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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
A autora é conhecida por diversas obras que visam a análise antropológica e histórica da formação do Brasil, com foco nos perfis escravocratas e nos mitos desencadeados pela absorção acrítica de um ideal de brasilidade. Na obra resenhada não foi diferente, pois a autora delineia aspectos centrais da desigualdade racial existente no tempo presente, com justificativas do passado, a partir da memória de um Brasil sobejamente renegado na História oficial.
Alguns elementos da referida obra já haviam sido apontados no livro de Marilena Chauí na ocasião da publicação da obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária (2000), em que aborda a “cultura senhorial”, isto é, a relação mando-obediência nas relações públicas e privadas; as estruturas históricas fundadoras de desigualdade; a acumulação de capital e a privatização do público. Na contramão das comemorações em alusão aos 500 anos de Brasil, Marilena Chauí afirmava com propriedade, que nada, de fato, havia de se comemorar em função da persistência do autoritarismo mesmo sob regime democrático: “temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.” (CHAUÍ, 2000. p. 110). Leia Mais
A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasi | Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling
Difícil imaginar uma época mais propícia do que a que estamos vivendo para o lançamento de um livro sobre uma pandemia. Com A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling retomam a parceria que produziu Brasil: uma biografia (2015), e apresentam um oportuno estudo sobre um acontecimento de fundamental relevância que evidenciou a profunda desigualdade social brasileira; o negacionismo por parte das autoridades e a falta de organização do Estado no combate à doença. Como se pode notar, são muitos os paralelos que se podem traçar com a tragédia em curso provocada pela covid-19 no Brasil, e obviamente isso não passou desapercebido pelas autoras. Fica claro, portanto, que são recorrentes as vezes em que as duras lições que a História brasileira nos ensina não são aproveitadas.
O livro é dividido em dez capítulos, sendo sete deles dedicados a apresentar um panorama de como as principais capitais brasileiras lidaram com a espanhola. É acompanhado também por diversas imagens que retratam as enfermarias, as autoridades sanitárias, as cidades à época e recortes de jornais com caricaturas, poemas, anúncios de remédios milagrosos e relatos do caos instaurado pela epidemia. Destaca-se que o Brasil era um país acostumado aos surtos epidêmicos, fossem eles ocasionados pela febre amarela, varíola, tuberculose, peste bubônica ou cólera. A então jovem República empreendera um esforço em mitigar tais males, através de expedições científicas nos então pouco desbravados sertões do país. Belisário Pena, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas são nomes preponderantes dessa geração. O saneamento das cidades, que à época era sinônimo de ambiciosas reformas urbanas conforme os padrões europeus, expulsou a população dos centros das cidades para áreas afastadas sem as menores condições sanitárias, num verdadeiro “urbanismo de exclusão”. Além do caso notável do Rio de Janeiro, esse processo ocorreu em capitais como Recife, Salvador, Porto Alegre, Belém e Manaus. Leia Mais
A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil | Lilia Moritz Shwarcz e Heloisa Murgel Starling
Difícil imaginar uma época mais propícia do que a que estamos vivendo para o lançamento de um livro sobre uma pandemia. Com A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling retomam a parceria que produziu Brasil: uma biografia (2015), e apresentam um oportuno estudo sobre um acontecimento de fundamental relevância que evidenciou a profunda desigualdade social brasileira; o negacionismo por parte das autoridades e a falta de organização do Estado no combate à doença. Como se pode notar, são muitos os paralelos que se podem traçar com a tragédia em curso provocada pela covid-19 no Brasil, e obviamente isso não passou desapercebido pelas autoras. Fica claro, portanto, que são recorrentes as vezes em que as duras lições que a História brasileira nos ensina não são aproveitadas. Leia Mais
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz (R)
É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.
Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos
Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.
É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.
Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.
Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.
Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.
Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.
O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.
Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.
Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.
A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.
Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.
A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.
Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.
Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.
Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.
Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.
É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.
Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: menezes.fs@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política a qual atravessamos reveste o livro de importância, uma forma de indicar as raízes históricas do autoritarismo que hoje paira sobre parte da consciência nacional e seu chefe de governo. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a expressão pública do conservadorismo, era urgente que um(a) historiador(a) propusesse algumas respostas para dar conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu métier especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, ou seja, mais acessíveis. Este é um importante valor do livro em questão. Leia Mais
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
Um país historicamente caracterizado por uma cidadania incompleta e falha, marcado por políticas de mandonismo, patrimonialismo, várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência. Uma nação que, apesar de vivenciar o maior período de vigência do estado de direito democrático desde 1988, não conseguiu constituir uma cultura democrática efetiva e nem uma república plena, combater de fato suas desigualdades e a concentração de renda, a discriminação contra negros e indígenas, e eliminar as práticas de violência de gênero. Resultantes de contradições estruturais e históricas, esses problemas continuam basicamente inalterados e tendem a reaparecer – à semelhança de um fantasma para nos assombrar – em momentos de crise política, econômica e social, de polarização política e da ascensão de governantes autoritários eleitos com base no uso das mídias sociais.
É o Brasil do início do século XXI – seus males, problemas e raízes históricas – e o incontestável ressurgimento do conservadorismo e do autoritarismo com a eleição de Jair Messias Bolsonaro que a historiadora Lilia M. Schwartz discute em seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, em diálogo com as reflexões de seu livro anterior Brasil: Uma Biografia2 – escrito em conjunto com a historiadora Heloísa M. Starling – e inspirado nas reflexões sobre o Brasil contemporâneo em sua coluna quinzenal no Jornal Nexo. Leia Mais
Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz
Creio ser desnecessário apresentar a renomada escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora de muitas obras no campo das ciências humanas. Iremos nos limitar a dizer que é uma pesquisadora com formação em História e Antropologia que, ao longo de suas pesquisas, tem contribuído sobremaneira com o debate acerca das relações raciais no Brasil. O livro O Espetáculo das Raças é um exemplo cabal do que estamos falando.
O objeto de nossa resenha, o livro Lima Barreto: Triste Visionário, publicado pela conceituada Editora Companhia das Letras, no ano de 2017, discorre sobre o escritor negro Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto. Leia Mais
Sobre o autoritarismo brasileiro – Lilia Schwarcz / Rodrigo Perez / 23 jun 2020
Coluna “Livros que merecem uma sentada” dessa semana. Apresento o belíssimo “Sobre o autoritarismo brasileiro”, de Lilia Schwarcz.
Mostro como a autora combina teses consagradas no “pensamento social brasileiro” com fartos dados estatísticos para produzir uma interpretação da realidade nacional que denuncia as forças do atraso que ao longo da história do Brasil travaram qualquer qualquer projeto de desenvolvimento sustentável, inclusivo e de longo prazo.
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Sobre o autoritarismo brasileiro / Lilia M. Schwarcz
Escravidão, Racismo, Mandonismo, Patrimonialismo, Corrupção, Desigualdade social, Violência, Raça, Gênero, Intolerância, Tempo Presente, Brasil, Século 19, Século 20, América
Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).
Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p).
É preciso tentar entender, em suma, os caminhos percorridos por nós, brasileiros, na construção deste país que ainda se faz muito desigual e injusto, é preciso que nós, historiadores, inventores do passado (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007), na lida com o seu inventariado, coloquemos a nu o Brasil, naquilo que ainda o faz um país do atraso e autoritário. Penso eu que foi essa responsabilidade, diante do caos, que provocou na antropóloga e historiadora brasileira, Lilia Moritz Schwracz, a necessidade de escrever uma obra como a que foi recém-lançada pela Companhia das Letras em 2019, intitulada Sobre o autoritarismo brasileiro.
No atual momento da história brasileira, discutir temas como escravidão, racismo, mandonismo, corrupção, desigualdade social, violência, etc, constitui-se como uma tarefa fundamental, como que um lembrete aos incautos sobre os verdadeiros dilemas do país. Como diria o velho historiador: “o papel do historiador é lembrar aquilo que a sociedade insiste em esquecer”.
O livro é curto, cerca de 255 páginas que se entregam à uma viagem ao Brasil profundo, revelando aspectos não tão somente de seu passado, mas demonstrando claramente como este passado ainda ecoa no presente, produz mártires, heróis e muitos esquecimentos ao longo de sua história. É válido ressaltar que alguns temas que aparecem no livro já foram discutidos pela antropóloga em alguns de seus outros livros e artigos, como o capítulo Escravidão e Racismo, que aparece na coletânea História da Vida Privada no Brasil (volume 4, 1998), ou como também de seu outro recente livro, escrito em parceria com Heloísa Starling, intitulado Brasil uma biografia.
O livro é dividido em duas partes: uma primeira contém oito capítulos com os temas: Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e; Intolerância. Na segunda parte um breve panorama sobre o nosso presente, intitulado Quando o fim é também o começo: Nossos fantasmas do presente.
Em uma proposta honesta, já na introdução podemos sentir a que vêm as páginas seguintes. A autora se posiciona diante dos fatos, toma partido, sua obra não se torna panfletária deste ou daquele lado, num país divido, mas propõe-se a ser mais que uma obra enunciativa, ela denuncia os mandos e desmandos pelos quais passamos ao longo de nossa história. E por falar em História, um aviso aos leitores: “história não é bula de remédio”. Isso para falar das várias vertentes que explicaram e explicam ainda hoje o Brasil, seja em suas teses validáveis, ou naquelas ainda hoje criticadas pela Academia, mas que fazem parte do imaginário popular acerca do país, algumas delas como a de democracia racial, difundida por Gilberto Freyre.
Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático (SCHWARCZ, 2019, p. 19).
É em torno do binômio passado/presente que toda a narrativa do livro se dá. Parte-se do presente, do nosso presente, marcado por discursos autoritários, para mostrar-nos que sempre fomos autoritários, que as desigualdades entre nós, de tão oficializadas pelo Estado, já foram por nós naturalizadas, não nos causando estranhamento e apatia, pelo contrário, é dessa naturalização de tais características nossas que novos sujeitos autoritários surgem e ganham total apoio do povo, culminando numa perpetuação de nossas desigualdades, só que agora mais cristalizada, edulcorada, aceitável e demandada.
A historiadora nos faz lembrar que, diante de toda a história brasileira o tema da escravidão se coloca como um problema ainda não superado pela sociedade. O racismo advindo dela, como a posse de uma pessoa por outra, só geraria um regime nefasto e sanguinolento. Por isso, no livro abundam dados de pessoas que sofreram na pele os desígnios da escravidão na época de sua vigência, como também daqueles que, pós abolição, encontraram-se sem qualquer tipo de assistência por parte do Estado, culminando nos atuais atrasos vivenciados por nós até hoje, como a constituição segregadora de nossas cidades, regiões específicas delas nas quais eclodem violências fruto da desigualdade.
Ao longo de sua análise é possível notar a perpetuação de antigos sujeitos no cerne do estabilishment brasileiro. Figuras frutos das antigas oligarquias do baronato brasileiro que, incrustando-se na vida política de determinadas regiões brasileiras, formam verdadeiros clãs no Estado. Como é o caso da família Sarney, dos Gomes e até mesmo, atualmente, da família Bolsonaro, na realidade carioca. Esse mandonismo brasileiro é um dos motivos de seu atraso, uma vez que esses clãs têm o Estado como um campo seu, particular, em atendimento aos seus interesses privados.
