Fronteiras, sertões e território / Projeto História / 2020

O número 69 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Fronteiras, sertões e território”. Em linha com nosso projeto editorial, interessa-nos abrir espaço para multiplicidade teórica, temática e regional.

Esse número buscou jogar luz para a produção historiográfica acerca do Brasil de dentro, mas também de regiões afastadas dos centros de poder de outros países da América do Sul. Esse número pretende abrir espaço para os estudiosos das zonas interioranas, dos sertões profundos, das fronteiras em seus vários sentidos. Sertão, aqui, não significa apenas o semiárido nordestino, mas sobretudo o interior, variado e múltiplo, áreas culturais, históricas e geográficas cuja historicidade nem sempre tem o devido espaço na historiografia brasileira.

A ampliação dos programas de pós-graduação durante os governos Lula (2002-2010) e Dilma (2010-2016) foi notável, ampliando a produção historiográfica, inclusive em universidades localizadas no interior do país. Apesar da interrupção da expansão e, pior dos ataques a universidade, é preciso reconhecer que uma considerável produção intelectual. Mas é preciso difundir esse conhecimento, nascido, quase sempre o financiamento público.

Pensar as fronteiras, os sertões, os interiores, os territórios sempre em disputas a partir da história reconhece a inevitável interdisciplinaridade, aberto às conexões geográficas, artísticas (da pintura à literatura), geopolíticas (e cartográficas), sociológicas e simbólicas que a temática impõe, temática de nenhum modo presa a recortes temporais fechados.

Não é por outra razão, portanto, que abrimos o dossiê com o artigo Leituras da apropriação territorial europeia na sedimentação de identidades no Brasil, de Jorge Luiz Barcellos da Silva. Nele, o autor buscou identificar de que maneira as diferentes leituras das territorialidades se constituíram em ferramentas auxiliares na sedimentação de identidades no Brasil. Partindo da análise de pinturas de Ekhout e mapas com distintas representações da América portuguesa, Barcellos da Silva demonstra como essas representações do território e de seus habitantes instrumentalizaram a sistematização do processo da posse europeia em diferentes partes do mundo. No caso específico do Brasil, o autor argumenta que foram os fundamentos topológicos que enquadraram os discursos e práticas dando sentido às apropriações territoriais e ao estabelecimento de fronteiras, conferindo novos contornos ao entendimento do que seria o Brasil.

Logo em seguida apresentamos o texto de Gabriel Passetti, intitulado “La cuestión de limites”: intelectuais, diplomatas e a disputa pelas fronteiras entre Argentina e Chile (séculos XIX a XXI). A sensibilidade para temas latino-americanos é um firme compromisso da Projeto História, que não hesitou em nunhum momento em aceitar a proposta. No artigo, o autor coloca em foco as discussões acerca da linha internacional de fronteiras a partir de uma perspectiva comparada e conectada, dando protagonismo às conexões entre intelectuais, diplomatas, políticos e militares. O artigo apresenta o modo como a produção dos intelectuais sobre a questão dos limites entre Argentina e Chile foi levado à esfera pública, culminando na mobilização e construção de rivalidades e tensões internacionais que quase acabou levando os países à guerra em três ocasiões.

O terceiro artigo do dossiê, intitulado Visões sobre o humano: a fronteira-sertão do Brasil meridional (1889-1905), é assinado por Bruno Pereira de Lima Aranha. Neste trabalho, de notável qualidade, o autor se propõe a analisar os relatos das expedições brasileiras destinadas à fronteira com a Argentina entre 1889 e 1905, na atual província de Misiones (Argentina) e regiões sudoeste do Paraná e oeste de Santa Catarina, bem como o Rio Grande do Sul (Brasil). O objetivo é alargar a ideia de fronteira, tradicionalmente pensada a partir de um marco delimitador, inserindo-a em uma concepção baseada na experiência de fronteira móvel, caracterizada por uma borderland, idealizada por viajantes como um sertão a ser ocupado formalmente pelo Estado. O autor destaca as percepções acerca dss populações sertanejas desses espaços, caracterizada por diversas nuances, especialmente pela transnacionalidade do espaço, cuja demarcação, de fato, sequer havia ocorrido.

Na sequência apresentamos o artigo Reflexões sobre uma zona de fronteira no século XVII: a província do Guairá e Sertão dos Carijós, de Dora Shellard Corrêa. Neste trabalho a autora discute as relações de poder e o conhecimento que os europeus detinham sobre fronteiras dos impérios ibéricos localizadas na porção Sul do continente americano. Trata-se de um espaço indígena, localizado no atual estado do Paraná, mas que, na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do XVII, configurava parte da província espanhola do Guairá, também conhecida como Sertão dos Carijós pelos portugueses. Seu objetivo é discutir esse movimento das fronteiras europeias na América durante o mercantilismo, destacando que a realidade do conceito de fronteira é muito mais complexa do que a que vem sendo descrita, sobretudo se levarmos em conta uma dinâmica espacial indígena à qual os portugueses e demais europeus que ocuparam a região tiveram que se adaptar.

