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Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adriana Stemy
Da mesma forma que Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria” passa a impressão de andar na rua registrando os acontecimentos de sua época como os “crimes de guerra”, as “cardinales bonitas” e as “caras de presidente”, Adrianna Setemy busca analisar os aspectos históricos que possam ter criado o cenário efervescente da década de 1960 no que diz respeito às mudanças de comportamento e a forma como as revistas se defrontaram com o problema da censura, em uma clara necessidade de compreender o tempo presente. Ao andar na rua, ler os jornais e conversar com pessoas, a autora reconhece que o Brasil se vê ameaçado novamente pela censura às artes e à liberdade de expressão. Os ataques ao Museu de Arte Moderna (MAM) por terem permitido a interação de uma criança com a performance de um homem nu e os projetos de lei apoiados no Programa Escola Sem Partido que buscam impor um fim à liberdade de cátedra com motivos de evitar uma “doutrinação ideológica” por parte dos professores sugere uma volta à censura, desta vez não pelas mãos de um regime militar, mas sim um estado que se pressupõe democrático.
A obra Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão parte da análise de como as revistas Manchete (Rio de Janeiro, 1952-2000) e Realidade (São Paulo, 1966-1976), de grande circulação durante os anos iniciais da ditadura militar, construíram uma revolução nos costumes da época, bem como a forma com que discutiram temas sobre comportamento e relacionamento que eram até então tabus morais. Seu recorte é o período entre 1964, início do regime militar brasileiro, e 1968, ano de promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que representou o fim das liberdades individuais no país.
O livro, publicado em 2019 pela Editora Letra e Voz, contém três capítulos: o primeiro capítulo traz um panorama sobre a indústria editorial no Brasil na década de 1960, enquanto o segundo capítulo busca explicar a trajetória de ambas revistas e o terceiro passa a analisar sua produção.
Com pós-graduação – Pós-doutorado (2015), doutorado (2013) e mestrado (2008) – em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade de Brasília (2005), a carreira acadêmica de Adrianna Cristina Lopes Setemy se pautou no estudo de temas relativos à censura e propaganda do Estado brasileiro no século XX, passando por temas como Direitos Humanos, memória social e violência política. O livro analisado faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida durante o mestrado em que a autora visa compreender a censura nos periódicos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.
A principal tese do livro é a de que mesmo o período ditatorial tendo sido um momento crítico da história política do Brasil, os anos 1960 foram responsáveis por uma revolução nos costumes. As revistas são mais do que veículos de comunicação ou reprodutores do pensamento de determinados grupos, mas revelam transformações sociais, bem como se colocam como agentes sociais das transformações. Setemy busca dar fim à ideia de que a sociedade foi vítima do Estado opressor e construir uma interpretação relacional entre Estado e sociedade, em que predomina, em certos momentos, mecanismos de negociação.
As revistas Manchete e Realidade revelaram-se rico material para compreender as representações, discussões e disputas dessa década de efervescência, tanto no que tange ao momento cultural quanto à indústria editorial. Ambas as revistas, salvo características particulares, se dedicaram à abordagem de temas comportamentais e de interesse geral que, muitas vezes, desagradaram o regime militar. A revista semanal Manchete, da Editora Bloch, entrou no mercado e se destacou por seu aspecto visual e pela preocupação com a produção e diagramação de imagens, voltada para um público de classe média urbana. Já a revista mensal Realidade, da Editora Abril, tinha como alvo um público de classe média urbana mais intelectualizado, preocupado com a profundidade com que os assuntos eram tratados. O sucesso de ambas as revistas, principalmente da revista Realidade, foi grande, mas durou pouco tempo, característica que a autora analisa frente a problemas internos referentes aos conselhos editoriais de cada empresa, mas também devido as rápidas mudanças no mercado editorial que buscava atender um público cada vez mais diversificado e que, portanto, escolheu por difundir um número maior de revistas especializadas em detrimento das de interesses gerais.
Ao analisar o conteúdo das revistas, Setemy divide sua análise em três eixos temáticos: a nova realidade feminina, as transformações da juventude e o conflito de gerações e os problemas educacionais. Os eixos temáticos apresentam o questionamento dos papéis sociais tradicionais e um abrandamento do formalismo que envolvia tanto a vida pública quando a vida privada no que diz respeito à sexualidade, ao papel dos gêneros, a relação entre pais e filhos etc. A organização social da década de 1960 se mostrava mais fluida, privilegiando o indivíduo no espaço público e dissolvendo funções tradicionais pautadas em velhas normas e instituições que antes limitavam a atuação na sociedade.
Para Setemy, a análise das revistas Manchete e Realidade permitiu demonstrar que a sociedade, ao longo da segunda metade do século XX, foi adotando formas reguladoras mais brandas e que permitiam uma maior liberdade individual que, entretanto, não significou o fim dos princípios morais. Além disso, é possível perceber que os problemas antes restritos a esfera particular da sociedade se tornou assunto das páginas das revistas e vendidos comercialmente. Ainda que as revistas tratassem de temas que antes eram tabus e relegados ao mundo das relações privadas, contribuíram para a manutenção da estrutura vigente com matérias conservadoras que, algumas vezes, apontavam qualidades do regime militar como a manutenção da ordem e a necessidade de regras rígidas para a manutenção da segurança nacional.
A pesquisa de Setemy consegue demonstrar a dialética presente na relação entre produção e consumo que resultou no desenvolvimento de uma cultura de massa no Brasil. Se por um lado, o regime incentivou o desenvolvimento da indústria editorial, seu aparato repressivo, apresentado pelo Ato Institucional nº 5, interferiu no diálogo entre cultura e sociedade. A dialética também se apresenta no estudo das matérias publicadas pelas revistas Manchete e Realidade no que se refere à mudança de costume e liberdades individuais, pois mesmo que as regras morais não se apresentassem com tanta rigidez e a discussão acerca de assuntos privados estivesse presente nas matérias, as estruturas de longa duração se mantinham presentes na sociedade, prova disso é o fato de que as matérias nem sempre aprovavam as novidades, principalmente na questão da sexualidade e das drogas.
A autora escolhe terminar sua análise com o decreto do Ato Institucional nº 5 porque acredita que o fim das liberdades individuais colocou um fim na liberdade de imprensa, abrindo margem para uma possibilidade de análise pós-AI-5 de como essas revistas, em especial a Manchete que se mantém ativa até os anos 2000, lidaram com a forte censura e se não conseguiram manter sua essência revolucionária de forma sutil, além da possibilidade de análise das revistas de grande circulação em relação com as de menor alcance no que tange a apresentação e discussão de temas tabus.
Setemy, ao olhar para o passado em um momento de ebulição cultural e censura política, permite questionar o presente. Embora não vivamos em um regime ditatorial, as estruturas morais que se apresentavam na década de 1960 continuam se manifestando no século XXI e buscando vias democráticas de censura. A autora cita a contundente crítica ao Museu de Arte Moderna e a posterior censura da exposição “História da Sexualidade” no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mas podemos listar tantas outras ações governamentais que indicam a censura por parte do Estado, como a decisão judicial de remover do catálogo da plataforma de streaming Netflix o filme A primeira tentação de Cristo, especial de natal do grupo de humor Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como homossexual. Tal ação demonstra que, não muito diferente da época ditatorial, a sociedade brasileira em pleno século XXI, apesar de parecer liberal, ainda mantém velhos tabus. Embora a democracia esteja consolidada, a censura permanece como um instrumento do conservadorismo e tem buscado, cada vez mais, atacar a educação e a cultura, como a ação de retirada dos pôsteres de filmes nacionais dos prédios da Ancine, a diminuição de verbas federais para a cultura e os projetos do Escola Sem Partido que têm se disseminado entre as regiões brasileiras. Essas ações sutis demonstram que o Estado está disposto a retaliar qualquer conduta que seja considerada oposta aos ideais conservadores do governo.
Marcela dos Santos Alves – Mestranda em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. E-mail: marceladossantosalves@gmail.com
SETEMY, Adriana. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: ALVES, Marcela dos Santos. A revolução dos costumes em tempos de censura: a Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 252-255, jul./dez., 2019.