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Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade – ELIAS; SCOTSON (REi)
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2000. Resenha de: LAZLORAHMEIER. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 2, p. 149-152, jul./dez. 2012.
Os estabelecidos e os outsiders nasceu de um estudo realizado por Norbert Elias e John L. Scotson durante aproximadamente três anos em uma área de construções suburbanas de uma grande cidade industrial próxima de Leicester, região central da Inglaterra, no final da década de 1950 e início da década de 1960. Durante esse período, Scotson era professor de uma escola dessa área, enquanto Elias trabalhava para um Programa de Educação de Adultos na região. Foi um trabalho desenvolvido através de dados coletados a partir de estatísticas oficiais, relatórios governamentais, documentos jurídicos e jornalísticos, entrevistas e, principalmente, “observação participante”.
Inicialmente o estudo buscava esclarecer os diferenciais de delinquência juvenil entre os bairros da região, mas, pouco a pouco, os problemas encontrados ali foram exercendo um determinado fascínio nos autores, devido a seu caráter paradigmático. Perceberam que os problemas daquele microcosmo eram comumente encontrados, em escala muito maior, na sociedade como um todo. Isso deslocou o interesse da pesquisa para um problema mais geral, o das relações de poder entre as diferentes zonas da comunidade.
Segundo Elias e Scotson, o deslocamento do foco da pesquisa evitou o que poderia ter sido uma perda de tempo, já que no terceiro ano da investigação os diferenciais de delinquência entre os bairros, que inicialmente os haviam norteado, praticamente desapareceram. Mesmo assim os dois bairros mais antigos conti¬nuaram a estigmatizar o bairro mais novo como uma área de alta delinquência. Entender o porquê das opiniões persistirem, apesar da mudança dos fatos, além de entender por que os fatos, em si, haviam mudado, foram questões que se apresentaram no decorrer da pesquisa.
O livro apresentado aqui foi fruto desse trabalho, o qual foi conduzido de maneira relativamente aberta, sem decisões preestabelecidas em relação ao problema a ser pesquisado, nem em relação a um prazo fixo, deixando-os livres para mudar o rumo da pesquisa da maneira que lhes parecesse mais interessante, o que, segundo os autores, ajudou a neutralizar qualquer ideia preconcebida sobre o que era ou não significativo no estudo de uma comunidade.
Com uma população de menos de 5.000 habitantes, Winston Parva – nome fictício dado à comunidade estudada – era dividida em três bairros, sendo a Zona 1 uma área residencial de classe média e as Zonas 2 e 3 áreas operárias. Os habitantes das Zonas 2 e 3 eram praticamente iguais em relação à sua renda, ocupação profissional, nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” e nível educacional. Todos os indicadores comumente usados como diferenciais estruturais das relações de poder apontavam para uma linha divisória entre a Zona 1 e as duas Zonas operárias, mas não foi o encontrado. A divisão estava justamente entre as Zonas 2 e 3, sendo que sua única diferenciação aparente era o fato de a Zona 2 ser um bairro operário antigo enquanto a Zona 3 era um bairro operário constituído recentemente.
Os habitantes da Zona 2 (chamada de “aldeia”), na maioria, eram membros de famílias que já viviam ali há algum tempo, duas ou três gerações, e sentiam-se estabelecidos, como donos do local. Os habitantes da Zona 3 (loteamento) haviam chegado há pouco tempo a Winston Parva. Os primeiros “imigrantes” chega¬ram atraídos pela oferta de empregos na região. Posteriormente, a partir de 1939, devido à mudança da situação do país, mais precisamente após a crise de Munique, chegaram também as famílias dos militares lotados num regimento próximo; depois ainda, com o bombardeio de Londres, uma fábrica de equipamentos londrina, juntamente com seus empregados, também mudaram-se para lá. Ainda, a expansão de algumas indústrias locais teve sua contribuição em atrair outras pessoas de diferentes partes do país.
O grupo recém-chegado era um grupo difuso, “anômico”, com famílias que não se conheciam, vindas de diferentes lugares da Inglaterra, famílias que, além de estranhas para os “aldeões”, eram estranhas entre si. O grupo da “aldeia” era extremamente integrado, coeso, “nômico”; era um grupo de antigos residentes, membros de famílias que se conheciam há mais de uma geração, que haviam criado um estilo de vida em comum e se orgulhavam disso.
Esse grupo coeso, que se conhecia há mais tempo, que tinha seus costumes, suas normas, viu chegar à sua porta um outro grupo, com pessoas de costumes e valores diferentes dos seus. Mais que isso, em um sentido metafórico, viu o outro adentrar à sua própria casa. Com o temor de uma “infecção” aos “bons” costumes, à tradição que tanto prezavam, à qual se identificavam e também eram identificados, os “aldeões” levantaram barreiras excluindo e humilhando os “inimigos”. Para isso desenvolveram como arma uma “ideologia” que enfatizava e justificava sua própria superioridade, e que rotulava os membros do outro grupo como sendo de categoria inferior. Essa ideologia de status disseminou-se e foi mantida por um fluxo constante de fofocas que se apegava a qualquer acontecimento, por mais isolado que fosse, capaz de reforçar a imagem negativa do grupo outsider, ao mesmo tempo em que se agarrava a qualquer acontecimento da “aldeia” que pudesse ajudar a engrandecer sua própria imagem.
O poder do grupo estabelecido era tão grande que, com o tempo, essa imagem de inferioridade foi capaz de penetrar até mesmo na autoimagem do grupo estigmatizado. Essa diferença de forças Elias atribui à diferença de coesão dos grupos envolvidos.
A alta coesão do grupo estabelecido permitia ao mesmo reservar a seus indivíduos posições de maior poder na sociedade, reforçando sua coesão e excluindo dessas posições qualquer membro de outro grupo, enquanto a falta de coesão do grupo estigmatizado tornava-o vulnerável.
É dentro desse contexto que, mais tarde, a delinquência juvenil surge, como forma de manifestação reativa dos jovens outsiders frente à exclusão e à coerção exercida pelos estabelecidos. A ausência de suporte familiar, assim como a ausência de políticas públicas que oferecessem atividades culturais, de lazer e de recreação a esses jovens, atividades encaradas como luxo pelas autoridades, contribuíram para a formação desse quadro. A delinquência e os atos de vandalismo passam a ser a forma particular que alguns jovens encontraram para manifestar o sentimento de inferioridade social largamente enraizado desde a sua infância, no interior de suas famílias e nas inter-relações com as outras crianças de sua comunidade. Evidencia-se aqui a relevância e o papel fundamental que atividades extraescolares e extraprofissionais, que gerem satisfação, têm na construção identitária dos jovens e em sua conduta social e escolar.
Isso reverberava também nos processos de aprendizagem dos jovens. No início da pesquisa, a maioria desses jovens figurava entre os piores alunos, tirando as notas mais baixas. Além disso, insubordinação com os professores, danos à propriedade escolar, brigas e uso de linguagem obscena, eram problemas frequentes.
Elias explica que, por mais que queiramos buscar um culpado para a situação por ele apresentada, é importante deixar claro que a relação estabelecida aconteceu ao acaso, não houve um plano deliberado de ação em um determinado sentido. A postura tomada, por exemplo, pelos “aldeões”, foi uma reação involuntária a uma situação específica, conforme a toda a estrutura, toda a tradição e visão de mundo da comunidade “aldeã”. “As tensões eram o concomitante normal de um processo durante o qual dois grupos antes independentes tornam-se interdependentes” (p. 64).
Temos é que entender a configuração das relações de poder, entender as configurações da comunidade, compreender a natureza dos laços de interdependência que unem, separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais. Não há como entender o “mau” comportamento sem entender o “bom”. Não há como entender o indivíduo sem entender a relação entre-indivíduos, que forma o indivíduo e é, ao mesmo tempo, formada por ele. Essa relação entre indivíduos, que formam uma comunidade, que formam o indivíduo, que vai formar novamente a comunidade é um padrão sempre mutante de relações entre as pessoas. Como uma dança. Nenhum dos grupos de Winston Parva poderia ter-se transformado no que era independentemente do outro. Evidencia-se nesse estudo o quão fictícios são os pressupostos teóricos que implicam a existência de indivíduos ou atos individuais sem a sociedade, assim como outros que implicam a existência de sociedades sem os indivíduos.
Winston Parva é apresentada aqui como um paradigma – como um modelo que indica a impotência com que as pessoas podem cair na cilada de situações de conflito por força de desenvolvimentos específicos. Ao demonstrar e, até certo ponto, explicar a natureza dessa armadilha, talvez o modelo nos ajude, sendo mais desenvolvido, a aprender pouco a pouco como desmontá-la e enfrentar melhor os problemas que ela suscita.
LazloRahmeier – Bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP.