Sêneca e o estoicismo | Paul Veyne

Buscar a sabedoria, exercer as virtudes e eliminar as paixões humanas. O estoicismo foi uma filosofia helenística que ao chegar a Roma, ainda no período republicano, pregava uma vida baseada nos princípios filosóficos que ordenavam todo o cosmos e o destino dos homens segundo as leis da natureza. Paul Veyne, historiador e arqueólogo francês especializado em Roma Antiga, lecionou na Escola Francesa de Roma, na Sorbonne e na Universidade de Provença. Em 1975 entrou para o Collège de France, onde foi titular da cadeira de história romana até 1998. A obra em análise, Séneque: Entretiens Lettres a Lucilius (1993), leva a assinatura deste brilhante historiador e chega ao Brasil com o título Sêneca e o estoicismo (reimpressão em 2016). Veyne debruçou-se sobre diversas obras do filósofo romano Lúcio Aneu Sêneca (1 a 65 d.C.) e captou em sua pesquisa aspectos históricos e do pensamento Antigo que retratam a sociedade romana nos governos dos Imperadores Cláudio e Nero.

O livro foi organizado em três grandes momentos: Prólogo; Sêneca e o estoicismo; e por fim um epílogo que descreve a última fase da vida de Sêneca que se afastou da vida política para dedicar-se mais ao otium da filosofia até sua condenação ao suicídio após Nero descobrir que o mesmo estava envolvido na famosa conspiração de Caio Calpúrnio Pisão, um senador romano, em 65 d.C.

A riqueza da obra de Veyne convida o leitor a realizar uma reflexão sobre diversos conceitos que ainda são amplamente discutidos no mundo contemporâneo: a moralidade, a felicidade, as virtudes, as paixões, a honestidade, o suicídio, o exílio, o tempo, entre outros temas, que permeiam a escrita senequiana e levam o historiador francês a debater sobre tais assuntos com vários pensadores que se destacaram na História do pensamento ocidental como Aristóteles, Kant e Freud. Para Veyne, o estoicismo de Sêneca procurava libertar seus discípulos das mazelas humanas geradas pelas paixões irracionais exemplificadas pelas ambições desenfreadas das riquezas, as lutas de gladiadores, o gosto pelas artes cênicas e musicais, e tudo o que afastava o indivíduo de uma vida virtuosa guiada pela razão estoica. Tal visão, onde o estoicismo se constituiria como uma filosofia libertadora das angústias da alma direcionando o homem da Antiguidade Clássica para uma vida equilibrada e longe das dores irracionais ocasionadas pelas paixões, também foi analisada por Cícero Cunha Bezerra em seu artigo A filosofia como Medicina da alma em Sêneca (2005). A filosofia estoica é compreendida por este autor como um remédio contra as práticas irracionais que afastavam o homem de uma vida tranqüila e equilibrada.

Nesse sentido, Veyne inicia seu livro com a parte introdutória do prólogo descrevendo a trajetória da vida do estoico e sua formação filosófica destacando seus primeiros passos na arte da filosofia transmitidos por seu mestre Átalo até sua ascensão como preceptor do jovem Nero (54 a 65 d.C.). Nascido em Córdoba, cidade hispânica da província da Bética (atual Espanha), Sêneca pertencia a uma família rica onde seu pai (Sêneca, o velho) desejava que os filhos estudassem em Roma e se enveredassem na arte da retórica e da esfera política. O talento de Sêneca como pensador rapidamente o conduziu para os círculos políticos do Senado Romano e a convivência na corte imperial de Cláudio.

Foi durante o governo de Cláudio que Sêneca sofreria uma condenação ao exílio na ilha de Córsega por se envolver em um suposto adultério e possíveis intrigas palacianas. O retorno de Sêneca a Roma seria um projeto da esposa deste imperador, Agripina, que confiaria a educação do filho Nero para o filósofo cordobês. O futuro princeps deveria governar Roma de acordo com os princípios virtuosos da razão estoica, tornando-se o modelo do bom governante, ou seja, um rei sábio.

Neste sentido, Veyne destaca a obra Sobre a clemência de Sêneca, escrita e direcionada para que Nero viesse a exercer a sabedoria e se afastasse de um governo tirânico, sendo clemente com todos os povos do Império. O bom governante deveria servir seus súditos e agir de acordo com o equilíbrio cósmico estruturado pelas leis da natureza, pois todo tirano acaba sendo derrubado do poder ou assassinado por aqueles que fazem parte de sua corte. A obra Imagens de Poder em Sêneca – Estudo sobre o De Clementia, de Marilena Vizentin (2005) apresenta como o princeps deveria ser clemente com seus opositores buscando desta forma perdoá-los transformado assim os inimigos em aliados. Mas o livro de Veyne vai além das expectativas do leitor que apenas tem por objetivo se prender aos aspectos filosóficos do estoicismo. O historiador analisa a sociedade romana no período dos Imperadores da dinastia Julio-Claudiana sem cair na mera descrição dos fatos.

É possível perceber na escrita de Veyne a preocupação em comparar as fases do estoicismo com filosofias da Modernidade (Kant e Rousseau) ou com as ideias de progresso e do devir da História presentes em estudos como os que Marx realizou para que a classe proletária compreendesse seu processo de libertação inserido na luta de classes contra a burguesia europeia. Veyne consegue relacionar as teorias desses pensadores sem perder de vista seu foco investigativo, aproximando-se constantemente de Sêneca e mergulhando nas obras do filósofo romano. Explora com maestria os diversos escritos senequianos como as Questões Naturais, as Consolações a Márcia e a um liberto de Cláudio conhecido como Políbio, o tratado intitulado Sobre os benefícios e finalmente as cartas direcionadas ao discípulo que Sêneca mais estimava e pertencia à ordem dos cavaleiros romanos, Gaio Lucílio Junior. As Cartas a Lucílio não apenas fazem parte do grande conjunto de obras de Sêneca, mas acabam por se constituir na fonte histórica mais citada nos estudos de Veyne. Foram escritas durante o período de afastamento de Sêneca da vida política (63 a 65 d.C.), onde Nero já demonstrava aversão aos conselhos do estoico e inclinava-se para uma vida regada pelos prazeres.

Os princípios filosóficos estoicos são analisados por Veyne em seu segundo capítulo Sêneca e o estoicismo. São diversos os conceitos que compõem o arcabouço teórico nas obras senequianas. Veyne demonstra como o estoicismo estava fundamentado nas leis da natureza. O homem era um ser cosmopolita, pois se ligava ao cosmos através da razão, representando em seu espírito (hegemonicon) as leis da natureza. Tal representação seria traduzida em ações retas (kathekontas) ou virtuosas livrando o indivíduo de uma vida pautada pelos vícios, ou seja, as más condutas. Sobre a representação estoica, Luizir de Oliveira (1998) afirma que a presença da virtude no homem constituía o próprio bem sendo o momento onde o indivíduo se harmonizava com o cosmos e se tornava parte dele. Era nesse momento que o hegemônico (hegemonicon), a parte diretiva da alma, realizava a representação compreensiva ao buscar na realidade descobrir a verdade em consonância com o cosmos.

A razão, ou a Natureza, nada mais seria do que o princípio formador e ordenador de toda a realidade cósmica e dos homens. No livro de Jean Brun, O Estoicismo (1986), a razão estoica é comparada a um fogo artífice. Esta teoria, segundo Brun, se aproxima da teoria de Heráclito de Éfeso, antigo pré-socrático do século VI a.C., que acreditava ser o universo formado por um lógos que era o fogo demiurgo de toda a realidade.

Viver conforme a natureza era se submeter a um deus providencial que possibilitaria ao homem alcançar uma vida sábia. Ser sábio significava vencer as dores e os sofrimentos gerados durante a existência independente das riquezas ou da pobreza, da saúde ou das doenças, da liberdade física ou da escravidão. De acordo com o estoicismo, para se obter uma vida feliz, serena e sábia, era necessário seguir os ditames deste princípio ordenador. Exercer a razão era praticar ações virtuosas como a temperança, a justiça, a coragem e a prudência, definidas por Veyne como as quatro virtudes estoicas. Em História da Filosofia Antiga (2002), Giovanni Reale destaca que as demais virtudes existentes eram subordinadas a estas.

Sêneca enfatiza em suas Cartas a Lucílio a importância de se vencer todos os infortúnios do destino alicerçado nos ensinamentos de sua filosofia. Neste sentido, outro aspecto necessário para se tornar um sábio estava na ideia de se buscar constantemente uma espécie de segurança interna, criando uma fortaleza interior capaz de resistir a qualquer tipo de sofrimento. Para um estoico a vida somente teria valor quando as virtudes estavam sendo praticadas e direcionavam o sábio para uma vida feliz. A felicidade não era definida pela riqueza ou pelos cargos conquistados na carreira política (cursus honorum). A felicidade deveria estar de acordo com as leis da physis, colaborar com o fluxo do universo, levando o indivíduo a viver no presente sem se abalar com os reveses do destino. Veyne ainda destaca que para Sêneca a felicidade deveria colaborar com a coletividade e não apenas ser algo efêmero e particular.

Talvez seja por isso que a morte nunca assustou Sêneca. Um dos pontos culminantes na teoria senequiana, e que comprova a tese de que um estoico deve ser impassível perante a dor, a perda das riquezas ou até mesmo perante a morte, será o tema que envolve o suicídio. Diante de um quadro político marcado por assassinatos (Veyne descreve o assassinato de Agripina e do jovem Britânico), perseguições aos opositores republicanos e um Principado caracterizado pela tirania de Nero, Sêneca retira-se da vida política. A morte de nosso filósofo é descrita na última parte do livro de Veyne intitulada de Epílogo. Os escritos de Tácito são as lentes de Veyne para narrar o episódio que levou Sêneca ao suicídio.

Acusado por participar de uma conspiração palaciana contra Nero, Sêneca será condenado ao suicídio por seu antigo discípulo. A narrativa de Tácito emociona o leitor que revive a cena final eternizando assim a firmeza moral senequiana perante a morte. Enfim, o livro de Veyne proporciona ao leitor e aos estudiosos do estoicismo, um rico material que apresenta não apenas a filosofia de Sêneca, mas diálogos com importantes pensadores do mundo da Modernidade e da contemporaneidade. Constitui-se como obra indispensável para aqueles que buscam aprofundar seus estudos sobre o estoicismo de Sêneca e do mundo romano na Antiguidade Clássica.

Referências

BEZERRA, Cícero Cunha. A filosofia como medicina da alma em Sêneca. Ágora Filosófica, Recife, v.5, n.2, p. 7-32, 2005.

BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.

OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: a vida na obra, uma introdução à noção de vontade nas epístolas a Lucílio. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – PUC, São Paulo, 1998.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 2002. v.3.

VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2016, 279p.

VIZENTIN, Marilena. Imagens de poder em Sêneca: estudo sobre o De Clementia. São Paulo: Ateliê, 2005.

Fabrício Dias Gusmão Di Mesquita – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Bolsista pela Fundação de Amparo a Pesquisa de Goiás (Fapeg). E-mail: professorfabriciomesquita@gmail.com


VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2016. Resenha de: MESQUITA, Fabrício Dias Gusmão Di. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.2, n.2, p.1-6, 2018.

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Seneca: selected dialogues and consolations – ANDERSON (RA)

ANDERSON, Peter J. Seneca: selected dialogues and consolations. Indianapolis: Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc, 2015. Resenha de: DINUCCI, Aldo. Revista Archai, Brasília, n.21, p. 337-340, set., 2017.

This volume presents a selection of Seneca’s dialogues and consolations. It is composed of introduction, the translations of selected Seneca’s dialogues and consolations, biographical information of key individuals, glossary of Latin words, and index of  historical persons. The five parts of the book are  thus briefly described and evaluated below.

The Introduction is divided into eleven sub- sections. In the first subsection, Anderson presents a well-written account of Seneca’s life (p. xi- xiii).  Concerning the philosopher’s exile after his implication in an adulterous affair with Julia Livilla,  Anderson points out that almost all ancient sources consider Seneca not guilty. A weak point in this  argument is that Anderson does not mention the  referred primary historical sources, which would  be useful to the reader.

The next sub-section deals with the literary qualities of Seneca’s philosophical writings. Anderson  correctly points out that literary form and philosophy are, in Seneca, two sides of the same coin, noting  that, through these writings, Seneca is simultaneously aiming at showing literary excellence and at  philosophically persuading the reader. In the third subsection (“A note on the translations”), Anderson discusses the difficulties to render Seneca’s dialogues in English. In order to achieve this, the translator – based on Lindsay’s Oxford classical text – tries to replicate Seneca’s prose, consistently rendering the following six key words:  animus  as  “spirit”, mens as “mind”, virtus as “virtue”, otium  as  “retirement”, bonum as “good”and  malum  as “bad”.

