte, e, vendo isto, outro alguém se esforça para encontrar palavras adequadas ao interesse da coisa” (BAXANDALL, 2013, 87). Esta atividade “árdua” e “excêntrica” já era validada pela antiguidade, e como já existiam no latim termos que evocavam categorias visuais, o caso da pintura era ainda mais interessante porque se aprendia com ela “a distinguir quais registros ou quais sensações” correspondiam a estes termos: “o aprendizado de uma língua tão sutil reorganizou suas capacidades de atenção para as obras de arte” (BAXANDALL, 2013, 92). O que era comum aos humanistas não era uma simples questão do gosto, mas uma “comum experiência de uma língua, a posse comum de um sistema de conceitos que permitiam focalizar a atenção” (BAXANDALL, 2013, 93). Esta é a bagagem comum, os elementos constitutivos do ponto de vista humanista que os diferencia do ponto de vista vernáculo.

Baxandall começa a rastrear as observações humanistas sobre a pintura a partir de Francesco Petrarca (1304-1374): ele “recolocou em uso uma forma específica de referência generalizada à pintura e à escultura” (BAXANDALL, 2013, 99). Petrarca trabalha de tal modo com uma “série de grandes oposições” que ele as faz valer como fundamento de sua visão humanista sobre a pintura e a escultura. É por aqui que encontramos os primeiros traços daquelas comparações retóricas. Os primeiros humanistas exploravam as fontes das artes antigas como repertórios de analogias e se inspiravam nos trabalhos plásticos que possuíam duas qualidades necessárias para uma boa comparação: a concretude e a visibilidade.

Assim, os detalhes que serviram para Petrarca elucidar sua arte acabaram, por fim, se tornando um lugar comum obrigatório entre seus sucessores.

Filipo Villani (1325-1407) forjou o mais consistente e durador esquema do progresso das artes. Ele interpreta sua época como decadente e vai buscar em Dante e seus contemporâneos o modelo dos valores necessários para uma renovação da cultura. Villani adota um esquema para interpretar a evolução da pintura no século XIV. O esquema que ele extrai de Dante prescreve o seguinte: primeiro veio Cimabue que tirou a pintura da decadência, em seguida, Giotto, que completou a renovação, enfim, os sucessores de Giotto. Eis o esquema: profeta/salvador/apóstolo. O interesse desta sequência está nos tipos de diferenciações que é possível daí depreender. Ele ainda projeta sobre Giotto não só o lugar ocupado por Dante na história, mas também o lugar que ocupava Zeuxis no esquema de Plínio. Dito de outro modo: Zeuxis está para Apolodoro, assim como Cimabue está para Giotto. Baxandall acredita que este esquema até certo ponto ainda está presente entre nós. Seu interesse está no modo como articula capítulos obscuros da história da arte e no modo como trabalha de forma concisa com diferenciações variadas (prioridade, qualidade, estatura, registro). Seu modo claro de estruturação faz com que ele se baste a si mesmo. Esta é a razão da dificuldade que os humanistas do século XV tiveram para encontrar outro esquema para prolongar o esquema de Villani.

Os humanistas se nutriram não só da literatura latina, mas também da grega. Baxandall mostra que a partir de 1400 as bases literárias se alargaram tanto que, em vinte e cinco anos, suas novas e variadas fontes acabaram influenciando muito suas maneiras de falar sobre a pintura e a escultura.

Precisamente aí encontramos Manuel Chrysoloras (1355-1415), “figura intermediária” relativamente à cultura grega. Sua “marca” foi a estimulação do interesse por essa cultura, a qual deveria “tornar-se o elemento mais dinâmico do humanismo do século XV na Itália” (BAXANDALL, 2013, 137). Uma carta de Chrysoloras ao Papa teve muito alcance na crítica de arte humanista, nela ele recorre a “diversos registros descritivos” e “enumerações generalizadas” para comparar Roma à Constantinopla. Em uma outra carta, e talvez esteja aí sua maior contribuição, ele dá um “alcance geral e uma formulação mais ou menos aristotélica para alguns valores bem precisos: vida dos detalhes, variedade, intensidade de expressividade emocional” (BAXANDALL, 2013, 142). Aristóteles e Chrysoloras situam a fonte de prazer da representação visual no ato de reconhecimento do espectador, mas diferentemente de Aristóteles, Chrysoloras tem grande interesse pela expressividade e, particularmente, pelo artista. Lembremos que os humanistas frequentaram seus contemporâneos bizantinos em Constantinopla. Assim, os humanistas aprenderam a praticar muitos exercícios retóricos separadamente, ou melhor, “como gêneros independentes, em composições realizadas por si mesmas com muita pesquisa e virtuosidade”: “os meios tinham se tornado fins” (BAXANDALL, 2013, 145). Esta é a fonte dos exercícios de descrições detalhadas ou de écfrases como “obras inteiramente à parte”. Essas écfrases possuíam vivacidade visual, clareza, elas tinham o dom de trazer aos olhos o que descreviam. Utilizar os olhos ao dirigir-se aos ouvidos, lançar mão de uma linguagem que esteja de acordo com o objeto descrito, possuir desenvoltura nesta descrição, saber que a écfrase nunca é neutra, combinar noções críticas com procedimentos descritivos habituais já presentes na écfrase, enfim, esses são alguns dos procedimentos determinantes do modo dos humanistas elaborarem seus discursos.

Aluno de Chrysoloras, Guarino de Verona (1370-1460) foi um dos que aprenderam grego para ler Luciano e Arriano, ao passo que os primeiros humanistas queriam ler Homero.

Guarino transmite os valores da écfrase bizantina e aclimata os trabalhos de seu mestre. Guarino exalta a literatura em detrimento das outras artes e argumenta que a pintura não mostra as qualidades morais, mas sim as aparências; ela agrada mais pela destreza do artista do que pela importância do tema; ela não é durável como um livro. Ao comparar a pintura com a literatura, Baxandall nos mostra que Guarino indica os “limites da pintura” com dois argumentos: os quadros são “pouco aptos para veicular o renome pessoal” e “não são cômodos para transportar”. Guarino e seus alunos trabalharam muito com este gênero de escrita em torno da obra de Pisanello: seus escritos, particularmente os de Guarino, reúnem em suas descrições o valor retórico que a variedade da pintura pode ter, os atrativos e efeitos da écfrase, e as categorias críticas de Chrysoloras. Baxandall vê aí uma “combinação muito eficaz” na qual encontramos uma concepção de composição que será recusada por Alberti: sua “nova concepção” de composição só ganha relevo sobre o fundo da “concatenação das proposições de Chrysoloras, dos valores ecfráticos e da arte de Pisanello” (BAXANDALL, 2013, 161).

Analogia entre pintura e literatura, esquema histórico, práticas e valores da écfrase: falta acrescentar que Bartolomeo Fazio (1400-1457), aluno de Guarino, traz um duplo aporte que deve aparecer neste rastreamento. Por um lado, Fazio introduz uma associação entre personalidades notáveis, pintores e escultores; por outro, ele retoma dois lugares comuns sobre a relação entre as duas artes: a afinidade que Filostrato o Jovem via entre a pintura e a poesia (que nos remete à exaltação da expressão), e a compreensão da pintura como poesia silenciosa tal como ela chega até nós vindo de Simônides. Ele aprofunda tudo isto no sentido de explorar a expressão do caráter e da emoção. Enfim, só compreenderemos o fato de que tanto a pintura quanto a poesia “têm em comum esta função expressiva”, se reencontrarmos, por trás destas ideias, os rastros de Horácio quando elabora metáforas retóricas que pretendem tocar o coração dos ouvintes. Só assim a superioridade da pintura pode ser reconhecida. Mas se é verdade que as convenções do neoclassicismo eram corretas, é verdade, também, que, segundo Baxandall, elas desviaram os humanistas de empreitadas mais profundas.

Vários caminhos poderiam ter sido seguidos. Aí encontramos Lorenzo Valla (1407-1457) com sua teoria da percepção sensorial e seu “novo esquema” ou “modelo” para pensar a história da arte italiana. Segundo ele, o progresso das artes deve ser visto como um “efeito das relações sociais”: em princípio, “um indivíduo inova”, em seguida, “sua inovação é tornada acessível à seus confrades, e, em troca, ele tem acesso à totalidade de suas invenções” (BAXANDALL, 2013, 192). Enfim, o impasse da crítica humanista não é um índice de mediocridade: o ponto está em que as convenções dos humanistas “não forneciam a um Lorenzo Valla ― ou, em outro sentido, a um Léon Battista Alberti ―, um quadro que encorajasse suas reflexões” (BAXANDALL, 2013, 193).

O tratado de pintura escrito em latim por Alberti (1404-1472) ― De pictura ―, se distingue de todos os outros textos da época pela “seriedade da iniciativa”. A formação humanista de Alberti ainda incluía uma prática da pintura. É neste cruzamento que encontramos a noção de composição e o método de Alberti. Como compreender que mesmo sendo humanista Alberti não se comporte como um humanista? O traço principal que define o tratado de Alberti como um livro humanista deve ser procurado nas competências exigidas ao leitor. Peritos em analogias, os humanistas não elaboraram nenhuma teoria da pintura em quanto atividade intelectual relacionada com seus estudos.

Ao que tudo indica, não havia uma demanda urgente de um livro como o de Alberti, mas o lugar que ele ocupa era oferecido pelo próprio sistema de pensamento da época.

Seu público deveria possuir “três tipos de competências”: ler facilmente em latim neoclássico, dominar os Elementos de Euclides e um pouco de ótica geométrica, saber desenhar ou pintar. Ainda que seu leitor não seja um humanista tradicional, resta que a redação do livro era autorizada pela tradição: “o De pictura aparece como um manual que dava os meios de uma apreciação ativa da pintura a uma espécie inabitual de amadores humanistas informados”. O leitor de Alberti precisava ter simultaneamente um ponto de vista euclidiano e ciceroniano. Assim, a noção de composição surge como a “maneira com a qual um quadro deve ser organizado para que cada superfície plana e cada objeto traga sua contribuição ao efeito de conjunto” (BAXANDALL, 2013, 205-06).

O procedimento de Alberti é duplo: ele reconduz a pintura a uma “certa norma, feita de pertinência narrativa e de conveniência e economia” ― “norma amplamente giottesca” ―, mas que é uma “norma não-clássica”, já que visa a pertinência e a organização. Por um lado, as normas de Giotto, por outro, sua aplicação à relação das formas no interior do quadro. A “arma” de Alberti contra a tradição virtuosística da écfrase é a noção de composição. Esta noção já possuía o sentido geral de colocação em conjunto, e isto, de Vitrúvio à estética medieval. Mas Alberti ao mesmo tempo modifica o conceito anterior e introduz nele um sentido novo. A grande novidade de seu conceito de composição está na “interdependência das formas”. No momento em que ele enuncia isto, no momento em que inova, ele está, ao mesmo tempo, “mais condicionado do que nunca, em suas possibilidades de comunicação com seus leitores, por sua situação de humanista escrevendo para humanista”.

Alberti interpreta a obra de Giotto como se ela fosse uma “frase periódica de Cícero ou de Leonardo Bruni”! A eficácia deste modelo permite a Alberti submeter a pintura a uma análise funcional rigorosa que encontra, ao fim e ao cabo, seu complemento visual na obra de Mantegna, o qual adota o regime narrativo sugerido no tratado que, por sua vez, relaciona internamente termos com procedimentos e ingredientes tradicionais. O conceito de composição “emana de um conjunto de elementos e de disposições humanistas”, mas Alberti reúne esses elementos e disposições em sua própria formulação:

assumindo as imagens dos humanistas, ele inverte a analogia que ia da pintura à literatura em uma analogia indo da literatura à pintura, ele tem o atrevimento de reivindicar para a pintura uma organização análoga àquela das frases periódicas bem balanceadas nas quais eles tão freqüentemente formulavam esta famosa analogia (BAXANDALL, 2013, 213).

Alberti se afasta, então, dos humanistas que admiravam Pisanello e Guarino. Ele toma posição com relação a isto e seus termos sofrem “deslizamentos de sentidos” se comparados com os da tradição. Ele tem em mete uma pintura neogiottesca que preconiza a elaboração periódica! Para concluir, diríamos que o final do livro conduz a uma delimitação negativa de nosso ponto de vista, já que delimitado o ponto de vista humanista, há o olhar que, organizado segundo certas modalidades, é muito diferente do nosso. No Prefácio à edição italiana do livro resenhado, Baxandall esclarece um pouco mais o que está em questão em seu livro. Ele chama atenção para dois pontos que, vinte e três anos depois, ainda lhe parecem importantes: primeiramente, seu intento mais geral era “demonstrar que os nossos gostos no campo da arte visual são estreitamente ligados aos conceitos (e também, é óbvio, com as palavras) com os quais refletimos sobre as obras”, em seguida, e mais particularmente, ele fornecia as coordenadas daquilo que era “um gosto artístico ‘latino-humanístico'” (BAXANDALL, 1994, 15). Nem “determinismo linguístico”, nem “‘estrutura’ cultural”.

A sugestão de Baxandall ao leitor é a de seguir um dos fios disponíveis: a linguagem. Ela será capaz de nos fornecer, se não quisermos permanecer no nível da aglomeração causal de inclinações fragmentadas, os elementos necessários para a articulação.

Referências

BAXANDALL, Micheal. Giotto and the orators. Humanist observers of painting in Italy and the discovery of pictorial composition 1350-1450. Oxford: Claredon Press, 1971.

____. Giotto et les humanistes. La découverte de la composition en peinture 1350-1450. Tradução Maurice Brock.Paris: Seuil, 2013.

____. Giotto e gli umanisti. Gli umanisti osservatori dela pittura in Italia e la scoperta della composizione pittorica 1350-1450. Tradução Fabrizio Lollini. Prefácio Michael Baxandall. Milão: Jaca Book, 1994.

Leandro Neves Cardim – Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail:  leandronevescardim@gmail.com

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Le gouvernement de soi et des outres | Michel Foucault

A presente resenha, prestando uma homenagem ao lançamento do curso Le Gouvernement de Soi e des Autres, de Michel Foucault, na França, em 2008 (ainda sem tradução para o português), busca, inicialmente, localizar o problema da relação entre a verdade, o governo e a constituição do sujeito nos estudos de Michel Foucault, a partir das noções básicas de arqueologia e de genealogia. Busca também acompanhar brevemente a evolução do interesse de Foucault pelo tema do sujeito e das práticas de si, sempre referidas à noção de governo e de verdade. Busca também verificar as razões, no desenrolar da obra de Foucault, e em sua relação com a filosofia crítica de Kant para, assim, justificar a escolha de Foucault pela análise de um texto de Kant na primeira e na segunda hora de aula do Le Gouvernement de Soi e des Autres, fazendo ainda uma breve exposição dos demais assuntos tratados neste curso. Leia Mais

Pour une anthropologie de l’espace | Françoise Choay

Françoise Choay é bem conhecida do público brasileiro, por vários de seus livros e artigos já traduzidos para o português, como A regra e o modelo, ou a Alegoria do Patrimônio. Este livro, recém-publicado na França, não é exatamente uma obra nova, mas a coletânea de trabalhos esparsos e de difícil acesso, coligidos para a coleção La Couleur des Idées, da editora Seuil. Embora escritos ou publicados entre 1985 e 2005, seus textos apresentam uma incômoda atualidade.

A própria autora, em seu prefácio, chama a atenção para a heterogeneidade dos temas tratados, mas adverte, o que a leitura confirma, que seus textos possuem uma “dupla unidade de objeto e de tempo” (p. 7). Uma unidade de temas, pois para ela edifícios singulares e arquitetura, cidades e urbanismo, monumentos e conservação patrimonial, projetos icônicos e projeto político, são formas e práticas múltiplas de uma mesma e única atividade, “cujo desdobramento no espaço natural permite às sociedades humanas edificar o seu meio próprio” (pp. 7-8). E uma unidade temporal, não necessariamente de suas balizas cronológicas, que vão do século XV de Alberti ao século XXI do patrimônio mundial, mas do período no qual estão inseridos os textos escolhidos, que a autora afirma estar marcado por uma revolução eletro-telemática, ou informacional, de enorme impacto sobre a cidade, o urbanismo e o patrimônio.

O livro está dividido em quatro partes: História e Crítica, O Urbano, Patrimônio e Antropologia; ainda que sejamos advertidos que esta classificação é em parte arbitrária, e estes temas se entrecruzem constantemente. Justamente a antropologia, que dá título ao volume, dá uma unidade conceitual a estes textos aparentemente heterogêneos. A autora insiste nesta “função antropo-genética da espacialização” que, segundo ela, está totalmente ausente do debate sobre a arquitetura e o urbanismo, mesmo nos órgãos de administração ou na “praça pública”, unânimes em “celebrar o caráter lúdico e mediático de todas as ‘artes do espaço’, devotados “ao deus da moda e das finanças” (p. 10). Ou seja, Choay procura destacar o caráter não-natural da arquitetura e da produção de cidades, nos quais a política e a ação do homem são constitutivas, muito mais do que uma técnica pretensamente científica e neutra.