Surge daí a evidente noção de Patrimonialismo que desemboca em diversos tipos de corrupção na República. No livro, fica demonstrado que a corrupção é a palavra-chave de nosso dicionário político ao longo da história, desde a primeira carta de Pero Vaz de Caminha até os recentes escândalos de corrupção que malogram os dias brasileiros. Tais atos políticos, naturalizados pelos brasileiros de parte a parte, fazem do Brasil o que ele é hoje; um país democrático, é certo, mas que a qualquer tempestade vê a sua democracia se esvaindo e não sente no povo a sua inspiração de esperança e futuro melhor, pelo contrário, o povo, aqui, parece ter cumprido sempre o papel de apoiador alienado dos interesses das elites do momento.
Hoje, saltam aos nossos olhos milhares de homicídios pelas grandes cidades brasileiras. Suas vítimas? Na maioria das vezes jovens negros, habitantes das favelas. Onde erramos nós? O que fez com que estes homens brasileiros, tão guerreiros e trabalhadores, brutalizarem seus olhares para a vida e morte do próximo? Gays, lésbicas, trans e tantos outros morrem brutalmente, silenciosamente, todos os dias, a cada minuto no Brasil, simplesmente por pertencerem a este ou àquele grupo a que chamamos “minorias”. Por serem minorias o Estado não os tem assistido de seus direitos, demandas, sonhos.
Raça e Gênero, outro problema tão grave, tão brutal, que parece ter se extrapolado no dia a dia brasileiro. Homens que têm em mente que suas parceiras são sua posse as matam, as encarceram e as agridem, física e existencialmente. Tudo se perdeu, as colorações político-partidárias parecem estar estampadas na face de cada um, sem diálogo, sem conversa, esquerda ou direita. Precisamos de mais poesia, de mais humanidade, de democracia e de história. “Precisamos descobrir o Brasil, escondido atrás as florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado, Precisamos colonizar o Brasil”.
Às vezes, na descoberta deste Brasil nos defrontamos com tão tristes histórias, a sua história, que a lida parece ser impossível. E nós historiadores, que nos posicionamos diante do caos, inventando e inventariando esse cipoal de tragédias por pouco perdemos as esperanças, de tão atacados, difamados, violentados que somos. Seja em nossos escritos, em nossos posicionamentos, em nossos recortes e escolhas, desvendemos o Brasil, esse jovem país, acossado por tantas precariedades. Este é o nosso papel, “farejar a carne humana”, numa história cada vez mais humana e voltada para os homens, problematizemos o Brasil, mesmo que seja sem esperança, vai que por aí, por sorte ou compaixão ela renasça novamente no coração dos homens. Não sei, na democracia tem dessas coisas!
Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP. Edusc, 2007.
ANDRADE, Carlos Drummond. Hino Nacional. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/5668/hino-nacional . Acessado em: 30/08/2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Marco Túlio da Silva – Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Membro do Núcleo de Estudos Históricos da Arte e Cultura (NEHAC-UFU). Bolsista CNPQ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2763247048100798. E-mail para contato: marcotuliodasilva@hotmail.com.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SILVA, Marco Túlio da. Autoritarismos e o Brasil: uma fissura no silêncio. Em Perspectiva. Fortaleza, v.6, n.1, p.339-342, 2020. Acessar publicação original [IF].
Sobre o autoritarismo brasileiro – SCHWARCZ (RBHE)
SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro: São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: ENZWEILER, D. A., & CAREGNATO, L. Sobre o autoritarismo brasileiro. Revista Brasileira de História da Educação, n.20, 2020.
O livro resenhado, Sobre o autoritarismo brasileiro, de autoria de Lilia Moritz Schwarcz, tem como objetivo “[…] reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm aflorado no tempo presente, mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos” (Schwarcz, 2019, p. 26). Ao descrever a construção de certa história oficial do Brasil, a autora sinaliza como esse tipo de narrativa pode criar um passado mítico e harmônico, bem como, por outro lado, pode servir de base para a naturalização de estruturas autoritárias. Ancorada no objetivo central de sua obra, pontua pressupostos básicos na elaboração e perpetuação de uma história pautada em mitos nacionais, mostrando-se profundamente enraizados ao imaginário brasileiro atual, destacados nas entradas temáticas de cada um dos capítulos subsequentes. A autora é graduada em História pela Universidade de São Paulo-USP, possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Campinas- UNICAMP e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo-USP. É professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, editora e membro editorial de periódicos nacionais e internacionais.
A obra livro divide-se em 10 capítulos. Entre os capítulos inicial e conclusivo, há 8 capítulos temáticos variados, como descrevemos na sequência. Dentre tais elementos, pode-se destacar que, apesar das permanências e recorrências em relação a questões historicamente problemáticas no Brasil, conforme as temáticas abordadas, conclui-se que as novas ondas de autoritarismo não são semelhantes às de outrora. De acordo com as análises, os novos governos com tendências autoritárias, que se destacam em diferentes países nos últimos anos, dentre eles o Brasil, estão articulados a outras demandas.
No capítulo 1, ‘Escravidão e Racismo’, destaca-se que a escravidão, no Brasil, por ter sido um dos últimos países no mundo a aboli-la (via processo conservador), foi mais que um sistema de organização econômica, mas uma forma de moldar as condutas individuais. Aponta que há mudanças nas formas de manifestação do racismo: do discurso científico e biológico (darwinistas raciais) no período pós-emancipação, para um tipo de ideologia social. Conclui-se que, apesar das conquistas do movimento negro desde o século XX, da legislação e dos direitos adquiridos no século XXI, há muitas evidências estatísticas que indicam a perpetuação de práticas discriminatórias e racistas, apontando que avanços e novas conquistas ainda são necessárias.
Já no capítulo 2, ‘Mandonismo’, aponta que o modelo da família patriarcal pode ser compreendido a partir da análise do modelo colonial brasileiro. Utilizando-se de exemplos do caso açucareiro, sinaliza que há poucas mudanças para a época posterior, de ascensão do café na região Sudeste, na qual predominam lógicas muito semelhantes. Ao deter-se sobre o período republicano, destaca que permanece um perfil oligárquico no governo da nação. No decorrer do século XX, também há práticas decorrentes dos modelos descritos, dentre eles o coronelismo, presente nos dias atuais em algumas regiões brasileiras, perpetuando a relação entre mandonismo, concentração de renda e poder político. Contemporaneamente, também se evidencia que, pelas novas possibilidades frente às mídias sociais, surge a figura do político populista digital, uma espécie de ‘presidente-pai’. De acordo com as análises, a linguagem que herdamos do mandonismo encontra sobrevida na nova era dos afetos digitais, igualmente autoritários.
No capítulo 3, ‘Patrimonialismo’, destaca que, historicamente, o Brasil possui um tipo de déficit republicano. Salienta que há dois grandes inimigos no cenário nacional: o patrimonialismo e a corrupção. Para refletir sobre tais práticas, utiliza-se de estudos de variados sociólogos brasileiros para pensar especificidades locais, como a cordialidade, as práticas nepotistas e suas relações com a formação colonial brasileira. Como síntese, indica que a prática política nacional é fortemente marcada pelos afetos, resultando em um tipo de corporativismo. E, nessa lógica, assuntos relativos ao Estado tornavam-se, no limite, problemas de ordem privada. Com a Independência, criam-se algumas instituições, mas as práticas patrimonialistas não mudam de forma considerável. No período do 2º Reinado há uma nova versão da corte, resultando na formação de uma nobreza bem específica, denominada de ‘meritória’, com características distintas da nobreza europeia, marcadas pelo nascimento. No período Republicano, são criadas algumas instituições mais fortes, porém as práticas descritas permanecem. Como exemplo, destaca-se a força do coronelismo durante a 1ª República, bem como o voto de cabresto, prática político-cultural muito presente no respectivo contexto. Com a Constituição de 1934 e de 1988, por exemplo, há garantias legais consideráveis. Atualmente, ainda é possível localizar legados de tais práticas no cenário político nacional, especialmente pelos dados relativos às ‘bancadas dos parentes’. Também se destacam algumas dinastias que dominam o poder político em alguns territórios e as barganhas pessoais pelas emendas parlamentares para angariar votos nos espaços municipais como práticas ainda correntes.
Já no capítulo 4, ‘Corrupção’, destaca que a corrupção, junto ao patrimonialismo, seria um inimigo da república presente até os dias atuais. No Brasil, tais práticas mostram-se presentes tanto no mundo político quanto nas relações humanas e sociais. Nas análises, identifica conexões, em maior ou menor escala, da corrupção no cotidiano atual, enraizadas desde os tempos do Brasil Colônia e Império. Como exemplo, cita o modo particular de negociação e relação no período colonial, marcado pelo ‘jeitinho brasileiro’. Já no início da república, se destaca o coronelismo, que trata de uma combinação entre a consolidação do modelo republicano federalista e a ascendência das oligarquias agrárias, marcada pela prática do voto de cabresto. É somente após o ano de 1945 que o Estado brasileiro passa a legislar sobre corrupção, tanto na perspectiva do Estado, como sobre práticas individuais. Entretanto, pontua-se que, por exemplo, em 1964, os militares utilizaram-se do discurso contra corrupção como argumento para a tomada de poder, apesar de promoverem novos tipos de corrupção. Já no período da 3ª República, pós Constituição de 1988, destaca-se que as instituições passaram a funcionar melhor, articuladas às denúncias da imprensa. Assinala que a corrupção pode ser compreendida como uma forma endêmica de governar no Brasil. Pelo seu caráter de enraizamento histórico, pela falta de instituições públicas fortes e pela pouca transparência no trato com as questões públicas, a corrupção justifica a crise institucional e política atualmente vivida.
No capítulo 5, ‘Desigualdade Social’, destacam-se as variadas facetas da desigualdade no Brasil. De acordo com suas análises, as desigualdades têm uma herança que remonta ao passado colonial e indica que o Brasil é formado dentro de uma linguagem da escravidão que, somada à corrupção e ao patrimonialismo, esboça um quadro propício para a constituição de um país desigual. Na mesma perspectiva, destaca que a desigualdade social nunca foi centralidade nos projetos políticos que governaram o país. Atentando-se ao período colonial, demonstra-se que, juntamente aos parcos investimentos, o acesso à educação primária era privilégio de poucos. Durante a 1ª República e a promulgação da nova Constituição em 1891, poucas reversões consideráveis puderam ser evidenciadas. É somente na década de 1920, marcada pelo ‘otimismo pedagógico’, que a área educacional recebe novo alento, especialmente pelas experiências estaduais promovidas por expoentes do movimento da Escola Nova no país. Apesar de investimentos pontuais, a educação brasileira ainda era marcada fortemente por um dualismo: uma escola para as elites e classes médias e outra para as camadas populares. Destaca-se que a reforma Capanema e a tendência de urgentemente profissionalizar a massa trabalhadora, manteve e também fortaleceu tal dualidade do sistema educacional. Com a Constituição Federal de 1988, são estabelecidas duas prioridades para a educação nacional: universalização do ensino fundamental e erradicação do analfabetismo. Ao se comparar o Brasil com outros países latino-americanos, com semelhante passado colonial, o país vigora como um dos mais problemáticos, considerando-se seu déficit educacional. Conclui-se que a desigualdade social tem um impacto na vida educacional da população em idade escolar.
Já no capítulo 6, ‘Violência’, destaca-se que o Brasil, de acordo com estatísticas recentes, está entre um dos países mais violentos do mundo. Analisando a violência urbana, indica que, entre a década de 1980 e o ano de 2003, ocorreu um tipo de corrida armamentista, contida pela aprovação do Estatuto do Desarmamento nesse último ano. Apesar dessa constatação, a partir do ano de 2014, dados sugerem uma nova tendência ao armamento pessoal da população brasileira. Historicamente, o sistema escravocrata consolidou-se como uma maquinaria repressora. Apesar do curso histórico não poder ser explicado por fatores únicos, é possível averiguar padrões de continuidade perpetuados por práticas violentas anteriores. Sugere-se que a epidemia de violência que assola o Brasil deve ser compreendida pela análise de múltiplos fatores, para que o ceticismo em relação à segurança pública não leve a posturas radicais, tais quais as tendências atuais têm apontado. Com o gradativo aumento da violência, atrelada à sensação de impunidade, sobressaem-se tendências autoritárias. Outra faceta da violência no Brasil são as lutas do campo. Nelas, destacam-se a invisibilidade e a dizimação das populações indígenas do Brasil. Dos bandeirantes até a luta contra o agronegócio, os povos indígenas brasileiros têm sido sistemática e historicamente alvos de violências. Destaca que a luta de tais grupos se pauta por direitos historicamente negados. Nesse sentido, utiliza-se uma narrativa mitológica para tornar invisíveis tais sujeitos sociais em suas lutas.
No capítulo 7, ‘Raça e Gênero’, são abordados marcadores sociais variados, como raça, geração, local de origem, gênero e sexo, capazes de produzir diferentes formas de subordinação. As questões relacionadas aos negros se destacam: disparidade salarial, tempo de vida, violência urbana. Quando há outros elementos interseccionados, o quadro torna-se ainda mais alarmante. Dentre eles, destaca a epidemia da violência contra jovens negros das periferias urbanas. O Brasil, nesse caso, também promove um tipo de racismo dissimulado: apesar de a narrativa popular caracterizar o país pela sua capacidade de inclusão cultural, as evidências apresentadas indicam um grave quadro de exclusão social e racial. O racismo estrutural e institucional também se direciona às mulheres, especialmente pela violência sexual. A violência contra mulher e a própria cultura do estupro têm raízes que remontam ao período colonial, marcado por características patriarcais. Uma das justificativas que condicionam o ataque a alguns públicos é que quanto mais autoritários os discursos, maiores as necessidades de controle sobre o corpo, a sexualidade e a própria diversidade.
E no capítulo 8, ‘Intolerância’, se propõe a desconstrução da ideia de que somos uma nação avessa aos conflitos e pacífica na sua índole. Aponta que a ‘negativa’ também é uma forma de intolerância, uma vez que evita o confronto. Entretanto, hoje passamos a praticar o oposto: em um cenário polarizado, não há mais necessidade de ser pacífico, dando-se ênfase à intolerância e à violência. Assim, pontua que tendências autoritárias funcionam pela lógica dos ódios e dos afetos, pois a forma binária produz desconfiança em relação àquilo que não pertence à ‘própria comunidade moral’. Essa lógica reforçaria o ataque à imprensa, aos intelectuais, à universidade, à ciência, entre outros, dando lugar à exaltação do homem comum. Conclui-se que a intolerância que hoje impera em nosso país tem raízes variadas, de longo, médio e curto curso. A cordialidade nunca existiu, mas caracterizou-se como uma “[…] performance política e cultural, e não um retrato fiel da ausência de atritos e ambiguidades entre os brasileiros” (p. 219). De acordo com a autora, a resposta para a crise só virá de um projeto de nação mais inclusivo e igualitário, possível a partir de sua aposta na educação pública e de qualidade.
Em suas considerações finais, retoma a ideia de que há fantasmas do passado que, invariavelmente, sempre voltam a assombrar. Governos de tendências autoritárias, por sua vez, costumam criar a sua própria história, sem preocupação com fatos e dados históricos. Pela defesa de um passado nostálgico, ‘o tempo de antes’, conjuga-se um léxico familiar de afetos, projetando simbolicamente uma espécie de civilização, com ordem e harmonia social, mas que, de fato, jamais existiu: uma memória fora do tempo. A plenitude perdida, nessa perspectiva, tende a criar mitos, líderes supremos, típicos dos governos com tendência autoritária. Nessa perspectiva, diferenciam-se as tendências autoritárias do século XXI dos nazismos e fascismos presentes no século XX. Assim, defende-se uma educação pública com sentido republicano, para que o sentido democrático seja respeitado. Para superar nosso déficit republicano e evitar crises democráticas, tal qual a que vivemos atualmente, a educação seria uma forma de promover menos líderes carismáticos e mais cidadania consciente e ativa. Apesar dos efeitos das crises, em suas palavras, elas também podem abrir frestas para outras possibilidades.
A obra resenhada evidenciou um estudo histórico, com variedade temática, visando compreender a crise institucional e política que assola o país. Mostrou-se de extrema relevância para compreensão do cenário atual e das próprias raízes históricas que constituem esse quadro. Da mesma forma, defende-se a ideia de que só é possível mudar o futuro a partir de uma perspectiva histórica. Dentre as suas variadas contribuições, destacam-se as diferenciações acerca dos autoritarismos do século XX em relação ao século XXI. Ao desmistificar a tese do brasileiro cordial, também possibilita compreender o fenômeno da intolerância que assola o país. Assim, entende-se o porquê desse fenômeno e, da mesma forma, torna-se possível vislumbrar formas de resistência. Esses elementos destacam a urgência e relevância de estudar, analisar e combater o autoritarismo, conscientes de suas raízes históricas ainda presentes, como fantasmas, em nossa atualidade. E a obra analisada mostra-se potente para esse diagnóstico, enfatizando a centralidade da educação nesses movimentos.
Referências
Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras
Deise Andreia Enzweiler – Possui Graduação em Pedagogia (UFRGS). Especialização em Educação Inclusiva (Unisinos). Mestrado em Educação (PPGEdu-Unisinos). Doutoranda em Educação (PPGEdu-UNISINOS – Bolsista CAPES-PROEX). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Inclusão (GEPI-Unisinos- CNPq). E-mail: deiseandreia@gmail.com
Lucas Caregnato – Possui Graduação em História (UCS). Especialização em História Regional (UCS). Mestrado em História (UPF). Doutorando em Educação (PPGEdu-Unisinos – Bolsista CAPES-PROEX). Presidente do Conselho Municipal de Educação de Caxias do Sul e coordenador do Núcleo de Acolhimento à Diversidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: lucarato@gmail.com
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).
Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p). Leia Mais
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
O imaginário sobre o passado brasileiro está permeado de interpretações que, sendo oriundas de um antigo projeto excludente de nação, ignoram uma série de aspectos e problemáticas que marcaram diferentes temporalidades da história do país, da colônia à república. Ideias como o “mito das três raças”, a democracia racial e o entendimento de que a escravidão brasileira teria sido mais “branda” não raro surgem quando se discute a história do Brasil. Esta visão relaciona-se diretamente com a historiografia brasileira do século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tinha como objetivo criar uma imagem de um Brasil cujo passado era harmônico, e o futuro, glorioso.
É desse ponto que parte a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, na introdução de seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro. A obra é resultado da junção de conteúdos de outro livro da autora, Brasil: uma biografia (2014), com algumas colunas escritas por Schwarcz ao jornal Nexo. Feito a pedido da editora Companhia das Letras, Sobre o autoritarismo brasileiro tem a intenção de fornecer ao leitor um panorama geral de algumas questões que atravessam a história do Brasil e ainda se fazem presentes na atualidade. Tendo em vista as recentes disputas de ideias, a turbulência política e econômica e a crise social que o país tem vivenciado na última década, Schwarcz busca não atribuir acriticamente as raízes dos problemas atuais ao passado, mas sim propor um olhar à nossa história para lembrar que, diferentemente do que comumente se acredita, a intolerância e a violência sempre marcaram a figura do brasileiro.
Cada capítulo do livro aborda uma temática específica, evidenciando as variadas facetas do autoritarismo no Brasil. O primeiro, “Escravidão e racismo”, busca reforçar que o sistema escravista, muito mais do que uma estrutura econômica e social, “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita” (SCHWARCZ, 2019: 27-28). Questionando a ideia de que o escravismo no país teria sido mais brando ou “menos pior”, a autora destaca os altos índices de pessoas negras traficadas dos portos africanos para o Brasil, bem como os sofrimentos pelos quais os escravizados passavam diariamente. Por outro lado, um sistema severo significou uma série de resistências: as fugas, formações de quilombos, insurreições e revoltas com diversos meios e motivações não devem ser deixadas de lado.
A abolição foi adiada até onde pôde, e foi empreendida de forma gradual e conservadora, culminando na Lei Áurea de 1888. Contudo, isso não significou uma preocupação em ressarcir ou integrar a população recém-liberta à sociedade. Ainda, a adoção de teorias científicas deterministas representaram uma tentativa de substituir uma desigualdade por outra: antes estabelecida entre escravos e senhores, agora a desigualdade era legitimada pela biologia. Em seguida, a autora realiza uma análise da questão racial na contemporaneidade. Embora hoje não sigamos mais a ideia de raças biológicas nem a falácia de que cor determina conduta moral, nossa sociedade é estruturada pela “raça social”, que opera na cultura e nas mentalidades. No Brasil, a desigualdade social tem cor, e a população negra sofre uma dupla morte: o apagamento de sua memória e o genocídio que marca os indicadores sociais.
O segundo e terceiro capítulos são dedicados, respectivamente, ao mandonismo e ao patrimonialismo. Ambos os aspectos são centrais para entender a hierarquia social do Brasil colonial, fundamentada na concentração de grandes latifúndios monocultores nas mãos de poucos homens, que consistiam na “nobreza da terra”. Era esta aristocracia que detinha os privilégios sociais, políticos e econômicos, num sistema patriarcal onde o homem era o chefe de família e a mulher possuía um papel secundário. Esta forma de organização social acabou por contribuir para a criação da imagem do senhor de terras como a pessoa que distribuía benefícios aos mais próximos e poderia, eventualmente, cobrar por seus favores, aumentando sua influência política.
Tal estrutura perdurou no período republicano. O coronelismo é sua expressão mais relevante na República Velha, e marcou as relações entre os senhores de terras, governadores e a presidência da República. Esta personalização do poder acabou, ainda, por perpetuar o sistema desigual e excludente no meio rural da atualidade: as famílias tradicionais de ruralistas são as maiores beneficiadas pelo Estado, detém a maior parte das terras e ainda possuem considerável relevância nos cenários políticos regional e nacional. Tais clãs perderam algum espaço desde as eleições de 2018, contudo, a estrutura autoritária que os beneficia é a mesma, apesar das reformas políticas empreendidas desde a redemocratização. Ademais, a figura do pater familias, “autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e ‘próximo’ para quem o segue e compartilha das suas ideias” (SCHWARCZ, 2019, p. 65) ainda exerce grande apelo no imaginário popular.
Por sua vez, o patrimonialismo é conceituado pela autora como um extrapolamento da divisão entre as esferas pública e privada, quando o Estado é usado como ferramenta para fins particulares. Consequentemente, uma série de práticas, ideias e comportamentos de clientelismo, de conchavo, e de arranjos pessoais que atropelam os limites da regra pública, torna-se cotidiana nas movimentações e negociações políticas. A ideia do Estado como uma extensão do ambiente doméstico permite, então, que o poder político seja exercido pelos detentores do poder (homens, brancos, aristocratas) para fins pessoais. E, apesar das ações levadas a cabo para combater tais práticas existirem desde a Constituição de 1934 (e principalmente com a Constituição de 1988), as práticas patrimonialistas persistem. De acordo com Schwarcz, um dos maiores exemplos disso é a chamada “bancada dos parentes” no Congresso: em 2018, dos 567 parlamentares, 138 eram oriundos de clãs políticos, um aumento de 22% em relação a 2014 (SCHWARCZ, 2019, p. 83). O próprio presidente Jair Bolsonaro bem representa esta questão, já que três de seus filhos possuem cargos políticos. Estreita relação tem o patrimonialismo com a corrupção, tema do quarto capítulo. A autora reforça que, embora possa-se dizer que a corrupção existe no Brasil desde o período colonial, erramos ao simplificar este raciocínio afirmando que as práticas corruptas da contemporaneidade são as mesmas do passado. De fato, o termo “corrupção” tem sido ressignificado múltiplas vezes, assumindo diferentes concepções conforme a alteração dos contextos políticos.
Uma questão relacionada a isso é a recorrência ao combate à corrupção no discurso político para legitimar quebras da normalidade constitucional, como foi o caso do golpe de 1964 e da ditadura militar, que, apesar de assumir a bandeira da anticorrupção, utilizou de práticas ilegais em seus projetos e negociações. De todo modo, a autora conta que, com a redemocratização, o melhor funcionamento das instituições políticas permitiu que os escândalos ganhassem mais espaço nos jornais e no debate público, como foi o caso de Fernando Collor. Essa melhora na percepção da corrupção também se vê no caso do Mensalão. Apesar de afetar diretamente o Partido dos Trabalhadores (PT), então partido que ocupava a presidência, o Mensalão foi o primeiro caso em que as políticas de fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público Federal levadas a cabo nos últimos anos surtiram um efeito visível. A autora finaliza o capítulo fazendo uma reflexão sobre a corrupção hoje, em que a Operação Lava Jato tem investigado um complexo esquema que envolvia partidos e empresas. Schwarcz pontua que, apesar da relevância do tema no debate público, o combate à corrupção não pode tornar-se uma cruzada moralista focada em indivíduos, com um discurso raso e populista de “luta contra a roubalheira” (SCHWARCZ, 2019: 121). O que é necessário é investir em planos duradouros que combatam práticas cotidianas enraizadas no comportamento da sociedade e que não joguem fora os ganhos que tivemos desde a Constituição de 1988.
Na sequência, Schwarcz se volta às especificidades do cenário das extensas desigualdades sociais brasileiras. Partindo de um panorama estatístico dos níveis de concentração de riqueza no país, a autora estabelece uma série de ramificações, que envolvem desde um não acesso a serviços básicos até a impossibilidade de se consumir bens culturais e de ser uma pessoa plenamente inserida nas participações e nos diálogos políticos previstos pelo ideal de “república democrática”. Entre os elementos da ordem social brasileira que permitem a reprodução constante de tal assimetria, figuraria, em posição proeminente, a precariedade dos serviços educacionais públicos, não estendidos à totalidade da população infanto-juvenil em condições equânimes. Embora a obrigatoriedade de oferta de ensino público tenha sido instituída já em 1824, era irrisório o número de estabelecimentos constituídos. Assim, até meados do século XIX, o letramento consistiu em uma quase exclusividade das elites brancas, responsáveis por instituir proibições à formação educacional de pessoas negras escravizadas.
Na segunda metade dos anos 1800, o ensino seguia uma prática marginalizada, ainda que convenientemente exaltado como critério de seleção da parte do povo apta para votar. Conforme explica Schwarcz, o século XX trouxe transformações conservadoras a essa problemática — se o regime de Vargas pode ser reconhecido pela ampliação e concretização de um sistema de ensino efetivamente nacional, deve ser igualmente encarado como perpetuador de uma lacuna de possibilidades de formação individual entre alunos de famílias abastadas e descendentes da classe trabalhadora. A instituição de dois programas curriculares para o ensino secundário, um voltado à transmissão de saberes técnicos e outro à preparação teórica para ingresso em universidades, favoreceu a continuidade do exclusivismo do ensino superior aos estudantes que não precisavam iniciar suas trajetórias de trabalho ainda na adolescência. Na atualidade, a baixa democratização do direito à educação apareceria expressa em altos índices de evasão escolar e represamento, ocasionando, por consequência, a continuidade do ensino universitário e dos postos de maior remuneração enquanto privilégios de elite.
Relacionada às desigualdades sociais do país, a temática das múltiplas violências é pautada em seguida, com o estabelecimento de panoramas referentes à criminalidade urbana e aos conflitos agrários empreendidos contra comunidades historicamente resistentes à ordem colonial ou nacional. Envolvido naquela estão os altos índices de assassinato (30 homicídios/100 mil hab.), de armas de fogo em circulação e de receio da população em sofrer agressões por agentes policiais (SCHWARCZ, 2019: 156, 161-162). Schwarcz salienta que, apesar da vigência do Estatuto do Desarmamento desde 2003, observa-se, a partir do ano de 2014, aumentos expressivos no número de licenças para porte de armas por civis, bem como uma intensificação de lobbies políticos favoráveis à flexibilização de restrições colocadas pelo Estatuto (SCHWARCZ, 2019: 157-159). Assim, embora as armas de fogo sejam as principais ferramentas por trás da execução de mortes violentas (79,8% delas, aproximadamente), atendem a discursos de populismo autoritário que, diante dos reclamos populares contra a insegurança nas cidades, sugerem o fortalecimento de órgãos repressivos e letais — caso das polícias militares — e a simultânea individualização das políticas de segurança (SCHWARCZ, 2019: 161-164). Em decorrência do desvio de armas obtidas legalmente, seriam as milícias — grupos paramilitares compostos por agentes de segurança do Estado e políticos locais — as formações em mais próspera expansão na conjuntura de tráfico pela guerra às drogas.
Já a segunda esfera estaria dirigida a populações indígenas e quilombolas, usurpadas de seu direito à terra previsto pela Constituição de 1988, na medida em que órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) corroboram a morosidade dos processos de reconhecimento de suas terras enquanto áreas de válida demarcação. Aos indígenas, atribui-se um longo histórico de representações e de políticas delimitadas pelos ensejos dos grupos governistas brancos. Massivamente alvejados na colonização, foram, no século XIX, tornados matéria de inspiração à produção de obras artísticas financiadas por D. Pedro II, as quais objetivavam a materialização de uma identidade nacional apaziguadora, que via no grupo uma oportunidade de valorizar as raízes brasileiras diversas sempre mantendo a máxima de exaltação das contribuições europeias. No século XX, a adição de dispositivos legais prevendo garantias de preservação de seus territórios não mostrou efeitos práticos, legando os povos à vulnerabilidade frente a interesses capitalistas de ocupação territorial e de exploração de recursos. Os quilombolas, em contraponto, não chegaram a receber propostas de proteção pelo Estado antes de 1988, enfrentando dificuldades para a legalização da posse de suas terras.
A seguir, a historiadora aprofunda suas abordagens fazendo uso de uma perspectiva analítica delimitada, a interseccionalidade, traduzida, por sua vez, no uso dos chamados “marcadores sociais da diferença” como lentes de interpretação de estatísticas e de formas específicas de violência sucedidas no país. Aqui, nota-se a adesão da autora a um horizonte plural e complexificado de investigação das realidades nacionais, que vai ao encontro das perspectivas teóricas propostas por feministas negras estadunidenses desde o final dos anos 1980. Nas obras da jurista Kimberle Crenshaw, observa-se a defesa de uma ramificação das identidades de sujeitos sociopolíticos rumo a uma superação de modelos fixos e superficiais regidos apenas por reivindicações de gênero, de sexualidade e de raça em separado. A teórica argumenta que a densidade de problemáticas coletivas e de formas de existência exige que se leve em conta todos os eixos anteriores em conjunto (CRENSHAW, 1990: 1241-1245). Schwarcz converge com tal intuito, adicionando aos panoramas numéricos de raça e gênero fornecidos fatores regionais, etários e geracionais.
Entre as questões de raça e gênero pautadas, são destacadas algumas ocorrências: em primeiro lugar, a desigual propensão à morte por parte de pessoas negras. Se jovens pretos e pardos são desproporcionalmente atingidos pela violência policial e pelo encarceramento e massa, também seus familiares sofrem dificuldades pessoais — os homens mais velhos tendem a morrer cedo, sem acessar tratamentos de saúde e diagnósticos médicos. As mulheres adultas passam pelo mesmo, estando sujeitas (em percentual superior ao das mulheres brancas) à ameaça constante dos feminicídios. Esses constituem, junto às taxas de estupro, o segundo norte descritivo da autora no capítulo em questão. Para enfocar as violências de gênero, Schwarcz recupera algumas das explicações já delineadas acerca das origens patriarcais da sociedade colonial brasileira. Dialogando com os ideais de Judith Butler, acrescenta ao pano de fundo da tradição patriarcal escravista a heteronormatividade, padrão cultural de conduta que seria responsável pela imposição de hierarquias de poder hierárquicas às relações entre indivíduos dos gêneros feminino e masculino.
Denunciam-se, então, os altos números de feminicídios (50 mil entre 2001 e 2011, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA]) e de violações sexuais (cerca de meio milhão por ano) cometidos, sendo estas últimas uma forma de violência direcionada fortemente a crianças, violadas majoritariamente por pessoas próximas, no interior de suas casas (SCHWARCZ, 2019: 198). Motivados pela misoginia arraigada ao sistema de valores heteropatriarcais, ambos os crimes aparecem em registros de violência contra mulheres lésbicas, travestis e transexuais, agredidas em situações de não aceitação de manifestações de gênero e de sexualidade dissidentes. Passando a um olhar mais global das violações contra pessoas LGBTQIA+, Schwarcz atenta para as expressivas taxas de assassinato de integrantes dessa comunidade (aproximadamente 500 ao ano), com ataques mais direcionados a sujeitos trans e travestis, e para a precariedade das condições de coleta de dados voltados a essa população, destituída do foco de políticas públicas desde janeiro de 2019 (SCHWARCZ, 2019: 207-215). Segundo atestam pesquisadores da causa trans no Brasil (BONFIM, SALLES, BAHIA, 2019: 155-164), a ausência de estatísticas consistentes acerca das violências experienciadas particularmente por LGBT+s classifica-se como uma das faces da necropolítica de Estado contra tais corpos, uma vez que inviabiliza a execução de medidas protetivas e a oferta de serviços específicos, aspectos também pautados por Lilia.
Adentrando os dois últimos capítulos da obra, a autora desenvolve um balanço acerca da crise democrática sentida a partir do golpe parlamentar de 2016. Em sua avaliação, recorre às conjunturas de nações que, tal como o Brasil, transmitiam internacionalmente a imagem de “democráticos”, mas que, em decorrência da intensificação de polarizações, adentraram uma zona cinzenta classificada sob o epíteto de “democraduras”. Sem romper completamente a ordem institucional, países como Hungria, Polônia, Estados Unidos e Brasil experienciaram a consolidação de governos sustentados pela intensificação de ódios binários e por sentimentos de aversão a identidades de grupos que, até então, vinham adquirindo direitos básicos e relativo espaço político. A partir da reivindicação de que os setores populares tradicionais (famílias brancas, pessoas de classe média, homens trabalhadores) seriam aqueles autenticamente éticos e, ao mesmo tempo, os sujeitos deixados de lado por Estados que falharam em prover empregos, segurança e infraestrutura, teria se desenrolado um recrudescimento das práticas de intolerância.
A fim de sustentar a narrativa de validação exclusiva dos setores tradicionais (e reacionários), saberes científicos, discussões acadêmicas e jornalísticas passaram a sofrer frequentes ataques visando a seu descrédito. Junto a isso, pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres, indígenas e adeptos de religiões de matriz africana foram convertidos em alvos de campanhas que colocam como norma os pilares da doutrina cristã, dando prosseguimento, na verdade, a um histórico de aniquilação de diversidades instaurado ainda no período colonial, seja pelas violências da escravização de africanos, seja pela conversão e genocídio dos povos originários de terras brasileiras. Em face da adesão de significativos percentuais demográficos às propostas de retorno a um suposto passado idílico aos setores abastados e não minoritários, Schwartz conclui: não nos devemos contentar com garantias democráticas oficiais, mas sim apostar na construção de uma cultura de defesa de princípios de diversidade e de participação cidadã, possível de se estruturar por meio da inserção de tais valores em projetos dos ciclos básicos do sistema público de educação.
Para além do amplo espectro de discussões e de explicações históricas apresentado pela obra e sintetizado nas linhas anteriores, merecem destaque ainda alguns outros fatores que concernem ao contexto de produção e de circulação do livro. Publicado em maio de 2019, Sobre o autoritarismo… logra denunciar retrocessos e impactos desencadeados tanto pelo processo eleitoral de 2018, quanto pelos primeiros meses da gestão de Jair Bolsonaro. Mesmo sem mencionar explicitamente sua figura — em uma escolha intencional da autora, que buscou se evadir de uma escrita centrada no Presidente de modo a não recair em uma narrativa personalista (MOTA, 2019) — Schwarcz alerta para os brutais aumentos das taxas de registro de crimes de intolerância em setembro e outubro de 2018, bem como para as consequências da reorganização da agenda de promoção de direitos de minorias sob o esdrúxulo, patriarcal e heteronormativo Ministério “da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”. Influenciada por sua formação, tece diálogos com trabalhos de nomes importantes da Antropologia, a exemplo de Manuela Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, sem deixar de lado os referenciais historiográficos por vezes ausentes em livros que se pretendem contadores do passado brasileiro hoje. Utilizando-se de uma linguagem clara, distancia-se do ideal de livro acadêmico rebuscado em sua redação. Com isso, fornece uma opção de leitura comercialmente acessível, concisa, historicamente embasada e dotada de viés crítico ao público leigo interessado em compreender mais sobre as desventuras sociopolíticas que afligem o Brasil. Essas, conforme evidenciado por Lilia Schwarcz em diversos momento, devem ser percebidas pelos leitores como uma sombra constante, vinculada à longa duração histórica e às particularidades dos arranjos conservadores das elites de cada período.
Referências
BOMFIM, Rainer; SALLES, Victória; BAHIA, Alexandre. Necropolítica Trans: o gênero, cor e raça das LGBTI que morrem no Brasil são definidos pelo racismo de Estado. Argumenta Journal Law, Jacarezinho, Brasil, n. 31, p. 153-170, jul./dez. 2019.
CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, n. 6, v. 43, p. 1241-1299, jul. 1990.
LILIA Schwarcz: “A todo momento, revelamos nossa raiz autoritária”. Fronteiras do Pensamento, Salvador, 29 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.
MOTA, Camila Veras. Brasileiro abandonou “máscara” de cordial e assumiu sua intolerância, diz Lilia Schwarcz. BBC, São Paulo, 01 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.
ROVANI, Andressa. Sempre fomos autoritários: Lilia Schwarcz diz que crise fez aflorar ressentimentos e que PT-PSDB falhou em não atender conservadores. UOL, São Paulo, 05 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.
Bruno Stori – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.
Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: STORI, Bruno; ZIMKOVICZ, Rafaela. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.154-167, 2019. Acessar publicação original [DR]
Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz
É lugar comum a divulgação da imagem do Brasil e dos brasileiros como amigáveis, respeitosos, hospitaleiros e, acima de tudo, pacíficos. A imagem de uma nação pacífica, detentora de uma natureza edênica, terra do samba, da mulata sensual e do futebol, tornou-se, por assim dizer, cartão postal do país, a qual definiria nosso lugar em um mundo pretensamente civilizado e heteronormativo. Uma propaganda, sem dúvida, que naturaliza o Brasil como uma terra cheia de alegrias e prazeres exóticos. Leia Mais
Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz
A escolha de Lima Barreto como autor homenageado pela 15ª edição da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), ocorrida em 2017, ensejou uma série de publicações que o tomaram como tema central. Nascido em 1881, ainda sob a vigência da escravidão e do regime monárquico, o negro carioca que ousou tornar-se escritor viveu numa época de transições cruciais para a história do Brasil e produziu, com sua literatura, um testemunho precioso que se oferece como um rico acervo documental para todos aqueles que desejam compreender melhor os significados de nossas primeiras décadas republicanas. Leia Mais
Lima Barreto: Triste Visionário | Lilia Mouritz Schwarcz
Importante historiadora de nossa atualidade, Lilia Moritz Schwarcz, desde os tempos de mestrado, se debruçou a estudar o período do século XIX e todas as questões que envolvem a abolição da escravidão e o cotidiano dos sujeitos escravizados. Professora de Antropologia da Universidade de São Paulo, é também docente visitante na Universidade de Princeton e editora da Companhia das Letras, onde coordena a seção de livros de não ficção e por onde foram publicadas todas as suas obras. Autora de livros como O espetáculo das Raças, Retrato em Branco e Negro e Brasil: uma biografia, Schwarcz lançou em 2017 o livro fruto de sua pesquisa dos últimos anos, cujo protagonismo ficou a cargo de um personagem que já aparecera antes em sua trajetória profissional, mas que nunca antes pudera se deter estudando: Lima Barreto.
Na época de escrever sua tese de doutorado, Schwarcz estudou a questão do darwinismo social – teoria debatida no início do século XX que afirmava a existência de diferenças profundas entre as raças humanas – onde surgiu a figura do romancista brasileiro como uma voz contrária à própria teoria, tirando todo o credo daquele que se tornaria um dos argumentos científicos em torno do surgimento do racismo. O contexto em que se fala é o da Primeira República brasileira, momento em que se prometeu a igualdade, mas também entregou a exclusão social de largas partes da população. Assim, o período tornou-se palco para muitas revoltas e manifestações a favor dos direitos sociais e civis, possibilitando a presença de indivíduos como Lima Barreto, que opinava, criticava, clamava por igualdade e por justiça, em nome de si mesmo e de todos os outros. O livro, cujo título ficou Lima Barreto: Triste Visionário, editado pela Companhia das Letras, foi lançado no início do segundo semestre de 2017, cuja data coincidiu com a ocorrência da Festa Literária de Paraty, importante evento do ramo editorial brasileiro e onde o autor homenageado na edição era Lima Barreto. Lilia Schwarcz e Lázaro Ramos, ator global, estavam presentes, debatendo e fazendo leituras sobre os escritos do romancista [1].
Tal qual se supõe uma biografia, Schwarcz sobrevoa toda a vida e trajetória do romancista, que viveu na passagem do século XIX para o XX e por meio de suas palavras, assumiu uma postura crítica diante da situação que o Brasil se encontrava. Desta forma, é logo na introdução que a autora realiza um trabalho cuidadoso, ao se postar, como pesquisadora, diante de seu objeto. Com uma linguagem capaz de transportar o leitor para o período em questão, Schwarcz narra as primeiras relações com Lima Barreto, tecendo os caminhos que levaram ela a querer escrever a obra. A maneira com a qual a mesma se coloca é quase que uma relação de amizade, pelo simples fato de querer entender a figura de Lima Barreto em todas as suas facetas. Não obstante, a pesquisadora deixa claro saber da existência da primeira e uma das principais biografias existente sobre Lima Barreto, publicada em 1952 com a autoria de Francisco de Assis. Nesse sentido, coloca o seu trabalho como fruto de suas indagações contemporâneas, em virtude da eclosão dos direitos civis e diferença na igualdade, além da presença de raça, questões já presentes nos escritos de Barreto em sua época. Consequentemente, faz uma relação com o fazer historiográfico, dizendo que o historiador desenvolve suas pesquisas com base nas perguntas de seu presente, tal qual afirmação de Lucien Febvre, citado por Schwarcz [2], onde o mesmo diz que a História é filha do seu tempo.
Triste e visionário: são os termos utilizados pela autora para caracterizar Barreto, e é nessa dualidade que a mesma vai desenvolvendo sua escrita. Utilizando-se de uma linguagem de fácil entendimento, possível de ser compreendida por estudiosos da área, mas também por leitores não acadêmicos, Schwarcz constrói a figura de Barreto como contraditória. Desse modo, afasta-o de uma possível heroicização, tornando-o apenas um homem de seu tempo. Narrando desde o seu nascimento até sua morte, a autora destaca, ao longo de dezessete capítulos, momentos e fases da vida do carioca. E nesse processo explora a atuação de Barreto nos mais diversos campos: desde a vida pessoal até mesmo a literatura e a política. Juntamente a isso, a historiadora procura tecer um contexto histórico, sempre partindo do cotidiano do autor, de tal modo a poder embasar o seu papel em meio a tudo aquilo. Logo, o leitor é convidado a realizar uma viagem pelo Brasil na passagem do século XIX para o século, num período de queda da monarquia e instauração de um novo regime. Por um lado, toda a expectativa pelo que um novo governo poderia trazer, incluindo mudanças na estrutura das cidades e o surgimento de novas práticas sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo, os problemas que a monarquia colocara e ainda persistiam no período republicano, dentre eles a própria questão dos sujeitos livres, mas que até pouco tempo eram escravizados.
Todo esse panorama é acompanhado de imagens e trechos de fontes da época, como jornais, incluindo crônicas, notícias, dando destaque muitas vezes aquelas escritas por Barreto. Deste modo, ao invés de tecer longos comentários e análises sobre, Schwarcz opta que o romancista fale, com suas próprias palavras, em momentos que julga necessário e relevante. Para facilitar ainda mais a leitura, cabe ressaltar o esforço no que tange o trabalho gráfico por parte da edição do livro, tornando a leitura ainda mais fluida e aprazível para o leitor.
A atuação de Lima Barreto, como já foi citado anteriormente, se deu por meio de colunas, romances e até a criação de periódicos, como é o caso do Floreal, que chegou às mãos de público carioca em outubro de 1907 e cujo diretor era Lima Barreto. Apresentava um formato pequeno e vinha com o objetivo de disputar o gosto dos leitores da cidade. O periódico refletia a postura crítica de seus membros, incluindo o próprio Barreto, diante da imprensa do período. Para os mesmos, os jornais em circulação no período atendiam a um público específico, sendo ele a burguesia, logo eram sensacionalistas. Dessa forma, não tinha preocupações mercantis e procurava apresentar as notícias de modo mais isento e próximo da população em geral. Isso acabou refletindo na trajetória do periódico, uma vez que não conseguia disputar espaço com os grandes impressos, sendo eles mais bem diagramados e que possuíam fotos, ilustrações, caricaturas e um projeto gráfico bem produzido. Outro alvo declarado era a Academia Brasileira de Letras, criada no período e que respeitava apenas uma “literatura muito pautada por regras gramaticais distantes da linguagem do povo” [3]. Apesar disso, é importante destacar que Lima Barreto tentara entrar algumas vezes na sociedade, não tendo sucesso em nenhuma delas.
A literatura foi outro ponto forte de sua atuação. Segundo Lilia Schwarcz, e que segue as análises de Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto tinha outros livros em preparo, mas decidiu lançar Recordações do escrivão Isaías Caminha com o objetivo de escandalizar. O romance narra a história do jovem Isaías, que chega à cidade grande cheio de esperanças de tornar-se doutor, mas acaba se deparando com o preconceito, a humilhação e a tristeza. É na narrativa que o autor representa algo que ele chamava de “’negrismo’: qual seja, uma projeção para o Brasil do movimento internacional de pan-africanos que, naquele momento, internacionalmente lidava com as dificuldades enfrentadas pela população negra no pós-abolição”[4]. Dessa forma, expõe com detalhes a cor de seus personagens, bem como o universo de constrangimentos que fazia parte do dia-a-dia dessas populações. Apesar do argumento envolvido no livro ser forte, o texto não foi recebido como era o esperado, também não se tornando um sucesso de crítica. Em vez de se deter na forte denúncia racial, presente em diversos momentos da obra, os críticos da época preferiram abordar a maneira como o livro tratou o jornalismo e as formas de sociabilidades literárias, e mais nitidamente, os periódicos. Tal postura “do contra”[5] acabou se repetindo ao longo de seus outros livros, sempre com um mesmo cunho: romance de crítica social. Lima Barreto queria provocar a intelectualidade carioca do período, e conseguiu tal feito.
Um terceiro campo de atuação que influenciou alguns outros foi a política, quando Lima Barreto se aproximou do anarquismo e das novas correntes libertárias, presentes no Brasil nas décadas de 1900 e 1910. Apesar de não ter se filiado, abertamente, a grupos ou clubes anarquistas, Barreto demonstrou interesse com as teorias que influenciavam colegas de geração e passou a veiculá-las em muitos de seus artigos. É nesse período que surge a tão lembrada sátira à Primeira República: Bruzundanga, que deu origem a um livro de mesmo nome, publicado após a morte de Lima Barreto. Na narrativa, o autor constrói um país fictício com diversos problemas sociais, culturais e econômicos, em que os ricos e incautos acumulam títulos acadêmicos e têm fama de eruditos.
Lilia Schwarcz sobrevoa a vida do escritor, destacando seus altos e baixos, seus feitos e suas polêmicas. A relação com a bebida, com os modernistas que vieram no mesmo período, com Monteiro Lobato e Machado de Assis e indo além até o seu triste fim, conforme palavras da própria historiadora, mostrando toda a construção posterior em torno de sua figura, o papel de Francisco de Assis Barbosa, primeiro biógrafo de Barreto são todos pontos destacados no desenrolar da escrita. Dessa maneira, dá um enfoque especial entre a relação entre Assis e Barreto, que se torna próxima, onde a imagem de ambos acaba se misturando. Isso se dá após a morte de Assis, quando sua esposa, d. Yolanda, doa a coleção de seu marido a José Mindlin, um grande bibliófilo brasileiro, e que por meio dela que Schwarcz tem acesso a boa parcela dos documentos de Barreto. É aqui que a autora traz a discussão de Pierre Nora, sobre lugares de memória, quando afirma que “qualquer objeto, qualquer documento, (…) só ganham sentido se incluirmos neles nossas lembranças e afetos”[6]. E de tal modo em que se teve o ganho de sentido entre Francisco de Assis Barbosa e Lima Barreto, teve-se o mesmo para com Lilia Schwarcz e seus protagonistas. Escrever um livro desses em tempos de discussões sobre preconceito e racismo levanta questionamentos que começaram no início do século XX e que permeiam a nossa sociedade atual. E que a partir da tomada de uma reflexão crítica sobre alguns pontos, podem dizer muito sobre nosso futuro. Desse modo, a impressão que se tem ao ler o livro é que a autora presta uma homenagem a um personagem tão importante na História de nosso país, deixando que o mesmo tenha um protagonismo e um reconhecimento tal qual deveria ser: triste e visionário.
Notas
1. Para ver mais: Acesso em: 16 nov 2017.
2. SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.16
3. Ibid., p.195.
4. Ibid., p.218.
5. Ibid., p.2345.
6. Ibid., p.508.
Lucas Krammer Orsi – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: lucaskorsi@gmail.com
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: ORSI, Lucas Krammer. Lima Barreto em três tempos: passado, presente e futuro. Cantareira. Niterói, n.28, p. 231 – 234, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]
Brasil: uma biografia | Lilia Moritz Schwarcz
Brasil: uma biografia [1], obra escrita em conjunto pela historiadora Heloísa M. Starling [2] e pela antropóloga e historiadora Lilia M. Schwarcz [3], traz em si, como toda boa síntese propõe-se a fazer, um sentido outro para a história desse personagem conhecido pelo nome que vingou entre tantos outros, Brasil.
Com o auxílio de extensa bibliografia e documentos-chave para a compreensão de determinados acontecimentos e períodos que marcaram o desenrolar da história brasileira, as autoras optaram por uma narrativa na qual o Brasil aparece na categoria de personagem, dotado de interesses, vontades e dilemas. Sua história se inicia às vésperas da chegada dos europeus ao então chamado Novo Mundo, habitado pelos povos indígenas e coberto por uma exuberância tropical, até os idos de 1995, apesar das autoras concluírem com referências diretas aos governos Lula e Dilma e aos ocorridos de 2013, ano marcado por manifestações públicas em prol de maior amplitude dos direitos sociais e de uma política menos íntima da corrupção. Leia Mais
Brasil: Uma Biografia – SCHWARCZ; STARLING (DSSC)
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 792 pp. Resenha de: MAYNARD, Andreza Santos. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, n. 26, n. 2, 2016.
Edito nel 2015 dalla casa editrice Companhia das Letras, il libro è il risultato del lavoro congiunto di Lilia Moritz Schwarcz (professoressa dell’Universidade de São Paulo) e Heloisa Murgel Starling (professoressa dell’Universidade Federal de Minas Gerais). Benché fosse intenzione delle autrici sfuggire alle classificazioni, si tratta di una sintesi che affronta più di cinquecento anni di storia del Brasile. L’ampio volume di 792 pagine è suddiviso in 18 capitoli.
L’analisi sviluppata nel libro parte dai primi contatti degli europei con gli indigeni brasiliani, all’inizio del XVI secolo, e giunge fino alla contemporaneità: per l’esattezza sino al periodo successivo al ritorno alla democrazia, con la ripresa del governo da parte dei civili, in seguito all’elezione di Fernando Henrique Cardoso alla presidenza, nel 1995. L’opera offre tre raccolte di immagini di diversa tipologia: dipinti, illustrazioni, fotografie e documenti dell’epoca.
Su internet sono reperibili molte informazioni sul libro. Le librerie e i siti dediti al commercio online forniscono dati sull’opera e non è raro imbattersi in lettori che esprimono apprezzamenti entusiastici. All’interno di una strategia di commercializzazione, la stessa Companhia das Letras ha diffuso la parte iniziale in formato .pdf: il lettore curioso può così avere accesso a una parte del testo prima di decidere se procedere o meno all’acquisto del volume, che costa mediamente da 39,90 a 54,51 reais. In considerazione della fama di Lilia Moritz Schwarcz nel mercato editoriale brasiliano, del numero di pagine e di immagini, della qualità materiale e intellettuale dell’opera, si può affermare che non si tratti di una cifra esorbitante.
Una delle particolarità che attirano maggiormente l’attenzione sul libro è la proposta delle autrici di partire dalla biografia per comprendere il Brasile in prospettiva storica. Gli autori ci informano del fatto che “i brasiliani” sono i protagonisti di questa narrazione, gli uomini pubblici così come i personaggi “quasi anonimi”. Ed è con loro che gli autori iniziano l’opera. Sulla copertina troviamo una fotografia del 1958 scattata da Marcel Gautherot: l’immagine mostra uomini che lavorano all’edificazione del Senato Federale. Grazie questa provocazione iniziale, ricaviamo l’impressione che questa sia un’opera sulla storia della costruzione del paese: qualcosa che è stato realizzato da brasiliani famosi così come sconosciuti.
Nell’introduzione vengono esposte alcune idee e metodi che pervadono l’opera. Da un lato apprezziamo l’uso dei riferimenti letterari, una delle caratteristiche che conferiscono levità al testo. Al contempo, veniamo messi a parte delle nozioni di cittadinanza, democrazia, repubblica e giustizia sociale che verranno riprese nel corso dei capitoli. La visione critica delle autrici riguardo alla formazione storica del Brasile è permeata da queste categorie. Per quel che riguarda la nozione di cittadinanza si percepisce una sintonia con il testo di José Murilo de Carvalho Cidadania no Brasil: o longo caminho1, benché non sia menzionata l’opera e neppure l’autore. Possiamo considerare questa come l’altra particolarità del libro scritto da Schwarcz e Starling, ossia la tendenza a ridurre al minimo i riferimenti ad autori ed opere, così come l’uso di citazioni e note. Queste sono rispettosamente collocate in fondo al volume in modo da non interrompere il flusso del testo.
Anche nell’introduzione, le autrici si avvalgono di riferimenti letterari come Lima Barreto e Guimaraes Rosa. Ma è di Gustave Flaubert – e del suo personaggio Madame Bovary – che si servono per rifarsi al bovarismo, richiamandosi così a Sérgio Buarque de Holanda; un concetto che fa riferimento ad un’alterazione nella percezione della realtà. Le autrici associano le affermazioni di Lima Barreto e Sérgio Buarque de Holanda per affermare che «i brasiliani hanno un qualcosa di Bovary»2. Negare che il Brasile sia come questo personaggio, significherebbe creare le condizioni per una costruzione idealizzata dal paese. Secondo Schwarcz e Starling, il «bovarismo nazionale» si coagula con il “familismo”, ossia l’abitudine di trasformare ciò che è pubblico in privato. È possibile comprendere come in questo risieda la ricerca dell’identità nazionale.
Come si è accennato in precedenza, l’opera si apre affrontando il tema dei primi contatti (e alleanze) tra le società indigene e gli stranieri. In termini generali si può affermare che ci sono poche menzioni di autori accademici nell’opera; quando le rinveniamo, normalmente si tratta di autori classici. Ad esempio nell’introduzione è menzionato Sérgio Buarque de Holanda e le sue formulazioni sul «bovarismo nazionale» e sull’«homem cordial», l’uomo cordiale.
Nel secondo capitolo, dedicato all’impresa coloniale e alla produzione dello zucchero, la menzione a Gilberto Freyre è quasi obbligatoria e viene rispettata. È attraverso la sua opera che ci si approccia alla storia del mondo dello zucchero, seppure in forma letteraria, secondo il gusto delle autrici. Anche dando uno sguardo alla bibliografia si può percepire come questa sia incentrata su opere internazionali e lavori pubblicati in Brasile, soprattutto negli Stati di San Paolo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
In contrasto con la dolcezza dello zucchero, troviamo l’amarezza della schiavitù. Uno dei temi affrontati nel secondo capitolo è infatti ciò per cui in questo periodo il colore diviene «un marcatore sociale fondamentale»3: viene sviluppata una riflessione sui contrasti tra la vita dei nobili che non si dedicavano al lavoro manuale e i servi, che vivevano nelle senzalas, le catapecchie destinate agli schiavi. L’intento è quello di fare il punto sui differenti aspetti della società, per quanto facendo riferimento alla produzione della canna e dello zucchero le autrici si avvicinino all’ambito economico. Ci si concentra dunque sui profitti, sulla produzione dello zucchero e sul commercio. Il tema principale è dunque la canna da zucchero, mentre gli schiavi vengono trattati brevemente per essere poi ripresi nel capitolo successivo.
Il capitolo 3 è dedicato al tema della schiavitù in Brasile. Nell’introduzione, le autrici avevano già affermato come questa esperienza abbia marcato la storia sociale del paese. Si comprende quale sia l’eredità della schiavitù attraverso l’esperienza del dolore e della violenza di cui fu vittima la parte della popolazione povera e nera, così come dai processi di esclusione sociale. Questo capitolo risulta particolarmente duro, tanto quando affronta i maltrattamenti subiti dai neri durante le diverse epoche storiche, quanto nella misura in cui stimola la riflessione sulle pratiche violente esistenti nel paese e rivolte nei confronti della popolazione nera. Ci si oppone alla tesi secondo la quale il brasiliano non sarebbe violento così come a quella in grazia di cui esiste un mito della “democrazia razziale”. Le autrici lanciano poi una provocazione in merito alla permanenza delle pratiche discriminatorie e delle ingiustizie sociali a tutt’oggi patite dai neri.
Uno dei capitoli che spicca maggiormente è l’undicesimo, che tratta del Secondo Regno (1840-1889). Dal momento che Lilia Moritz Schwarcz ha scritto il libro As barbas do Imperador4, era prevedibile che il capitolo privilegiasse la figura di Pedro II. Il testo è particolarmente piacevole: si apprezza la commistione di informazioni relative agli aspetti privati e altre di carattere pubblico. La descrizione dei dettagli dell’intimità dell’imperatore senza dubbio costituisce un’attrattiva per il lettore. Per quel che riguarda le nozze contratte con l’imperatrice, si afferma che:
[…] tuttavia, neppure il migliore delle cerimonie nasconde le frustrazioni e molto si disse su quelle di Pedro. Malgrado le informazioni che abbiamo ricavato riguardo alle virtù dell’imperatrice, sembra che l’imperatore riuscisse a notare solamente i difetti: Teresa Cristina era bassa, obesa e un po’ zoppa. Si dice che il giovane monarca non sarebbe stato in grado di mascherare la sua delusione vedendola e che scoppiò a piangere tra le braccia della contessa di Belmonte, la sua governante, e sulla spalla del maggiordomo Paulo Barbosa, che gli avrebbe detto: «Si ricordi della dignità della sua carica. Faccia il suo dovere, figlio mio»5.In questo passaggio risulta evidente la sensibilità che permea il libro. Le autrici sottolineano come una figura politica così eminente come Pedro II avesse sentimenti, volontà e problemi sentimentali, così come qualsiasi “quasi anonimo”: promuovono dunque l’umanizzazione dell’imperatore. Il tono intimista della descrizione di cui sopra è accompagnato da un’analisi che privilegia gli aspetti della politica nazionale dell’epoca. Questo è un esempio dello sforzo che le autrici hanno fatto per promuovere una connessione fra il pubblico e il privato. Nel capitolo 17, consacrato alla dittatura militare, le autrici ammettono la mancanza di unanimità in campo storiografico, anche se è possibile rinvenire una presa di posizione storiografica – quantunque anche politica – di fronte al “golpe” e al “regime militare”. L’approccio adottato nel capitolo si approssima dunque alla polarizzazione politica.
I decenni più recenti rimangono fuori dall’opera; le autrici giustificano questa scelta in considerazione del fatto che: «il tempo presente appartiene un po’ a ciascuno di noi e, probabilmente, tocca al giornalista prenderne nota con precisione e spirito critico»6. Marc Bloch discorderebbe dalle autrici su questo punto; nel libro L’Étrange Défaite7, mostra quanto sia importante l’analisi che lo storico produce indagando il tempo presente.
La struttura sensibile e allo stesso tempo critica dei capitoli porta nel lettore il desiderio di “saperne di più”. Le autrici, infatti, malgrado i propositi iniziali, arrivano sino a menzionare i governi Lula e Dilma Rousseff, la crisi politica attuale del Brasile e persino le manifestazioni di piazza che, dal giugno del 2013, hanno reso evidente l’inquietudine del popolo brasiliano di fronte ai molti casi di corruzione che hanno coinvolto i politici di vari partiti. Tuttavia, come detto in precedenza, c’è una scelta precisa alla base della scelta che mette da parte i fatti più recenti della storia nazionale. La giustificazione di ordine metodologico per lasciare il tempo presente ad una prossima opportunità di studio, deriva dal fatto che lo storico lavora con progetti già conclusi e per questa ragione la riflessione storica sui governi Fernando Henrique Cardoso e Lula deve ancora essere affrontata. Tuttavia l’argomentazione appare fragile a fronte di una grande mole di lavori accademici che analizzano il periodo, oltre all’abbondante disponibilità di documentazione prodotta dall’Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Nella conclusione le autrici ritornano sulla nozione di cittadinanza e commentano la difficile pratica di questa nozione in Brasile; ci si sofferma quindi sullo sforzo dei brasiliani per ottenere la democrazia e la repubblica. Al contempo sottolineano come la schiavitù modellò la società brasiliana con caratteristiche che permangono tutt’oggi. Risulta tuttavia bizzarro il fatto che le autrici abbiano lasciato da parte il periodo più recente della storia brasiliana, caratterizzato dall’inclusione sociale, da una diminuzione della disuguaglianza sociale, da un aumento dei neri nelle università grazie al sistema delle quote e dall’inserimento dell’obbligatorietà per legge dell’insegnamento della Storia della Cultura afro-brasiliana e indigena (leggi 10.639/2003 e 11.645/2008), una significativa conquista dei movimenti sociali.
Certamente siamo lontani da una situazione ideale, ma lasciare da parte l’analisi di questi cambiamenti genera problemi. Forse è questo il “tallone d’Achille” dell’opera: menzionare l’attualità senza imbarcarsi in un’analisi corrispondente. In altre parole rimarchiamo l’assenza di un’analisi della storia del tempo presente a fronte di riferimenti significativi ad esso.
In realtà si fa un rapido accenno ai provvedimenti sociali del governo Lula. La testimonianza degli scandali legati alla corruzione, coinvolgendo i principali dirigenti del Partido dos Trabalhadores (PT) occupa uno spazio maggiore nel testo. Le manifestazioni di piazza dei brasiliani del 2013 sono menzionate, ma compaiono solamente in termini generici come una manifestazione democratica del popolo brasiliano. Queste, di fatto, lo furono; tuttavia è opportuno precisare che il programma delle manifestazioni del 2013 era aperto anche a istanze più “conservatrici”. Tra le richieste vi era la fine della corruzione, ma anche il ritorno dei militari al potere, la cessazione del sistema delle quote nelle università e dei programmi sociali del governo federale. In calce all’opera, dopo la conclusione, le autrici inseriscono una sorta di “avviso” che avverte che il libro è andato in stampa quando sono avvenute le manifestazioni del 13 e del 15 di marzo del 2015. Questa insistenza nel menzionare fatti del presente senza l’accompagnamento di un’analisi critica risulta problematica sia dal punto di vista metodologico, sia da quello politico. Infine occorre puntualizzare che si tratta di un testo didascalico e analitico, ma soprattutto fluido e la cui lettura risulta piacevole. Si nota la preoccupazione delle autrici nel mantenere un linguaggio adatto ad un pubblico diversificato, non solamente accademico. L’opera risulta di immediato interesse per chi si occupa di storia del Brasile – storici, sociologi, politologi, antropologi, economisti –, ma può suscitare interesse anche al di fuori dell’ambito accademico. I capitoli possono essere letti in ordine progressivo, ma sono autonomi l’uno dall’altro.
Notas
1 CARVALHO, José Murilo de, Cidadania no Brasil: o longo caminho, Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2009 [12 ed.].
2 SCHWARCZ, Lilia Moritz, STARLING, Heloisa Murgel, Brasil: Uma Biografia, São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 16.
3 Ibidem, p. 71.
4 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do imperador, D. Pedro II: um Monarca dos Trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
5 Ibidem. p. 273.
6 Ibidem, p. 20.
7 BLOCH, Marc, A estranha derrota, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2011 [ed. orig. L’Étrange Défaite, Paris, Société des Éditions Franc-Tireur, 1946].
Andreza Santos Cruz Maynard si è laureata in Storia presso l’Universidade Federal de Sergipe, ha conseguito la Laurea specialistica nell’Universidade Federal de Pernambuco e si è addottorata presso l’Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Ricercatrice post-dottorale in Storia dell’ Universidade Federal Rural de Pernambuco, è stata borsista CNPq/FAPITEC con una borsa DCR (2014-2016). Fa parte del Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq) ed è professoressa del Colégio de Aplicação dell’Universidade Federal de Sergipe.
Brasil: uma biografia – SCHWARCZ et. al (EH)
SCHWARCZ, Lilia; Starling, Heloisa. Brasil: uma biografia. 2015. Companhia das Letras, São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: MAIA, João Marcelo Ehlert. Existe o Brasil? desafios de uma biografia da nação. Estudos Históricos, v.28 n.56 Rio de Janeiro July./Dec. 2015.
Nunca foi fácil contar a História do Brasil. Afinal, esse país vasto, desigual e permeado de trocas culturais violentas e criativas sempre se mostrou insubmisso aos seus melhores intérpretes. Mas, em um momento no qual a intensa especialização universitária combina-se a um processo de democratização política e social que pluralizou a ideia clássica de Nação, a tarefa tornou-se ainda mais complexa. Apenas por esse motivo já seria importante saudar o lançamento de um livro como Brasil: uma biografia, escrito em conjunto por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. O livro, porém, também é muito bom, o que justifica a ingrata missão de resenhar em no máximo 8 mil caracteres (com espaços!) um livro cujo objeto é apenas o país.
Como se sabe, existe um mercado para livros de História não acadêmicos no Brasil, mas ele tem sido ocupado, de forma geral, por obras escritas por jornalistas ou comentaristas políticos, com algumas exceções recentes (Aarão Reis, 2014). Schwarcz e Starling são não apenas duas pesquisadoras de ponta em suas respectivas áreas, mas também intelectuais preocupadas com a dimensão pública do conhecimento. A primeira tem tido papel relevante na editora Companhia das Letras, organizando coleções que procuram apresentar um panorama atualizado e rico das grandes interpretações do Brasil, ao passo que Starling é uma liderança nos projetos sobre história republicana, atuando também na Comissão Nacional da Verdade. Ambas têm suas trajetórias associadas ao GT de Pensamento Social no Brasil da ANPOCS, espaço dos mais tradicionais e criativos da área, que se notabiliza pelo investimento na pesquisa sobre as tradições culturais e intelectuais nacionais. Assim, é natural que tenham pensado esse projeto a partir do entrecruzamento entre experiência acadêmica, liderança intelectual e visibilidade na esfera pública, produzindo como resultado uma obra que se vale da melhor produção acadêmica disponível, apresentada em um texto acessível aos não iniciados e complementado com grande diversidade de fontes primárias (o livro apresenta logo no início a longa lista de arquivos consultados). A aposta foi bem-sucedida, e ainda hoje Brasil: uma biografia figura nas listas dos livros mais vendidos de não ficção.
A obra tem 18 capítulos distribuídos em quase 800 páginas, que cobrem do período da colonização à transição pós-ditadura militar. Há também seções com imagens, sejam elas retratos, pinturas, documentos e fotografias, e as autoras mostram habilidade ao mobilizar essa iconografia de forma não simplesmente ilustrativa. Cada capítulo dialoga intensamente com a historiografia acadêmica, que é apresentada no anexo por meio de notas de fim, embora esse diálogo tenha resultados diferentes em cada seção. Assim, os capítulos sobre o século XIX têm como ponto alto a conversa com a História Intelectual e Conceitual, o que permite ao leitor não especializado um conhecimento maior sobre os significados de termos como “pacto”, “federação” e “Império”. Já o capítulo sobre escravismo bebe significativamente da fonte da História Social da Escravidão, área na qual a historiografia brasileira tem sido extremamente prolífica e competente. Esse capítulo, em especial, tem forte teor analítico, como se as autoras tivessem conscientemente optado por esmiuçar toda a mecânica violenta do racismo à brasileira, fenômeno que muitos ainda insistem em subalternizar no debate público. Já os capítulos sobre o período republicano (do 13 em diante) parecem privilegiar uma abordagem mais próxima da História Política, e é possível que leitores especializados sintam falta de um diálogo com a História Social do Trabalho mais recente, que vem investindo nos cotidianos dos “mundos do trabalho” para além da discussão sobre o trabalhismo consagrada na obra clássica de Angela de Castro Gomes.
A estrutura narrativa reflete a escrita a quatro mãos, e tem oscilações interessantes. Se alguns capítulos têm um tom analítico, próprio da linguagem acadêmica, outros (em especial o capítulo 4, intitulado “É Ouro!” e dedicado à formação do complexo minerador na atual região de Minas Gerais) têm forte sabor narrativo, com a apresentação quase romanesca de personagens reais extraídas das fontes históricas. É possível que alguns leitores mais críticos se incomodem com o desequilíbrio formal, mas penso que a diversidade de formas atende à diversidade de objetivos. Afinal, em um momento em que ainda se discute a sério a existência de racismo no Brasil, é uma tarefa político-pedagógica martelar no leitor desavisado toda a riqueza informativa e interpretativa produzida pela Historiografia.
O saldo da empreitada é muito positivo. Gostaria, porém, de destacar dois grandes desafios colocados para qualquer biografia do Brasil hoje: o primeiro relaciona-se com a própria ideia de uma biografia nacional, e o segundo diz respeito às tensões entre as chamadas “interpretações do Brasil” e a emergência de novas narrativas sobre o “Brasil” construídas a partir de perspectivas historicamente subalternas.
Sabemos que a sociologia e a historiografia discutem há tempos as armadilhas contidas no método biográfico (Bourdieu, 1996). Afinal, ao pensarmos a história de um indivíduo como uma biografia, arriscamo-nos a construir uma narrativa por demais dotada de sentido e de coerência, apagando o que seriam os acasos e as contingências que modelam as trajetórias. Mais recentemente, vem-se enfatizando a dimensão transnacional de processos que se pensava serem facilmente enquadrados num âmbito exclusivamente nacional ou mesmo regional (Subrahmanyam, 1997), o que põe em questão a possibilidade de uma biografia de uma Nação. Aliás, antes que termos como “História Global” virassem moda intelectual, um historiador como Luiz Felipe de Alen castro (2000) já argumentava que é impossível entender o tráfico negreiro moderno sem tomar como unidade analítica o Atlântico Sul, e não o Brasil. Isto é, a escravização de milhares de africanos em terras tidas como brasileiras não poderia ser entendida como decorrência de uma dinâmica histórica nacional, já que os nexos que explicam esse fenômeno articulariam a costa oeste africana a alguns portos e espaços no litoral brasileiro, mas não todo o território que hoje conhecemos por “Brasil”. Assim, uma primeira questão interessante seria: como uma biografia nacional pode dialogar com a necessidade de abordarmos a dimensão transnacional de processos e fenômenos que nos construíram?
O segundo desafio refere-se ao surgimento de novas formas de falar sobre o objeto “Brasil” que questionam o lugar de discurso dos setores letrados e a ideia de identidade que acompanha a formação do Estado-Nação. Essas novas formas podem ser sintetizadas por uma resposta dada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando confrontado com a clássica pergunta “O Brasil tem jeito?”, em edição recente da revista Cult.
O Brasil não existe: o que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não-indígenas, sob o tacão de uma elite, corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-Nação territorial. Uma fantasia sinistra. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. E aqui todo mundo é índio, exceto quem não é (Viveiros de Castro, 2015).
A frase contém certo tom apocalíptico, mas traduz um sentimento disseminado sobre o possível esgotamento da forma nacional e seus avatares, entre os quais as próprias “interpretações do Brasil”, geralmente produtos do olhar de uma camada letrada sobre um Outro desprovido dos meios materiais e simbólicos de representação. Afinal, não se trata de incluir esses grupos na biografia nacional, tarefa brilhantemente feita pelas autoras, mas de inquirir sobre outras possibilidades narrativas construídas à margem das clássicas interpretações do Brasil e pelas mãos e vozes de outros setores.
As autoras, é claro, estão cientes dos dois desafios aqui levantados, e lidam com eles de forma inteligente. Logo na introdução, afirmam explicitamente que “não querem fazer uma história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história, dentre outras”. Esta afirmativa sagaz é a bússola de todo o projeto. Cientes da democratização da sociedade e da impossibilidade de qualquer narrativa teleológica, Schwarz e Starling reconhecem a contingência de sua narrativa e as contradições do objeto “Brasil”. Por tabela, essa frase nos convida a pensar com o livro e para além do livroalgumas questões difíceis, mas cruciais, entre as quais eu destacaria duas: se o livro faz do Brasil uma história, como essa história específica, produzida no seio da melhor pesquisa acadêmica nacional, pode se relacionar com outras histórias? Em que medida essas outras histórias ainda encontram um terreno comum com as “intepretações do Brasil” das quais o livro das autoras é claro herdeiro?
Na resposta a essas perguntas, reside um desafio que não é apenas intelectual, mas profundamente político. Afinal, trata-se de encontrar um novo terreno comum em meio aos fragmentos do que é hoje a ideia de Brasil, sacudida por uma maré democratizante de longa duração que felizmente não pode mais ser represada. Brasil: uma biografia será um incontornável livro de viagem nessa busca.
Referências
AARÃO REIS, Daniel. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos São Paulo: Companhia das Letras, 2014. [ Links ]
ALEN CASTRO, Luís Felipe. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras 2000. [ Links ]
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais (org). Usos e abusos da História OralRio de Janeiro: FGV, 1996. [ Links ]
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia. Modem Asia Studies 31(3): 735-762. 1997. [ Links ]
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo. Disponível em Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/07/entrevista-eduardo-viveiros-de-castro-fotografo/. Acessado em 21 de outubro de 2015. [ Links ]
João Marcelo Ehlert Maia – Mestre (2001) e doutor (2006) em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/ IUPERJ), e professor adjunto do CPDOC/FGV-RJ (joao.maia@fgv.br).
As barbas do imperador: dom Pedro II, um monarca nos trópicos | Lília Moritz Schwarcz
O novo livro de Lilia Moritz Schwarcz, intitulado As barbas do imperador: dom Pedro II, um monarca nos trópicos, busca fazer uma reconstrução da figura e do papel simbólico ocupado pelo imperador Pedro II durante esse momento fulcral da história brasileira que foi o século XIX.
Entre a herança colonial e o país moderno, o tempo do império foi aquele em que as contradições da passagem do estatuto de colônia ao de país soberano solidificaram-se em instituições que até hoje marcam a vida brasileira: o favor, o beletrismo, as dúbias fronteiras entre as esferas do público e do privado são algumas das heranças que nos legou o império. Leia Mais
O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930 | Lília Mouritz Schwarcz
Raça pertence àquela classe de conceitos que muitos gostariam que fosse definitivamente abandonado devido a sua generalidade, mas que, não com pouca freqüência, retoma ao centro das discussões. Sua longevidade impressiona: questões ligadas a raça eram centrais em debates acadêmicos do século XIX (e mesmo bem antes). Os debates persistem em uma época em que a ênfase volta-se para o seqüenciamento do genoma humano, um projeto que catalisa os interesses da biologia moderna.
Obviamente, o tópico ‘raça’ não se esgota no domínio das ciências biológicas, possivelmente daí derivando sua persistência e dos significados a ele associados através dos tempos. Não é nosso objetivo aqui aprofundar certas questões, mas é preciso mencionar que raça, em sua vertente biológica, social ou mais freqüentemente no intercruzamento de ambas, tem reiteradamente influenciado ideologias de perseguição e exclusão de segmentos sociais específicos em todo o mundo. Leia Mais