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Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? – BAYARD (C-RMAX)
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? Tradução: Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 321 págs. Resenha de: CARVALHO, Fernando Lins de. Simbologia dos ritos funerários na Pré-História. Canindé – Revista do Museu Arqueológico de Xingó, Xingó, n.1, dez., 2001.
Há, na racionalidade humana, a maior das angústias: a consciência da finitude. A morte, enquanto rito de passagem implica em uma estrutura de sinalização. O rito, profano em sua aparência, abre-se para o sagrado. Na relação entre o caos (morte) e o equilíbrio (vida), os ritos funerários são possuidores da perturbação da morte mas instauram uma nova ordem. A morte introduz a desorganização no processo da vida diária.
As escavações arqueológicas revelam o culto prestado aos mortos na perspectiva de uma continuidade, de uma outra vida. A posição fetal do corpo, dominante nas culturas pré-históricas, simbolizaria um (re) nascimento, na mãe terra e seu fértil útero.
Nas culturas humanas, desde a neanderthal às contemporâneas, há modelos de ritualização do cadáver: aceleração da decomposição, inumação, defumação, embalsamamento, ingestão canibalesca, cremação e outros. Os ritos funerais estão em correspondência com os quatro elementos: o ar, com o cadáver exposto; a inumação no elemento terra, a mais praticada; a imersão no elemento água e , finalmente, o elemento fogo, com a incineração, praticada já no Neolítico. No fundo, apesar de suas múltiplas formas no tempo e espaço, as condutas apresentam um discurso manifesto: a aceitação de uma forma de sobrevivência.
Trata-se da luta humana para dominar simbolicamente a morte, negando a nossa finitude. Em 1968, Arlette Leroi-Gourhan, examinando o chão da tumba neandertalense de Shanidar, no Iraque, mostrou que o corpo fora posto sobre leito de folhas de pinheiro e coberto de flores.
Jean-Pierre Bayard, importante semiólogo francês, disserta com propriedade sobre o assunto, talvez porque “falar da morte é o meio mais eficaz para superar nossa angústia”. Entendamos, portanto, o rito mortuário como um rito de passagem, configurando-se o esquema integração-separação-integração.
O entendimento da morte como um rito de passagem foi genialmente sintetizado por Marguerite Yourcenar em as Memórias de Adriano: “procuremos entrar na morte com os olhos abertos”.
Torna-se necessário morrer para renascer. Esse o constante diálogo homem-natureza em seu eterno cântico de renovação. Somos apenas um momento da vida eterna.
Para algumas culturas aceita-se a reencarnação, baseada na continuidade da consciência. Contos de inúmeros povos exprimem a crença na imortalidade da alma, que passa por diversas fases antes de voltar à terra: a cosmologia primitiva aceita a doutrina dos mundos superpostos.
A reencarnação é o retorno do princípio espiritual a um novo invólucro carnal.
O enterro sistemático dos corpos humanos remonta, pelo menos, a cem mil anos do presente, na cultura neandertalense. Os corpos eram depositados em posições variadas, com o arranjo das sepulturas modificado de acordo com as ferramentas, vestígios de fogueira e restos de animais. Em alguns sepultamentos os corpos eram salpicados de ocre.
Nos sepultamentos o esqueleto passa sempre a ser acompanhado de mobiliário funerário, característica cultural dos sapiens sapiens. As sepulturas passam também a ser agrupadas.
A prática funerária mais utilizada é a do enterramento primário, em covas pouco profundas (0,5m). Quatro as posições principais dadas aos corpos: alongada, semidobrada, amarrada e em flexão forçada (feto).
Em geral, a posição do esqueleto é orientada na linha leste-oeste, com a cabeça voltada para o sol poente. Trata-se, simbolicamente, do reconhecimento dos ciclos da finitude na natureza: o nascer e o morrer do sol. “O sol morre todas as noites, atravessa o mundo das trevas e ressuscita todas as manhãs”. Luz e trevas passam também a estar associadas à vida e morte. Os mortos devem encontrar o caminho do além, o qual, muitas vezes, é situado no oeste, lugar em que o sol desaparece e parece morrer.
Algumas culturas registram também o sepultamento em dois tempos (enterramentos secundários). Os ossos, perdidas as carnes, são exumados e lavados, sendo submetidos a novos funerais. Para Bayard, o rito cinde toda a relação do defunto com a vida terrestre pois é necessário que a carne deixe os ossos para libertar a alma.
No mobiliário funerário os adornos e suas forças simbólicas faziam-se e ainda se fazem presentes em larga escala, caracterizando classe ou posição social do defunto. É provável que flores, penas, agasalhos de pele e outros tenham acompanhado o corpo mas, restam-nos somente conchas, dentes de animais ou humanos, vértebras de peixes, pérolas, seixos, ossos, marfim como vestígios do mobiliário fúnebre, notadamente das culturas pré-históricas. Esses objetos formavam colares, braceletes, pendentes e anéis. Nos vasos funerários restos de comidas que permitiriam ao defunto empreender sua longa viagem. O fogo, em geral símbolo da vida é bem presente nessas cerimônias. Pela oferenda depositada sobre ou na sepultura estabelece-se um vínculo entre os vivos e os mortos.
Os artefatos líticos, pingentes de conchas e outros foram executados para embelezar a sepultura e nunca usados.
Todas as civilizações, desde os tempos mais remotos afirmam que o homem tem vários corpos invisíveis (almas), os quais, na hora da morte, separam-se do corpo físico e continuam a viver em outro espaço cósmico.
Para o autor, segundo os ritos funerários das diversas religiões, a alma do defunto comporta-se como o faria a de um mortal: procura um lugar privilegiado, atravessa países desconhecidos e empreendem viagem longa e penosa; depois de muitas armadilhas, o defunto chega a outro mundo, cuja organização assemelha-se à do clã do qual ele provém e no qual a vida é muito mais feliz. Em todas as épocas o homem procurou penetrar esse mistério e aprofundar essa tênue faixa imprecisa entre a vida e a morte. Todos os povos, em todos os tempos, dedicaram e dedicam, com o culto dos antepassados uma festa ou data específica anual, a fim de honrarem seus mortos.
Para o ser humano primitivo a morte definitiva não existia e continuava sua vida em outro mundo. A relação dialogada com o universo cósmico e os reinos vegetal e animal comprovam essas transformações constantes: o que nasce, morre e renasce. A imortalidade se identifica com o princípio de todas as coisas, restaurado em seu estado primordial.
Humanos, não somos mais que um instante na eternidade. A vida terrestre é somente uma parcela de nossa vida cósmica.
Bastante inspirador, o livro SENTIDO OCULTO DOS RITOS MORTUÁRIOS: MORRER É MORRER?, numa apresentação elegante e uso de ilustrações, peca em um ponto específico: não verticalizar alguns tópicos que são essenciais e ser repetitivo em outros. No entanto, o que não falta na obra de Bayard é matéria de reflexão e debate. Tais lacunas não comprometem a continuação da obra para os estudos da interface entre a vida e a morte em suas múltiplas linguagens. Há ainda um longo caminho a percorrer.
Fernando Lins de Carvalho – Professor do Departamento de Ciências Sociais.
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