O quinto artigo deste dossiê intitula-se A ferrovia e a ocupação do sertão paulista: a Companhia Paulista e sua linha tronco oeste, pesquisa de Cristina de Campos e Luciana Massami Inoue. As autoras analisam o papel das ferrovias na estruturação do território paulista durante o século XIX, destacando dois momentos: o primeiro, que seguia o ritmo do avanço do café pelo interior; e o segundo, quando as companhias ferroviárias passaram a antecipar as plantações. É neste segundo momento que o foco das autoras irá se concentrar, em especial no que diz respeito à linha tronco oeste da Companhia Paulista, que teriam constituído uma espécie de modelo de ocupação de sertão, de acordo com o que foi observado nas áreas por onde se constituíram as principais companhias ferroviárias paulistas.

O artigo intitulado A escola “Pluvífera” e as secas no Nordeste do Brasil: o caso do “Gargalheiras” (1877-1959), assinado por Yuri Simonini, Ângela Lúcia Ferreira e Adriano Wagner da Silva, trata da duradoura ressonância que as discussões e críticas feitas pelo Instituto Politécnico sobre as secas de 1877 no Nordeste tiveram no debate sobre a influência climática a partir da construção de grandes reservatórios. Recorrendo aos métodos e a contribuição historiográfica da História Ambiental, os autores utilizaram os relatórios governamentais a fim de detalhar as teorias surgidas no Oitocentos que acabaram por legitimar propostas e edificações de barragens levantadas no século seguinte como foi o caso de Gargalheiras, em Acari, no Rio Grande do Norte.

Em seguida publicamos O Nordeste brasileiro e o Noroeste argentino: o sertão cearense e o chaco seco santiagueño em meio às secas da década de 1930, assinado por Leda Agnes Simões de Melo. Nele a autora se dedica a uma análise comparada das coberturas jornalísticas da forte seca que atingiu o estado do Ceará, no Nordeste brasileiro, e a província de Santiago del Estero, no Noroeste argentino, durante a década de 1930. Os periódicos analisados pela autora foram o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e El Mundo, de Buenos Aires. Seu principal objetivo é investigar como as construções discursivas da cobertura jornalística de ambos periódicos estavam ligadas ao padrão de sociedade moderna desses territórios no decorrer dos séculos.

O oitavo artigo deste dossiê, escrito por de Juciene Batista Felix Andrade, intitula-se Os sertões em debate: fronteiras, secas e instituições. Nele a autora problematiza o tema das “secas” no Nordeste a partir de uma perspectiva historiográfica, propondo uma breve incursão nos reportórios de memória estabelecidos nos mais distintos suportes documentais. O destaque conferido pela autora à essa diversidade documental e narrativa acerca das “secas” serve para deslocar o olhar dos historiadores dos sertões de um repertório já muito empregado e consagrado, mais ligados à literatura e ao folclore, para outras temáticas, o trabalho, a economia, as técnicas, os corpos, etc. A pesquisa se vale de importante documentação, como os relatórios técnicos, plantas baixas, ofícios, telegramas, jornais, etc. A diversificação da problemática e das fontes contribuem para alargamentos e enriquecimento do que poderíamos chamar de história social dos sertões.

Em seguida apresentamos o artigo “Doutores” do Sertão: Discursos do III Congresso Médico do Brasil Central (1951), de Éder Mendes de Paula. Neste trabalho, o autor analisa os discursos proferidos durante o III Congresso do Brasil Central e V do Triângulo Mineiro, a fim de compreender as relações entre região e nação. Ao perceber a oposição de sentidos que os médicos atribuíam aos conceitos de saúde e doença nos estados do Brasil central em relação aos do litoral, o autor propõe uma reflexão acerca da construção das concepções de saúde e doença. A pesquisa também trata da própria identidade dos médicos, a partir de uma perspectiva sertaneja segundo as abordagens dos próprios participantes do evento em Goiânia no ano de 1951.

O artigo seguinte, escrito em formato ensaístico, intitula-se Memória, escrita de si e identidade nos sertões: ensaio sobre a busca por novas alteridades nas fronteiras, por Evandro Santos. Neste trabalho o autor parte da problematização acerca da dimensão social da produção do conhecimento científico para refletir acerca das possibilidades e limites da escrita da história desde os sertões. No que diz respeito à temática mais específica deste dossiê, o artigo investiga o impacto exclusivamente exterior sobre regiões fronteiriças, como os sertões, apresentando um estudo de caso do sertão do Rio Grande do Norte como resultado de uma pesquisa mais ampla sobre os sertões nordestinos.

O fechamento deste dossiê se dá com o artigo O Brasil sertanejo: a construção do espaço nacional em O sertanejo (1875) de José de Alencar, escrito por Artur Vitor de Araújo Santana e Natanael Duarte de Azevedo. Neste trabalho os autores partem da literatura de José de Alencar, em particular o romance O sertanejo. O objetivo é analisar a construção de um espaço nacional no qual o interior do Brasil é visto como uma paisagem autêntica e o vaqueiro é o principal personagem na formação social do país. Para tanto, Santana e Azevedo recorrem a uma análise mais internalista do romance, buscando caracterizar a geografia física sertaneja e relacioná-la aos debates e concepções da época sobre a nação. O estudo não deixa de abordar a recepção da obra de Alencar nos periódicos do Rio de Janeiro.

