Mar de tormentas: uma história dos furacões no Caribe, de Colombo ao Katrina | Stuart B. Schwartz

Filme sobre o furacao Katrina e exibido pelo SBT Reproducao El PaisUOL
Filme sobre o furacão Katrina é exibido pelo SBT (Reprodução: El País)/UOL

Corria o ano de 1780, a Revolução Americana encontrava-se em pleno desenrolar e o vizinho mar do Caribe estava cheio de tropas e navios. Entre os dias 10 e 16 de outubro, aquele que ficou conhecido como o “grande furacão” varreu a região, deixando um rastro de mais de vinte mil mortos. Todos os impérios europeus tiveram suas possessões afetadas. Com ventos que podem ter alcançado uma velocidade superior a 300 quilômetros por hora, a tempestade atingiu primeiro Barbados, arrasando a capital, onde quase nenhuma casa resistiu. Somente na Martinica, o naufrágio de uma frota francesa ancorada em Fort Royal fez quatro mil vítimas. Na cidade de Saint-Pierre, mais ao norte, um vagalhão de oito metros de altura lambeu uma centena e meia de casas, o hospital desabou e todas as quase cem freiras e noviças do convento de Saint-Esprit morreram. Para tornar tudo mais difícil, o grande furacão de outubro não veio sozinho, naquele ano houve pelo menos oito tempestades devastadoras na região. As plantações de cana-de-açúcar sofreram um duro golpe, a produção de alimentos ficou arruinada e os pescadores perderam seus barcos. Quando a temporada dos furacões acabou, os sobreviventes estavam desabrigados e a fome e as doenças tinham se instalado. Leia Mais

Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico – SCHWARTZ (Tempo)

SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. Resenha de: SOUZA, Jorge Victor de Araújo. “Menocchios Atlânticos”. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.

O dicionarista Raphael Bluteau, no início do século XVIII, definiu “tolerância” como: paciência, certa permissividade e conveniência. Uma dessas acepções, pelo menos, encontrava-se presente nos atos de diversas personagens elencadas pelo historiador Stuart B. Schwartz no resultado de sua busca pela tolerância religiosa no mundo atlântico Ibérico.

Stuart Schwartz, professor titular de história na Universidade de Yale, na década de oitenta expôs os “segredos internos” da produção açucareira no recôncavo baiano dos séculos XVI ao XVIII. Desta vez, sua lide enquadra-se em uma história sociocultural preocupada com as incongruências entre sistemas normativos ortodoxos, práticas religiosas diversas e discursos ambíguos. O caso do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg, foi o estopim do interesse pelo tema, como o próprio autor admite. Entre indivíduos de diversos estratos sociais, vassalos das coroas mais intransigentes em aspectos religiosos, Schwartz encontrou proposições cuja tópica era, com algumas variantes, que “cada um pode se salvar na sua lei”.

O livro é dividido em três seções. Na primeira, “Dúvidas ibéricas”, Schwartz mapeia, em quatro capítulos, diversas discordâncias religiosas e um determinado “relativismo religioso” presente no Velho Mundo, notadamente na Espanha. A segunda parte, “Liberdades americanas”, é constituída por três capítulos que tentam englobar a possibilidade de “tolerância” nos trópicos. O destaque fica por conta das análises sobre circularidade de livros e de ideias. A terceira parte, “Rumo ao tolerantismo”, com dois capítulos, ocupa-se da imbricação entre Estado e Igreja. Apontando que ao longo da modernidade o Estado foi se laicizando, Schwartz analisa a penetração de ideias iluministas na Península Ibérica, culminando em legislações que garantiram, mesmo que minimamente, a “liberdade de consciência” no alvorecer do século XIX.

A partir da documentação, principalmente inquisitorial, são analisados múltiplos discursos em torno de crenças salvíficas, nos quais são destacadas as vozes dissonantes que, em assuntos como a sexualidade, ousaram ir de encontro às normas da ortodoxia religiosa. Vozes como a de Pedro Navarro de Granada que afirmava que “ter acesso carnal um homem com uma mulher não era pecado mortal e bastava ser venial, porque os homens devem ir com as mulheres e as mulheres com os homens” (p. 55). De acordo com Schwartz, as declarações sobre fornicação simples constituem uma chave interpretativa – pode-se, através delas, acessar uma racionalidade prática, que expunha opiniões sobre atitudes da vida privada, a despeito das determinações teológicas sobre o tema.

Se a fornicação simples, pelo menos no século XVI, era tema recorrente entre o povo comum, a possibilidade de salvação fora da Igreja era muito menos propalada. Todavia, Schwartz encontra opiniões que colocam em xeque o senso comum sobre o período, como a de um mourisco na Espanha que, com boa dose de ironia, ousou: “Deus não fez bem seu serviço fazendo uns mouros, outros judeus e outros cristãos” (p. 62). Ao final do primeiro capítulo, Schwartz chama a atenção para a crença da unidade religiosa como condição sine qua non para a paz interna de um território, assertiva presente em obras como a do teórico político Diego Saavedra Fajardo. Nesse sentido, os que pensavam em uma chave religiosa relativista eram vistos como perigosos, pois colocariam em risco a própria unidade sociopolítica do Império.

Além dos católicos, Schwartz analisa os conversos e os mouriscos, recordando que na Península Ibérica, durante a Idade Média, as três grandes religiões monoteístas – islamismo, cristianismo e judaísmo – conviveram em diversas ocasiões. Eram, então, comuns as referências às três leis – a de Maomé, a de Cristo e a de Moisés. Aos poucos, a lei de Cristo foi se sobrepondo às demais, chegando ao ponto da tolerância não ser tão possível assim. Porém, nem todos os vassalos davam importância às questões espirituais. Isto, segundo o autor, é um “alerta contra as tendências de se enxergar o mundo no início da modernidade apenas em termos de religião e salvação” (p. 113).

São apresentadas possibilidades de atitudes tolerantes, mesmo entre os grupos mais insuspeitos, como os clérigos. Também é destacada a descrença como atitude possível, relativizando a famosa tese de Lucien Febvre em O problema da incredulidade no século XVI. Ao final de um capítulo, Schwartz teoriza que “o caminho da crença de cada um parece ter sido determinado mais por decisões e convicções individuais do que por características sociais” (p. 146). Um dos muitos aspectos discutíveis na obra.

“Portugal: cristãos-velhos e cristãos-novos”, capítulo aberto com uma frase que, como toda boa epígrafe, sintetiza perspicazmente as questões que serão desenvolvidas: “Se Deus não queria que os cristãos-novos fossem cristãos, por que haviam os senhores inquisidores de querer fazer os ditos cristãos-novos por força?” (p. 147). Trata-se de questão proferida em Évora, no ano de 1623, por um tal Domingos Gomes. Para a sociedade portuguesa, de acordo com o autor, os cristãos-novos constituíam um problema no que dizia respeito às dúvidas sobre a ortodoxia das práticas católicas. Todavia, mesmo em uma sociedade com estas características, era possível o surgimento de religiosos católicos que discordavam da opinião geral da Igreja. Foi o caso do insigne jesuíta Antônio Vieira, mesmo que motivado por certo pragmatismo econômico.

O Brasil é alvo do sétimo capítulo, onde a questão crucial é a possibilidade de salvação em uma “sociedade escravocrata”. São apresentados os agentes basilares das reformas tridentinas, os padres da Companhia de Jesus, cujas atuações já são bem conhecidas pelos historiadores. Schwartz aponta as desavenças entre jesuítas e outros letrados que insistiam em fazer leituras sui generis de diversas obras. Deparamos, então, com o caso do florentino Rafael Olivi, morador da Fazenda São João, em Ilhéus, e dono de muitos livros. Suspeito de heresia, Olivi foi preso em 1584, por ter feito severas críticas ao Papa e ao alto clero. Segundo Schwartz, o caso do florentino serve para demonstrar que “nem mesmo os remotos confins da colônia estavam fora do alcance de ideias alternativas” (p. 278).

O livro de Stuart Schwartz, traçando um amplo panorama que encobre áreas tão vastas – do Caribe a Cádiz e do Maranhão à região do Porto, por exemplo – traz grande contributo aos estudos sobre religiosidades e relações sociais no mundo atlântico, servindo de contraponto aos inúmeros exemplos de intolerância religiosa que abundam a documentação inquisitorial. Em tempos de intolerâncias explícitas e falsas tolerâncias, esta obra não poderia ser mais oportuna.

Jorge Victor de Araújo Souza – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense.