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Sertões / Territórios & Fronteiras / 2018
Sertão, e por extensão os sertanejos, é um signo central na interpretação do Brasil, circulando por todas as regiões do Brasil desde o século XVI seus significados articularam discursos, linguagens e práticas (ou experiências) que forjam, ainda no presente, sentidos socioculturais que influenciam disputas territoriais e a constituição de fronteiras. Desde os sentidos de vazio e deserto até o preenchimento com sinais claros de resistência ao processo de colonização e / ou civilizador o sertão aparece como categoria e espaço de luta social. É um dos temas mais evocados nas artes e nas ciências sociais. Percebido, também, como um dos mais inquietantes enigmas a ser decodificado na interpretação do país.
No Brasil essa designação passou por mudanças ao longo tempo. Alcântara Machado3, por exemplo, evidenciou que o termo “sertão” já aparece nos inventários paulistas dos séculos XVI e XVII, como forma de nomear espaços desconhecidos, atraentes e misteriosos, a um só tempo, despertava a afoiteza do desbravamento, o sonho do enriquecimento rápido e fácil. Trazia consigo, porém, o risco das forças ameaçadoras da natureza: feras, doenças, além dos temidos índios selvagens, como os canoeiros em Goiás. Na percepção de Janaína Amado salienta que o conceito “sertão” foi elaborado inicialmente pelos colonizadores portugueses, carregado de sentidos negativos: espaços vastos, desconhecidos, longínquos, pouco habitados, isolados, perigosos, dominados pela natureza bruta e habitados por bárbaros. Foi utilizado para nomear as mais diversas áreas, como as de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás nos séculos XVII e XVIII.
Regiões distantes, povoadas pelo gentio, porém repletas de riquezas. Dependendo do enunciante, o “sertão” pode possuir os mais variados sentidos. Para os governantes de capitanias / províncias “o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados”. A partir das últimas décadas do século XIX, outros significados foram incorporados ao conceito, transformando-o numa categoria essencial para o entendimento da “nação”.4
José de Alencar no romance regionalista “O sertanejo” representa o sertão nordestino, uma reprodução de como eram as terras do Brasil na época em que foram descobertas marcada pela vastidão, pela natureza opulenta e vasta, uma rica descrição da exuberância e abundância da flora brasileira, cuja: imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal […] Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?”5 . Em Inocência, considerada a obra prima do romance regionalista, o visconde de Taunay retrata o sertão Mato Grosso, caracterizado pela solidão melancólica do despovoamento, a virgindade da terra, o deserto, a calma da campina. O “sertão bruto” é percebido com “nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante”. 6
Euclides da Cunha escreveu a mais pungente narrativa sobre o território do sertanejo nordestino: árido, inóspito, indômito, atrasado, imune à passagem do tempo e aos progressos da civilização. Nessa obra a dicotomia entre os “brasis” torna-se mais evidente. Para ele, no sertão vivia o brasileiro legítimo: corajoso, perseverante, honrado, forte e aguerrido. Nessa escrita, ele recrimina o nacionalismo e ufanismo exagerado do país a época, mostrando a face real da gente brasileira vivendo a margem da sociedade.7
O Brasil profundo e sua gente ignorados pelos olhares das elites começam a vir a tona nos relatos de expedições científicas promovidas pelo governo que defrontava com as dificuldades de inserção no mundo moderno capitalista na Primeira República (1889-1930). Nesse contexto, a aliança entre o Estado e os cientistas médicos foi profícua nessa campanha de integração nacional das imensas áreas abandonadas e alheias ao empreendimento de criação da identidade nacional. A província de Goiás, por exemplo, reflete bem essa condição periférica. Por intermédio de projetos sanitários, culturais, educacionais procurou-se encontrar caminhos capazes de retirar a região daquela condição tão periférica em relação às demais províncias do Brasil.
Ainda no início do século XX, a população vivia dispersa em um dilatado território. Sua gente, composta, em sua maioria, de camponeses analfabetos e pobres, habitava a área rural, quase totalmente isolados do restante do País e do mundo. Goiás era, então, uma região ignota. A medicina, aliada ao poder público, consistia no instrumento para operar essa transformação. A Ciência propiciaria um fundamental lenitivo para os intelectuais, que, até então, não avistavam alternativas para um país que parecia condenado.