Na seção dedicada aos artigos livres, a Projeto História publica O Menino do Gouveia: a história real que inspirou o primeiro conto homoerótico brasileiro de 1914, de Valmir Costa. No artigo, o autor reconstitui o lançamento do primeiro conto homoerótico do Brasil, “O Menino do Gouveia”, lançado em 1914, pela revista erótica O Rio Nu (1898-1916). Pautada em distintos periódicos cariocas da época, a pesquisa revela que o conto é inspirado em fatos reais e que o nome Gouveia acabou por se transformar em gíria e mesmo lenda urbana no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. O trabalho de reconstituição das condições de publicação e circulação do conto revela, dentre outros aspectos, os espaços e as opções sócios sexuais para a experiência da homossexualidade masculina na virada do século XIX para o XX.

Já o segundo artigo livre, chamado a A guinada pragmática da linguagem e “a invenção do cotidiano”, de Gerson Luís Trombetta e Fabrício Antônio Antunes Soares, nos apresenta as características gerais da “guinada pragmática da linguagem”, especialmente na filosofia de Ludwig Wittgenstein. Mais que isso, os autores também apontam como as teses centrais dessa “guinada da linguagem” influenciaram a obra de Michel de Certeau, acerca da narrativa historiográfica, postulando que a maneira como se dá o diálogo teórico entre Certeau e Wittgenstein abre perspectivas para a narrativa historiográfica que extrapolam as limitações empiristas.

A Projeto História, interessada em valorizar a produção de jovens pesquisadores, mantém há muitos anos a seção Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de mestrado de Bruna Carolina de Oliveira Rodrigues, intitulada O embaixador de Hollywood e o cinema brasileiro (1953 – 2000). Nela a autora reconstitui a trajetória de Harry Stone, um lobista dos interesses do cinema estadunidense no Brasil, durante o período em que este viveu no país.

Por fim, o volume 69 da revista se encerra com duas resenhas. A primeira, da pesquisadora Thays Fregolent de Almeida, mais ligada ao dossiê, Fronteiras, sertões e território, trata da obra coletiva Rondon: inventários do Brasil (1900-1930), organizada pelas professoras Lorelai Kury e Magali Romero Sá, em 2017. Já a segunda resenha, em linha com o projeto editorial da revista, comprometido com a pluralidade, abre espaço para a história da escravidão durante o período imperial no Brasil. Em Estado imperial, ordens religiosas, senhores e escravos em um contexto de crise, William de Souza Martins debate a tese de doutorado de Sandra Rita Molina, publicada em livro pela Paco Editorial em 2016.

É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil, e mesmo outros países, possam contribuir com suas pesquisas.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que eles possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Alberto Luiz Schneider

José Rogério Beier


SCHNEIDER, Alberto Luiz; BEIER, José Rogério. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.69, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sertões / Territórios & Fronteiras / 2018

Sertão, e por extensão os sertanejos, é um signo central na interpretação do Brasil, circulando por todas as regiões do Brasil desde o século XVI seus significados articularam discursos, linguagens e práticas (ou experiências) que forjam, ainda no presente, sentidos socioculturais que influenciam disputas territoriais e a constituição de fronteiras. Desde os sentidos de vazio e deserto até o preenchimento com sinais claros de resistência ao processo de colonização e / ou civilizador o sertão aparece como categoria e espaço de luta social. É um dos temas mais evocados nas artes e nas ciências sociais. Percebido, também, como um dos mais inquietantes enigmas a ser decodificado na interpretação do país.

No Brasil essa designação passou por mudanças ao longo tempo. Alcântara Machado3, por exemplo, evidenciou que o termo “sertão” já aparece nos inventários paulistas dos séculos XVI e XVII, como forma de nomear espaços desconhecidos, atraentes e misteriosos, a um só tempo, despertava a afoiteza do desbravamento, o sonho do enriquecimento rápido e fácil. Trazia consigo, porém, o risco das forças ameaçadoras da natureza: feras, doenças, além dos temidos índios selvagens, como os canoeiros em Goiás. Na percepção de Janaína Amado salienta que o conceito “sertão” foi elaborado inicialmente pelos colonizadores portugueses, carregado de sentidos negativos: espaços vastos, desconhecidos, longínquos, pouco habitados, isolados, perigosos, dominados pela natureza bruta e habitados por bárbaros. Foi utilizado para nomear as mais diversas áreas, como as de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás nos séculos XVII e XVIII.

Regiões distantes, povoadas pelo gentio, porém repletas de riquezas. Dependendo do enunciante, o “sertão” pode possuir os mais variados sentidos. Para os governantes de capitanias / províncias “o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados”. A partir das últimas décadas do século XIX, outros significados foram incorporados ao conceito, transformando-o numa categoria essencial para o entendimento da “nação”.4

José de Alencar no romance regionalista “O sertanejo” representa o sertão nordestino, uma reprodução de como eram as terras do Brasil na época em que foram descobertas marcada pela vastidão, pela natureza opulenta e vasta, uma rica descrição da exuberância e abundância da flora brasileira, cuja: imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal […] Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?”5 . Em Inocência, considerada a obra prima do romance regionalista, o visconde de Taunay retrata o sertão Mato Grosso, caracterizado pela solidão melancólica do despovoamento, a virgindade da terra, o deserto, a calma da campina. O “sertão bruto” é percebido com “nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante”. 6

Euclides da Cunha escreveu a mais pungente narrativa sobre o território do sertanejo nordestino: árido, inóspito, indômito, atrasado, imune à passagem do tempo e aos progressos da civilização. Nessa obra a dicotomia entre os “brasis” torna-se mais evidente. Para ele, no sertão vivia o brasileiro legítimo: corajoso, perseverante, honrado, forte e aguerrido. Nessa escrita, ele recrimina o nacionalismo e ufanismo exagerado do país a época, mostrando a face real da gente brasileira vivendo a margem da sociedade.7

O Brasil profundo e sua gente ignorados pelos olhares das elites começam a vir a tona nos relatos de expedições científicas promovidas pelo governo que defrontava com as dificuldades de inserção no mundo moderno capitalista na Primeira República (1889-1930). Nesse contexto, a aliança entre o Estado e os cientistas médicos foi profícua nessa campanha de integração nacional das imensas áreas abandonadas e alheias ao empreendimento de criação da identidade nacional. A província de Goiás, por exemplo, reflete bem essa condição periférica. Por intermédio de projetos sanitários, culturais, educacionais procurou-se encontrar caminhos capazes de retirar a região daquela condição tão periférica em relação às demais províncias do Brasil.

Ainda no início do século XX, a população vivia dispersa em um dilatado território. Sua gente, composta, em sua maioria, de camponeses analfabetos e pobres, habitava a área rural, quase totalmente isolados do restante do País e do mundo. Goiás era, então, uma região ignota. A medicina, aliada ao poder público, consistia no instrumento para operar essa transformação. A Ciência propiciaria um fundamental lenitivo para os intelectuais, que, até então, não avistavam alternativas para um país que parecia condenado.

Posteriormente, ao conceito sertão foram incorporadas novas abordagens e diversas formas de apreensão do que aquelas relacionadas a dicotomia geográfica. O debate passou a incorporar diversas linguagens por meio das quais são narrados, tais como o memorialismo, a literatura, a historiografia, a linguagem fílmica, a mídia impressa e / ou digital, as artes de uma maneira geral, dentre outras formas narrativas. Questões de fronteiras e interculturalidades, territórios e territorialidades, etnicidades e identidades e modos de viver, trabalhar, habitar e se alimentar e também os processos de ocupação, povoamento e colonização dos sertões.

O dossiê que o leitor tem em mãos, reuni artigos selecionados com suas diversas ênfases, concepções, estilos narrativos, metodologias e objetos de pesquisa, individualmente e no seu conjunto, constroem uma abordagem polifônica, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a pluralidade dos sertões brasileiros. Assim, reunindo uma gama plural de objetos e abordagens o dossiê ora apresentado delineia-se como uma perspectiva de leitura de mundo e de textos abertos para múltiplas interpretações.

Nos artigos “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória”, “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” e “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas” há a busca por compreender alguns dos sentidos culturais dos sertões por meio da mobilização de um repertório de estudos de linguagem e da literatura. Em “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória” a autora, Lorena Lopes da Costa, discute a construção da personagem de João Guimarães Rosa, Joãozinho Bem-bem, a partir da análise das representações literárias da “bela morte” como uma forma de redenção do sertão e dos sertanejos das minas gerais. Nesse artigo, as referências clássicas à poesia épica formam uma imagem heroica dos sertões que se destaca em nosso imaginário.

Outro artigo que fixa sua interpretação na discussão das linguagens literárias é “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” escrito por Euclides Antunes de Medeiros e Fernanda Rodrigues Lagares. Nele a questão central é problematizar as pressões que a narrativa euclidiana sofre dos repertórios científicos e literários nos quais está mergulhado o autor de “Os Sertões”. Partindo da análise das metáforas da cobra e da sucuri, presentes na obra, o artigo delineia uma imagem dúplice: de um lado, o homem esteticamente construído a partir da ideia do sertanejo “como antes de tudo um forte”; de outro lado, a mobilização do argumento de que a ciência era a grande artífice da retirada dos sertões da barbárie, pois dela dependia a “civilização”.

Centrado também na literatura, o artigo “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas”, de Roseli Martins Tristão Maciel e Veralúcia Pinheiro, busca discutir as visões dos literatos goianos Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis e Valdomiro Silveira acerca da lepra nos sertões goianos. Discutindo como esses autores evidenciam em suas linguagens literárias a estigmatização dos leprosos, o artigo esclarece questões importantes sobre as representações do interior goiano como o “lugar da doença” e sobre o processo de (des)humanização dos doentes.

Em “A invenção do sertão: viajantes e barqueiros navegando pelo Araguaia”, escrito por Dernival Venâncio Ramos Junior e Marina Haizenreder Ertzoque, o foco é a compreensão e reinterpretação dos discursos dos viajantes José Vieira Couto de Magalhães e Joaquim de Almeida Leite Moraes acerca dos sertões goianos. Perscrutando nas narrativas de ambos a presença do argumento do colonizador, o artigo apresenta a imagem de um sertão tomado como território vazio e que estaria em busca de novos bandeirantes capazes de lhe retirar do atraso.