Sua primeira crítica é endereçada, então, a Le Corbusier, num texto que o coloca em perspectiva. Seu interesse não é tanto a obra de Le Corbusier, como um determinado aporte moderno sobre a arquitetura e a cidade, representada pelo arquiteto suíço. Tampouco são as carências técnicas de suas obras construídas, embora não deixe de apontá-las; mas demonstrar o que denomina “a dimensão retórica do funcionalismo corbusiano” (p. 16). Justamente porque esta dimensão retórica é o aspecto mais importante da obra do arquiteto, responsável pelo que Choay considera a sua incompreensão da condição antropológica da urbanização; ou mais claramente, a ausência de uma dimensão verdadeiramente urbana de seus projetos de metrópoles (p. 21). A dimensão polemista de seus textos, mais abundantes que sua obra construída, e sua recepção altamente midiática, seriam responsáveis pelo alcance de seu trabalho no pensamento urbanístico, a despeito de sua incompreensão da real dimensão da técnica na cidade, ao contrário dos esquecidos Ildefonso Cerdà, que Choay não se cansa de recuperar, e Gustavo Giovannoni, ou de Camillo Sitte, acusado pelo mesmo Jeanneret de passadista.

Apoiado numa ideologia progressista, Le Corbusier presume, assim, a universalidade das necessidades do homem, por isso a possibilidade de se construir as suas famosas “máquinas de morar” e “máquinas de habitar”; mais do que isso, “trata-se de conceber, para o homem universal, protótipos reprodutíveis de cidades e não mais apenas edifícios isolados” (p. 25). Trata-se de uma modernidade universalizante e “desumana”, destinada a um “homem teórico”, portanto inexistente (p. 36). Mas o arquiteto suíço não é o único representante desta ideologia progressista, composta de “imperativos categóricos, de paralogismos, de amálgamas terminológicos, de referências a saberes não dominados, de metáforas falaciosas”, cujos autores se instauram como “detentores e enunciadores da verdade arquitetônica e urbanística”; dos quais o mais talentoso, e midiático, é hoje Rem Koolhas (p. 115).

Falta-nos, para Choay, um discurso crítico e autocrítico, ou um “discurso epistemológico” sobre a cidade e a arquitetura, que ela encontra, por exemplo, em Alberti, daí a unidade de objeto de seu texto apesar da enorme distância temporal. Por isso a sua insistência no caráter não prescritivo do De Re Aedificatoria, cuja finalidade não é descrever os meios que permitam “realizar uma série de projetos concretos, nem de propor uma coleção de edifícios ideal-típicos, mas de fazer compreender a significação do ato construtivo” (p. 379). Tanto em Le Corbusier como em Alberti, a autora insiste em seu caráter retórico, que não significa obviamente apenas “discurso”, numa acepção de senso comum, mas de uma preceptiva do ato de construir, uma teoria da arquitetura e do urbanismo (p. 379). A diferença é que Alberti reconhece a dimensão antropológica da construção de cidades e da vida urbana.

Apesar de acusada, como Sitte e Giovannonni, de passadista, por sua defesa da cidade já construída e do patrimônio arquitetônico, que ela toma o cuidado de distinguir do patrimônio histórico, mais ligado aos “abusos de uma indústria mundializada e mundializante do patrimônio” (p. 319), e que não tem, necessariamente, um “estatuto antropológico” (p. 266), Choay chama a atenção para o que considera um grande anacronismo atual: denominar os espaços urbanos nos quais habitamos hoje pelo conceito arcaico de “cidade” (“Ville”: un archaïsme lexical, pp. 148-153). Deveríamos, assim, admitir o desaparecimento da cidade tradicional e interrogar-nos sobre “a natureza da urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se tornado o destino das sociedades ocidentais avançadas” (p. 167); o que denomina, baseada em Melvin Webber, de era pós-urbana, título de um dos artigos citados deste autor (p. 200).

Para não deixar dúvidas quanto ao caráter não-passadista de sua obra, chega a sugerir até mesmo algumas demolições vistas como necessárias: da Biblioteca Nacional (ou ironicamente a Très Grand Bibliothèque), por seu “programa anacrônico, concepção anti-funcional, implantação absurda, e custo de funcionamento insano”, a Ópera da Bastilha e o Ministério das Finanças, por sua “desestruturação sem apelo do tecido circundante” e inutilidade (p. 304). Claro que, assim como Alberti, seu texto não é prescritivo, nem um manual de construção de cidades. Suas sugestões polêmicas e impossíveis, nestes casos citados, são muito mais um destaque sobre a forma como determinadas intervenções urbanas não levam em conta um conhecimento antropológico da cidade e do patrimônio e uma profunda incompreensão da significação do ato construtivo, que ela identifica na obra de Alberti. Um debate premente para o qual, infelizmente, possui poucos interlocutores.

Amilcar Torrão Filho – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


CHOAY, Françoise. Pour une anthropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. Uma antropologia do espaço. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]