The next sub-section examines the interplay between Seneca and Stoicism. In the historical account of the Stoic school, however, Anderson does not  mention Diogenes of Babylon. Some information  about him should be provided, as he was the first  Stoic philosopher in Rome, being sent to the Eternal City (together with the Academic Carneades and the Peripatetic Critolaus) in 155 BC to appeal a fine,  and to deliver public lectures on Greek philosophy, which much impressed the Romans (cf. Aulus Gellius, Attic Nights, vii. 14; Cicero, Academica, ii. 45).

After the historical account, Anderson makes  two important assertions: in the first place, in  Seneca’s time, Stoicism was a “holistic practice of a set of principles and belief “(p. xviii), which is in  marked contrast to the contemporary conception of philosophy; secondly, there are centuries of other  philosophers’ reflections behind Seneca’s arguments.

The next subsections present and clarify the  following Stoic reflections and concepts that underlie Seneca’s philosophical works: the concept of a providential and living god (p. xx), the celebrated  expression “to live according nature”, the idea that each person is responsible for her or his actions  through the rational capacity and the use of impressions (phantasiai), the concept of oikeoisis (p. xxii), and the indifferents (adiaphorap. xxiii).

In this latter sub-section, Anderson correctly notes that, for the Stoics, things as wealth (which was the same of Seneca’s case) and poverty are indifferent  and, therefore, cannot guarantee happiness (p. xxiv), which is an important thing to note, as sometimes Seneca’s wealthy is regarded as inconsistent with  his claims of being a Stoic. In fact, for the Stoics,  wealthy can be used for the good or for the bad, as everything else which is indifferent.

The introduction ends with three informative  sub-sections: the dating and the addresses of the  dialogues and consolations, and a further reading  sub-section.

Anderson translates the following Seneca’s works: “On providence”, “On the resolute nature of the wise man”, “Consolation to Marcia”, “On the happy life”, “On retirement”, “On serenity of the spirit”, “On  the shortness of life”, “Consolation to Polybius”,  “Consolation to his mother Helvia”. The subtitles  of these works are the original and correspondent ones in Latin. My only suggestion with regard to  the translation of the titles is the rendering of  De constantia sapientis  as “On the resolute nature of  the wise man”, which would be better translated as “On the firmness of the wise man”.

Anderson’s translations of Seneca’s selected works are sound. Elucidative footnotes, mainly concerning individuals and historical facts mentioned by Seneca, are supplied. The book ends with biographical information for key individuals, a glossary of Latin words and an index of historical persons.

In summary, the book provides good translations and plenty information concerning Seneca’s  dialogues and consolations. Thus, it is an excellent tool for students and teachers of Latin literature and Stoic philosophy.

Aldo Dinucci – Universidade Federal de Sergipe (Brasil). E-mail: aldodinucci@yahoo.com.br

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Pequenos poderes na Roma imperial. Os setores subalternos na ótica de Sêneca | Luciane Munhoz de Omena

A professora da UFG, Luciane Munhoz de Omena, publica livro resultante da sua pesquisa de doutoramento, na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Norberto Luiz Guarinello. Como ressalta, logo no prefácio, a professora da UFG Ana Teresa Marques Gonçalves, a autora demonstra como os setores subalternos eram atores políticos relevantes durante o Principado (27 a.C. – 197 d.C.). Omena agencia, em seu estudo, diversos pontos de vista ao corrente das discussões epistemológicas mais recentes, a começar pela crítica aos regimes de verdade, tal como proposto por Michel Foucault, mas também pelo uso do conceito de capital cultural, oriundo de Pierre Bourdieu, destacados pela autora já na introdução. Outros horizontes são apresentados no decorrer da obra, com autores como Peter Burke, Georges Balandier e Mikhail Bakhtin. A autora, de forma muito apropriada, insere sua obra nas discussões brasileiras, com menções a estudiosos como Fábio Faversani, Renata Senna Garrafoni, Norberto Luiz Guarinello, Fábio Duarte Joly e Norma Musco Mendes, entre outros. Ressalte-se, ademais, a consulta de dissertações e teses inéditas, em particular sobre Sêneca (e.g. Ronildo Alves Santos e Ingeborg Braren). Leia Mais