Posteriormente, ao conceito sertão foram incorporadas novas abordagens e diversas formas de apreensão do que aquelas relacionadas a dicotomia geográfica. O debate passou a incorporar diversas linguagens por meio das quais são narrados, tais como o memorialismo, a literatura, a historiografia, a linguagem fílmica, a mídia impressa e / ou digital, as artes de uma maneira geral, dentre outras formas narrativas. Questões de fronteiras e interculturalidades, territórios e territorialidades, etnicidades e identidades e modos de viver, trabalhar, habitar e se alimentar e também os processos de ocupação, povoamento e colonização dos sertões.
O dossiê que o leitor tem em mãos, reuni artigos selecionados com suas diversas ênfases, concepções, estilos narrativos, metodologias e objetos de pesquisa, individualmente e no seu conjunto, constroem uma abordagem polifônica, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a pluralidade dos sertões brasileiros. Assim, reunindo uma gama plural de objetos e abordagens o dossiê ora apresentado delineia-se como uma perspectiva de leitura de mundo e de textos abertos para múltiplas interpretações.
Nos artigos “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória”, “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” e “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas” há a busca por compreender alguns dos sentidos culturais dos sertões por meio da mobilização de um repertório de estudos de linguagem e da literatura. Em “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória” a autora, Lorena Lopes da Costa, discute a construção da personagem de João Guimarães Rosa, Joãozinho Bem-bem, a partir da análise das representações literárias da “bela morte” como uma forma de redenção do sertão e dos sertanejos das minas gerais. Nesse artigo, as referências clássicas à poesia épica formam uma imagem heroica dos sertões que se destaca em nosso imaginário.
Outro artigo que fixa sua interpretação na discussão das linguagens literárias é “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” escrito por Euclides Antunes de Medeiros e Fernanda Rodrigues Lagares. Nele a questão central é problematizar as pressões que a narrativa euclidiana sofre dos repertórios científicos e literários nos quais está mergulhado o autor de “Os Sertões”. Partindo da análise das metáforas da cobra e da sucuri, presentes na obra, o artigo delineia uma imagem dúplice: de um lado, o homem esteticamente construído a partir da ideia do sertanejo “como antes de tudo um forte”; de outro lado, a mobilização do argumento de que a ciência era a grande artífice da retirada dos sertões da barbárie, pois dela dependia a “civilização”.
Centrado também na literatura, o artigo “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas”, de Roseli Martins Tristão Maciel e Veralúcia Pinheiro, busca discutir as visões dos literatos goianos Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis e Valdomiro Silveira acerca da lepra nos sertões goianos. Discutindo como esses autores evidenciam em suas linguagens literárias a estigmatização dos leprosos, o artigo esclarece questões importantes sobre as representações do interior goiano como o “lugar da doença” e sobre o processo de (des)humanização dos doentes.
Em “A invenção do sertão: viajantes e barqueiros navegando pelo Araguaia”, escrito por Dernival Venâncio Ramos Junior e Marina Haizenreder Ertzoque, o foco é a compreensão e reinterpretação dos discursos dos viajantes José Vieira Couto de Magalhães e Joaquim de Almeida Leite Moraes acerca dos sertões goianos. Perscrutando nas narrativas de ambos a presença do argumento do colonizador, o artigo apresenta a imagem de um sertão tomado como território vazio e que estaria em busca de novos bandeirantes capazes de lhe retirar do atraso.
Em outra vertente, mas ainda preocupando-se com os discursos relativos ao bandeirantismo, o artigo em inglês “Heroes of the Sertão: the bandeirantes as a symbolic category for the study of Brazilian West colonization”, de Sandro Dutra e Silva, problematiza as representações sobre os bandeirantes como personagem ressignificado e de valor estratégico na política estatal da Marcha para o Oeste durante o Estado Novo, denotando a importância das reapropriações dos sentidos civilizadores produzidos sobre os sertões durante o século XX.
A questão discursiva é também objeto do artigo “Narrativas culturais dos sertões: atuação dos intelectuais na construção de narrativas historiográficas piauienses na emergência do século XX.” de Francisco Assis Nascimento. Nele a questão central é a contribuição dos intelectuais na construção de um modelo cultural que foi responsável por erigir uma identidade para os sertões piauienses. Na interpretação proposta pelo artigo o discurso desses intelectuais pode ser dividido em duas abordagens: de um lado, o enaltecimento das personagens locais e o registro dos mitos fundadores da história do Piauí; de outro lado, o sofrimento das populações indígenas durante o processo colonizador, surgindo desses dois caminhos o que é denominado no artigo de “piauiensidade”.
No artigo “Sertão, civilização e progresso: olhares sobre a fronteira Brasil-Paraguai-Argentina (1896-1937)”, de Jiani Fernando Langaro, os discursos analisados são de militares do Exército brasileiro e de autoridades do governo estadual paranaense. Nele, mais uma vez, se discute as imagens dos sertões, essa ampla e plural categoria, como um lugar inóspito e ao mesmo tempo destacam-se os variados significados que os discursos e narrativas analisadas imprimem à ideia recorrente de “progresso”.
Analisando os discursos da elite regional, o artigo “Diamantina e o estigma do sertão: o olhar das elites diamantinenses sobre a cidade e o sertão norte mineiro durante a Primeira República”, escrito por Carolina Paulino Alcântara e Anny Jackeline Torres Silveira, busca problematizar as representações da elite diamantinense acerca dos sertões de Diamantina dentro do processo de modernização brasileira. Segundo o artigo, esse projeto de modernização das elites diamantinenses, construído majoritariamente como um discurso, sedimentou-se no imaginário dos sertões mineiros com sentidos ambivalentes: de um lado surgem associados às imagens da miséria e do abandono e, de outro lado, às imagens da riqueza, e da proximidade da cidade de Diamantina com o litoral e com as representações de “civilização”.
Outro artigo que têm como lócus o sertão mineiro é “Ocupação e conflito nos sertões do Manoelburgo na Zona da Mata mineira”. Escrito por Vitória Fernanda Schettini de Andrade, esse artigo visa discutir o processo de ocupação dos referidos sertões a partir do século XVIII e, mais especificamente, os conflitos em torno da posse da terra desde a chegada do “homem branco”, conflitos estes que teriam caracterizado o processo de colonização dos sertões realizado pela Coroa.
Direcionado o olhar para um ponto pouco explorado pelos estudiosos dos sertões, o artigo “Da boca do sertão ao ouro verde: Indaiatuba, Itu e a evolução da Arquitetura rural paulista”, escrito por Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, problematiza como os modos de morar na região – ponto de saída dos bandeirantes que iam aos sertões – influenciou a formação da arquitetura rural do interior paulista. Percorrendo os ciclos açucareiros e cafeeiros dessa região, o autor redesenha a paisagem arquitetônica que expressava o gosto e os interesses das elites econômicas da época.
O artigo “Composição demográfica domiciliar e (i)mobilidade no Seridó potiguar: vulnerabilidade à seca e estratégias domiciliares no sertão nordestino”, nos leva ao nordeste brasileiro. Nesse artigo, escrito por Isac Alves Correia e Ricardo Ojima, o foco é a migração nordestina em situações de seca e os modos por meio dos quais as famílias organizam a mobilidade de seus membros em função dos interesses tanto de partir do sertão como de a ele retornar. Nesse caso, as estratégias para migrar, assim como as para permanecer, trazem em sua estruturação toda uma carga simbólica do “ser sertanejo”.
No conjunto, esse dossiê diz respeito a esse “ser sertanejo” em múltiplas espacialidades, temporalidades e principalmente subjetividades. Nesse sentido, embora por vezes ele seja delimitado em uma cartografia precisa, no mais das vezes os sertões estão presentes em nós e, ainda que de forma difusa, ele está dentro de nós e o levamos pela vida, como escreveu Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas”.
Notas
1. Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins.
2. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás.
3. MACHADO, Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.
4. Ver: AMADO, J. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, vol.8, no 15, 1995, p.149.
5. ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Ática, 1995.
6. TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1988.
7. CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Folha de São Paulo, 2000.
Olivia Macedo Miranda Cormineiro1 – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: oliviacormineiro@uol.com.br
Sônia Maria de Magalhães2 – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás. E-mail: soniademagalhaes@yahoo.com.br
CORMINEIRO, Olivia Macedo Miranda; MAGALHÃES, Sônia Maria de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.11, n.1, jan / jul, 2018. Acessar publicação original [DR]