Em outra vertente, mas ainda preocupando-se com os discursos relativos ao bandeirantismo, o artigo em inglês “Heroes of the Sertão: the bandeirantes as a symbolic category for the study of Brazilian West colonization”, de Sandro Dutra e Silva, problematiza as representações sobre os bandeirantes como personagem ressignificado e de valor estratégico na política estatal da Marcha para o Oeste durante o Estado Novo, denotando a importância das reapropriações dos sentidos civilizadores produzidos sobre os sertões durante o século XX.

A questão discursiva é também objeto do artigo “Narrativas culturais dos sertões: atuação dos intelectuais na construção de narrativas historiográficas piauienses na emergência do século XX.” de Francisco Assis Nascimento. Nele a questão central é a contribuição dos intelectuais na construção de um modelo cultural que foi responsável por erigir uma identidade para os sertões piauienses. Na interpretação proposta pelo artigo o discurso desses intelectuais pode ser dividido em duas abordagens: de um lado, o enaltecimento das personagens locais e o registro dos mitos fundadores da história do Piauí; de outro lado, o sofrimento das populações indígenas durante o processo colonizador, surgindo desses dois caminhos o que é denominado no artigo de “piauiensidade”.

No artigo “Sertão, civilização e progresso: olhares sobre a fronteira Brasil-Paraguai-Argentina (1896-1937)”, de Jiani Fernando Langaro, os discursos analisados são de militares do Exército brasileiro e de autoridades do governo estadual paranaense. Nele, mais uma vez, se discute as imagens dos sertões, essa ampla e plural categoria, como um lugar inóspito e ao mesmo tempo destacam-se os variados significados que os discursos e narrativas analisadas imprimem à ideia recorrente de “progresso”.

Analisando os discursos da elite regional, o artigo “Diamantina e o estigma do sertão: o olhar das elites diamantinenses sobre a cidade e o sertão norte mineiro durante a Primeira República”, escrito por Carolina Paulino Alcântara e Anny Jackeline Torres Silveira, busca problematizar as representações da elite diamantinense acerca dos sertões de Diamantina dentro do processo de modernização brasileira. Segundo o artigo, esse projeto de modernização das elites diamantinenses, construído majoritariamente como um discurso, sedimentou-se no imaginário dos sertões mineiros com sentidos ambivalentes: de um lado surgem associados às imagens da miséria e do abandono e, de outro lado, às imagens da riqueza, e da proximidade da cidade de Diamantina com o litoral e com as representações de “civilização”.

Outro artigo que têm como lócus o sertão mineiro é “Ocupação e conflito nos sertões do Manoelburgo na Zona da Mata mineira”. Escrito por Vitória Fernanda Schettini de Andrade, esse artigo visa discutir o processo de ocupação dos referidos sertões a partir do século XVIII e, mais especificamente, os conflitos em torno da posse da terra desde a chegada do “homem branco”, conflitos estes que teriam caracterizado o processo de colonização dos sertões realizado pela Coroa.

Direcionado o olhar para um ponto pouco explorado pelos estudiosos dos sertões, o artigo “Da boca do sertão ao ouro verde: Indaiatuba, Itu e a evolução da Arquitetura rural paulista”, escrito por Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, problematiza como os modos de morar na região – ponto de saída dos bandeirantes que iam aos sertões – influenciou a formação da arquitetura rural do interior paulista. Percorrendo os ciclos açucareiros e cafeeiros dessa região, o autor redesenha a paisagem arquitetônica que expressava o gosto e os interesses das elites econômicas da época.

O artigo “Composição demográfica domiciliar e (i)mobilidade no Seridó potiguar: vulnerabilidade à seca e estratégias domiciliares no sertão nordestino”, nos leva ao nordeste brasileiro. Nesse artigo, escrito por Isac Alves Correia e Ricardo Ojima, o foco é a migração nordestina em situações de seca e os modos por meio dos quais as famílias organizam a mobilidade de seus membros em função dos interesses tanto de partir do sertão como de a ele retornar. Nesse caso, as estratégias para migrar, assim como as para permanecer, trazem em sua estruturação toda uma carga simbólica do “ser sertanejo”.

No conjunto, esse dossiê diz respeito a esse “ser sertanejo” em múltiplas espacialidades, temporalidades e principalmente subjetividades. Nesse sentido, embora por vezes ele seja delimitado em uma cartografia precisa, no mais das vezes os sertões estão presentes em nós e, ainda que de forma difusa, ele está dentro de nós e o levamos pela vida, como escreveu Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas”.

Notas

1. Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins.

2. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás.

3. MACHADO, Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.

4. Ver: AMADO, J. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, vol.8, no 15, 1995, p.149.

5. ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Ática, 1995.

6. TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1988.

7. CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Folha de São Paulo, 2000.

Olivia Macedo Miranda Cormineiro1 – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: oliviacormineiro@uol.com.br

Sônia Maria de Magalhães2 – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás. E-mail: soniademagalhaes@yahoo.com.br


CORMINEIRO, Olivia Macedo Miranda; MAGALHÃES, Sônia Maria de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.11, n.1, jan / jul, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Sertões do Brasil / Politeia: História e Sociedade / 2013

Na formação do mundo Atlântico ibérico, os espaços de comércio longínquo transformaram-se em lugares de diálogos, encontros e resistências. As misturas processadas, entretanto, não eram fenômeno original e peculiar do mundo colonial português; ao contrário, a Metrópole há muito já vivenciava intenso movimento de trocas e de mesclas que têm sido sublinhadas há décadas pela historiografia.1 Diversos centros comerciais europeus, e mesmo seus interiores, abrigaram experiências e vivências múltiplas e seculares com objetos, pessoas, costumes e práticas originárias dos mais diferentes lugares. Goa, Macau, Gênova, Veneza, Sevilha, Lisboa, Antuérpia, Rio de Janeiro, Recife e Salvador podem ser exemplos deste processo de migração social e cultural em escala internacional. As crônicas coloniais daqueles europeus que pelo Brasil passaram são fontes imprescindíveis para um melhor conhecimento dos trânsitos mundializados de gentes, objetos e culturas.2 São também bastante ilustrativos os relatos de muitos aventureiros que pelo mundo circularam experimentando e vivendo experiências inusitadas.

O relato do mercador de Bruges, Eustache de la Fosse,3 que se envolveu com o tráfico na Costa da Mina entre o fim do ano de 1479 e início de 1480, mostra encontros com genoveses, romanos, espanhois, portugueses, ingleses e alemães em seu percurso de fuga pela África, registrando em sua viagem contatos com negros africanos que dialogavam não só em sua língua nativa. Em relato escrito pelo capitão crioulo André Álvares d’Almada, em 1594, verifica-se também o registro de negros na África que estiveram na França e na Inglaterra por várias vezes e que também dominavam a língua destas localidades. Natural de Cabo Verde, Almada escreveu acerca do modo de lidar com os africanos, informando aos portugueses sobre costumes e hábitos alimentares deles e sobre riquezas naturais da África (D’Almada, 1994, p. 33-35).

Em menor escala, mas também importante, foi a circulação de pessoas nas terras pertencentes ao governo português. No Brasil, o surto exploratório no rio das Velhas (Capitania de Minas Gerais) em fins do século XVII e as explorações seguintes na Capitania da Bahia, especialmente no rio Itapicuru, a partir de 1702, e no rio das Contas, a partir de 1719, intensificaram os movimentos de europeus, principalmente portugueses, paulistas e aventureiros de várias partes do mundo pelos sertões da Bahia e de Minas Gerais, momento em que foram abertas vias de acesso aos afluentes do rio São Francisco. Os sertanistas, de Gabriel Soares de Souza, no século XVI, a João da Silva Guimarães, no início do século XVIII, e a João Gonçalves da Costa, no fim do século XVIII e início do século XIX, percorreram os sertões da Bahia e de Minas Gerais orientados pelos caminhos das águas, verdadeiras artérias que conectavam o mundo Atlântico ao interior do continente.4 Em seus relatos e correspondências, podemos ver os registros dos diálogos culturais, nem sempre harmoniosos, por eles vivenciados no percurso de suas andanças pelos sertões do Brasil.

As descobertas empreendidas, por diversos europeus pelos interiores da América portuguesa, contribuíram para a abertura dos chamados “caminhos gerais para as Minas”, primeiramente para as regiões de Sabará, Ouro Preto e Piranga, e as cabeceiras dos rios das Velhas, das Mortes e Doce, rotas que atingiam até as “ramificações superiores do rio São Francisco e conhecido como Caminho Geral do Sertão” (Boxer, 2000, p. 64). O maior número de entradas em direção às Minas situava-se na Bahia e podem ser consideradas como sendo as demarcadoras dos caminhos para as Minas ou dos Caminhos do Ouro e das Estradas Reais (Costa, 2005, p. 43). Dois outros roteiros interligavam as Minas a outras áreas coloniais. O Caminho Velho conectava a cidade do Rio de Janeiro às Gerais, passando por Paraty e algumas vilas paulistas ao longo do vale do Paraíba; e o Caminho Novo ou Caminho do Garcia, cuja construção foi iniciada em 1698 por Garcia Rodrigues, ligava o Rio de Janeiro à região das Minas a partir da baía de Guanabara. Este caminho também era conhecido como Estrada Real do Rio de Janeiro para Vila Rica.

O intenso trânsito significava também o imenso descaminho do ouro. O controle sobre as passagens dos rios foi efetuado como forma de garantir os interesses mais imediatos da Coroa, que eram vigiar e policiar tanto os caminhos conhecidos como as picadas incógnitas que teciam as complexas redes de acesso às regiões mineradoras, seja em território da Bahia, de Goiás ou de Minas Gerais. As medidas implementadas objetivavam reiterar os direitos reais sobre o território, garantindo, assim, a cobrança de impostos e o combate à evasão fiscal.

A forma de administração fiscal era utilizada em Portugal desde o século XVI, baseada em métodos fiscais que estavam presentes em todas as nações contemporâneas, e tinha atrás de si uma tradição de séculos que vinha desde o Império romano (Prado Júnior, 1994, p. 321). O sistema de contratos das rendas e direitos reais foi uma das principais formas de arrecadação de receitas do Império ultramarino português e constituía acordos temporários entre o rei e os negociantes de grosso trato. O Conselho Ultramarino, representando a Coroa, definia aos contratadores direitos, deveres, prazos e quantias determinadas que deveriam ser cumpridas pelas partes envolvidas.

As rendas reais foram originadas do direito exclusivo que o monarca possuía de cobrar tributos sobre todos os bens materiais existentes no patrimônio régio. No Portugal medieval, o patrimônio do rei era constituído de pessoas, terras, animais e produtos, sobre os quais se cobrava prestações sob a forma de rendas. Abarcava, além das terras, as atividades dos senhores livres, os instrumentos de trabalho e os serviços pagos pelos trabalhadores aos seus senhores. O monarca tributava as terras que não eram suas e estas prestações transformaram-se, ao longo do tempo, em rendas fixas. Com base no direto divino, o rei impôs aos súditos taxas sobre as terras, a justiça e os homens (Mattoso, 1993).

As formas de administrar as possessões coloniais, a maneira de permitir o acesso aos lugares mais longínquos de suas colônias, foram iniciativas necessárias e adequadas ao espaço mundializado construído a partir da união das coroas católicas no século XVI. Assim como as demais colônias ibéricas, os interiores do Brasil foram abrigados por pessoas de várias partes do mundo que circularam em busca de aventuras e riquezas existentes nas terras do Novo Mundo. Assim, o espaço colonial tornou-se um lugar de encontros de diversas línguas, culturas, hábitos e costumes. Formas de fazer, de consertar, de administrar, de governar e de curar aqui vivenciadas foram oriundas de distintos lugares pertencentes ou não à metrópole portuguesa e passaram a dialogar, de forma diversificada com os naturais da terra, e aqueles que do outro lado do Atlântico foram trazidos. Ora se sobrepondo, outras vezes se modificando e, em alguns casos, resistindo, estes novos diálogos foram protagonizados por europeus, africanos e americanos.

O mais importante nesse laboratório de misturas é a modificação realizada no espaço histórico em convivência. Há muito tempo os historiadores vêm destacando as experiências culturais vivenciadas desde o início da colonização.5 A compreensão sobre os interiores do Brasil tem retomado e aprofundado a ideia de se rever as relações estabelecidas entre o interior das colônias e suas conexões com o mundo lusitano, seja em seus aspectos culturais, administrativos, religiosos ou mesmo econômicos. A presença de africanos na América e a convivência com os nativos do Brasil tem recebido um novo olhar historiográfico que tem desvendado um outro Brasil para além daquele considerado unicamente como resultante das culturas europeias, africanas e indígenas.

Nos sertões de Minas Gerais e da Bahia, por exemplo, a forte presença de asiáticos e europeus orientais marcou a forma de trabalho aplicada às atividades de abertura de caminhos e de extração de minerais.6 O processo de encontro cultural pode reiterar antigas práticas, modifica-las ou mesmo transformá-las completamente. O produto desse processo pode resultar em práticas culturais completamente novas e / ou mestiças. Estas premissas nos guiam a repensar os sertões brasileiros e concebê-los como inseridos neste caleidoscópio de misturas de povos originários das quatro partes do mundo que, de forma inédita, deram formas e cores ao Novo Mundo.

Os textos que compõem este dossiê, apesar de não vinculados diretamente às reflexões da organizadora, reiteram e exemplificam as questões brevemente aqui apresentadas. Francisco Eduardo Andrade analisa os trânsitos e as trajetórias de paulistas que se dirigiram às Minas do Ouro em meados do século XVIII e compara o “estilo de vida” dos novos mineradores com os do século anterior. A forma de administrar os índios, seu apresamento e as relações com os negros africanos sustentam a compreensão sobre as novas formas de trabalho dos sertanistas do ouro. A organização do catolicismo na Colônia e os problemas enfrentados pela Coroa para manter os preceitos cristãos nos sertões mineiros são o objeto de artigo de Renato Silva Dias e Jeaneth Xavier de Araújo. Concluem que as instituições católicas nas redes do cotidiano colonial enfrentavam e também produziam conflitos de diversas naturezas que impediam o bom governo da Igreja nos sertões das Minas. O estudo de dois momentos distintos na região mineradora da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, compõe o texto de Carla Cristina Oliveira Silva e Ivana Denise Parrela. As autoras discutem o modo de vida dos moradores da Serra em fins do século XVIII, início do garimpo de diamantes, e em fins do século XX, quando o lugar transformou-se no Parque Estadual de Grão Mogol, norte de Minas Gerais. A memória é tomada como referência nos dois momentos vivenciados pelo espaço histórico em análise.

O “sertão dos Goiazes”7 no Setecentos é objeto de estudo de Fernando Lobo Lemes e de Maria Lemke. A criação da Vila Boa de Goiás e o Senado da Câmara, mecanismos de interiorização dos interesses portugueses na região, são compreendidos por Lemes como promotores da modificação das relações de poder que envolviam a Coroa portuguesa e as elites locais. Lemke, para compreender a participação das Minas de Goiás no tráfico de escravos, desloca seu olhar para a África. A correspondência oficial é sua fonte histórica privilegiada para destacar o importante papel dos “caminhos do sertão” no comércio de cativos, assim como as constantes preocupações para com o combate ao contrabando.

Para a Bahia, o sertão do Rio São Francisco e o Sertão de Morro do Chapéu são os lugares das análises de Jackson Ferreira e de Nivaldo Oliveira Dutra. As relações de dependência entre senhores e seus dependentes, especialmente escravos, são explicadas por Jackson Ferreira para compreender os jogos de interesses que envolviam os potentados / senhores de Morro do Chapéu do século XIX. O artigo de Nivaldo Oliveira Dutra analisa a presença negra na região do Médio São Francisco a partir da trajetória dos negros do Mangal / Barro Vermelho, áreas tradicionalmente ocupadas por povos de matriz africana. Conclui o autor que os festejos tradicionais se mantêm em torno das atividades religiosas e são decorrentes das relações dos moradores com sua ancestralidade e do senso de pertencimento ao território.

Como de praxe, desejamos aos leitores de Politeia uma ótima leitura e, além disso, esperamos que sintam nas reflexões desta apresentação e nos textos que compõem o dossiê uma provocação. Sentimento que pode levar a uma nova percepção sobre os interiores do Brasil, especialmente sobre os sertões. Espaço muitas vezes concebido como isolado, inculto, pobre e, acima de tudo, imprevisível. Os textos aqui apresentados mostram justamente o contrário: um espaço conectado com o mundo atlântico português, pensado e ordenado conforme os desejos da Coroa e dos colonos (concepção distante do binômio Metrópole versus Colônia!) e, acima de tudo, enriquecido pelas atividades comerciais e mineradoras. Ainda seguindo o protocolo, agradeço aos colegas diretores da revista o convite para organizar o dossiê e aos amigos e colegas espalhados pelo Brasil que, só pela graça de Clio, tornaram possível a construção de relações fraternas e acadêmicas.

Notas

  1. Dentre vários autores podemos destacar: Freyre (1973); Holanda (1994; 1989).
  2. Para o século XVI, podemos começar com a Carta de Pero Vaz de Caminha e citar os relatos de José de Anchieta, Hans Staden, Robert Southey, Pero de Magalhães Gandavo, Fernão Cardim e outros europeus que no decorrer dos séculos coloniais seguintes descreveram os povos, as formas de viver e a natureza do Brasil.
  3. Cf. La Fosse (1992).
  4. João da Silva Guimarães, mulato e português, adentrou os sertões das Minas Gerais e da Bahia durante o século XVIII. Inspirado pelas lendas acerca da existência de prata na Bahia, efetuou grandes conquistas para a Coroa portuguesa. João Gonçalves da Costa, preto forro e também português, abriu caminhos de conexões entre os sertões de Minas Gerais e da Bahia. As entradas e conquistas destes homens foram comandadas por Pedro Leolino Mariz, Superintendente da Comarca do Serro do Frio durante quase todo o século XVIII. Ver Ivo (2012; 2004).
  5. Para citar alguns pioneiros: Freyre (1973); Holanda (1994); Lapa (2000; Machado (1980); Canabrava (1984).
  6. Cf. Ivo (2012); Reis (2007); Guimarães (2008).
  7. Conforme escrita coeva.

Referências

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CANABRAVA, A. O comércio português no rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1984.[1.ed. 1942]

COSTA, A. G. (Org.). Os caminhos do ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Lisboa: Kapa Editorial, 2005.

D’ALMADA, A. A. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde. Feito pelo capitão André Álvares d’Almada. Ano de 1594. Leitura, introdução, modernização do texto e notas de A. L. Ferronha. Grupo de trabalho do ministério da Educação paras as comemorações dos descobrimentos portugueses, 1994.

FREYRE, G. Casa –grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 16. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. [1.ed. 1933]

GUIMARÃES, A. R. Falsários e contrabandistas nas minas setecentistas: Inácio de Souza e sua rede internacional de negócios ilícitos. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

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______. Monções. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

IVO, I. P. Homens de caminho: trânsitos, comércio e cores nos sertões da América portuguesa – século XVIII. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2012.

______. O anjo da morte contra o Santo Lenho: poder, vingança e cotidiano no sertão da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004.

LA FOSSE, E. de. Crônica de uma viagem à Costa de Mina no ano de 1480. Prólogo: J. M. de Carvalho. Lisboa: Veja Limitada, 1992. [Coleção Documenta Histórica]

LAPA, J. R. do A. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Hucitec; Campinas: Unicamp, 2000. [1.ed. 1966]

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MATTOSO, J. (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993.

PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

REIS, F. M. da M. Entre faisqueiras, catas e galerias. Explorações do ouro, leis e cotidiano nas Minas do século XVIII. (1702-1762). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.

Isnara Pereira Ivo – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) E-mail: naraivo@gmail.com


IVO, Isnara Pereira. Apresentação. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista – BA, v. 13, n. 1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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