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O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista – LUKÁCS (FH)
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider. 1 ed. São Paulo Boitempo, 2018. 733p. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. O jovem Hegel de Lukács: por uma redenção da dialética. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.51-507, jan./jun., 2020.
György Lukács é considerado o maior filósofo marxista do século XX. Nasceu em Budapeste no dia 13 de abril de 1885, em uma Hungria que, no período, fazia parte do território integrado ao Império Habsburgo. Graduou-se na Universidade da mesma cidade, doutorou-se em Direito e Filosofia em 1906 e 1909, respectivamente. A produção e desenvolvimento filosófico do jovem Lukács — de 1910 a 1923 influenciou nomes conhecidos como Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernest Bloch e pensadores da famosa Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno.
O livro O Jovem Hegel e os Problemas da sociedade capitalista (2018), de Lukács faz parte da coleção A Biblioteca Lukács, coordenada por José Paulo Netto, e se tornou o sétimo título do filósofo húngaro publicado pela editora Boitempo. A obra foi traduzida diretamente do alemão por Nélio Schneider e teve revisão técnica de Netto e Ronaldo Vielmi Fortes.
A coleção Biblioteca Lukács tem como missão fazer a divulgação do pensamento do filósofo húngaro. Entretanto, não é de hoje que o pensamento lukacsiano é divulgado no Brasil, tanto por traduções como por elaborações críticas. Sua filosofia foi intensamente divulgada na década de 1960 por três intelectuais de grosso calibre — Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e J. Chasin — efetuando traduções e em elaborações críticas. Entre as obras de Lukács traduzidas e divulgadas por Konder e Coutinho estão: Ensaios Sobre Literatura (1964); Introdução a uma Estética marxista (1978), títulos esses publicados pela Editora Civilização Brasileira.
O desenvolvimento filosófico de Lukács tem como proposta, desde seus primeiros escritos marxistas, fazer um debate renovado com a filosofia clássica, principalmente a alemã, na qual ele buscava fazer “ao nível da crítica” a “análise histórica e sistemática das modalidades de conhecimento e interpretação do mundo constituídas pela cultura burguesa” e “determinar o estatuto histórico-filosófico do marxismo” instaurando uma “crítica macroscópica da totalidade da cultura burguesa” (NETTO, 1978, p.14). Netto (1978) dará destaque para duas obras do filósofo húngaro onde se encontram as críticas sistemáticas à cultura filosófica burguesa: O jovem Hegel, a qual nos propomos apresentar a partir dessa resenha, e Destruição da Razão: de Schelling a Hitler (NETTO 1978, p.15). O intérprete nos alerta que a crítica à filosofia burguesa do pensador húngaro não somente se propõe a apontar suas limitações, mas, também, resgatar Hegel da instrumentalização mistificadora elaborada pelos ideólogos fascistas — se empenhando em “resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior 1848” (NETTO, 2011, p.8). Desta forma Lukács, desde História e Consciência de Classe, é considerado um renovador do pensamento marxista.
O livro, O jovem Hegel, é dividido em quatro partes que são compostas por momentos do desenvolvimento filosófico de Hegel partindo das diferentes localidades em que o filósofo alemão viveu: Berna (1793-1796), denominado como o período republicano de Hegel; Frankfurt (1797-1800), no qual o filósofo deu início ao desenvolvimento do método dialético; e Iena, que se divide em mais dois períodos: o primeiro (1801-1803), no qual há a vinculação e a defesa ao idealismo objetivo; e o segundo (1803-1807), momento que mostra os últimos percalços que Hegel trilhou para culminar em sua primeira produção amadurecida, original e de peso, A Fenomenologia do Espírito.
O plano de fundo d’O jovem Hegel é a Revolução Francesa e os ecos no pensamento germânico. O interesse do filósofo alemão, como nos alerta Lukács, estava voltado para entender a sociedade civil burguesa [bürgerlicheGesellschaft]. O húngaro mostrará que a influência da revolução burguesa na sua totalidade — isto é, Revolução Industrial e a revolução política para a instauração de um Estado-nação —, interessava à Hegel e foi determinante para a formação de seu posicionamento filosófico e político.
No curto espaço de tempo que Hegel esteve em Berna, Lukács analisa o início do seu desenvolvimento filosófico, desmistificando as interpretações feitas de sua filosofia nesse período, que tendem a culminar, muitas vezes, na redução e vinculação de suas elaborações a um “reacionarismo” tratando-o como absolutista e vinculando-as unilateralmente com a “teologia”. O húngaro nos mostra que, em primeiro lugar, as vinculações políticas de Hegel nesse período sempre estiveram voltadas para a ala da esquerda democrática do Iluminismo e que teciam críticas ao Iluminismo alemão, pois os “absolutistas feudais e seus ideólogos tentaram muitas vezes se aproveitar de determinados aspectos deste movimento para seus próprios fins” (LUKÁCS, 2018, p. 68). Hegel via a “antiga república citadina (polis) não como um fenômeno social do passado”, mas como a constituição de “um modelo eterno, ideal não alcançado para uma mudança atual da sociedade e do Estado” (LUKÁCS, 2018, p. 69, grifos nossos). Em segundo, aponta que a filosofia de Hegel não teve vinculação teológica, pelo contrário, Lukács argumenta que o alemão é um crítico do sectarismo do cristianismo primitivo (LUKÁCS, 2018, p. 71), e se interessava por seitas posteriores. Hegel, segundo seu estudioso, trata o cristianismo como uma religião “positiva” a qual “constitui um esteio do despotismo e da opressão” (LUKÁCS, 2018, p. 85).
A ligação de Hegel à filosofia kantiana, principalmente de Crítica da razão Prática, é, segundo Lukács, de extrema importância para a vinculação de sua filosofia à realidade. O filósofo alemão vê que tanto os problemas sociais como os morais vinculam-se aos problemas da práxis, mostrando que a base de sua filosofia é a “reconfiguração da realidade social pelo ser humano”. Lukács escreve que Hegel vai além de Kant, posto que este último investiga os problemas morais do ponto de vista do indivíduo. Para Kant o fundamental é a consciência como um fato moral, em contraponto a isso “o subjetivismo do jovem Hegel, direcionado para a prática, é coletivo e social desde o início. Para Hegel, é sempre a atividade, a práxis da sociedade que constitui o ponto de partida e também o objeto central da investigação” (LUKÁCS, 2018, p. 73).
Já nos três anos de Frankfurt, Hegel, segundo Lukács, irá reestabelecer criticamente algumas das suas concepções filosóficas, entre elas a sua elaboração de positividade. Nesse momento, a “positividade” será vista como “um sinal de que o desenvolvimento histórico já ultrapassou uma religião, e que ela merece ser destruída e inclusive tem de ser destruída pela história” (LUKÁCS, 2018, p. 329). Essas novas formulações também servirão de base para os “primeiros embriões do método de Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2018, p. 177). Lukács nos expõe que todo esse desenvolvimento do período de Frankfurt é atrelado com as constantes variações na história da Revolução Francesa, porém suas concepções republicanas revolucionárias permanecem as mesmas do período de Berna. O húngaro realça que é nesse momento que se revela a diferença da produção filosófica hegeliana, pois, enquanto em Berna Hegel elaborava suas concepções histórico-filosóficas partindo de um único fato relevante para a história universal, a Revolução Francesa, após Frankfurt, o alemão passa a dar igual importância para o desenvolvimento econômico da Inglaterra. Assim, ambos os eventos passam a ser elementos fundantes para a sua concepção de história e noção de sociedade. “O problema”, diz Lukács, “referente ao modo como a estrutura absolutista feudal da Alemanha deve ser modificada pela Revolução Francesa aflora para Hegel dali em diante não como questão geral da filosofia da história, mas como problema político concreto”. (LUKÁCS, 2018, p. 171).
Lukács diz que a filosofia de Hegel incorpora as “problemáticas sociais e políticas” e que estas “se convertem em filosóficas de modo sempre imediato” (LUKÁCS, 2018, p. 172). Como consequência disso, passou a tomar “consciência, portanto, do antagonismo entre dialética e pensamento metafísico primeiro como antagonismo entre pensamento, representação, conceito etc. de um lado, e vida, de outro” (LUKÁCS, 2018, p. 173). Esse processo teria feito parte de um projeto de reconciliação filosófica de Hegel entre os “ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade e os fatos objetivos e imutáveis da sociedade burguesa” que, segundo o filósofo húngaro, irão conduzir Hegel “a uma compreensão mais e mais profunda primeiro dos problemas da propriedade privada e depois do trabalho como inter-relação fundamental entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 175). Esse desenvolvimento das concepções de Hegel culminará em uma tentativa de sistematização no fim do período de Frankfurt, o que também prepara Hegel para uma crítica profunda ao idealismo subjetivo e para a separação da filosofia de Schelling frente a de Fichte.
Em Iena, onde Hegel passa um pouco mais de seis anos, de 1801 a 1807, é que surgirão as suas elaborações de juventude mais profundas. É o período em que o jovem filósofo acertará as contas com a filosofia clássica de seu tempo, Kant, Schiller, Fichte e, somente em Fenomenologia do espírito, com Schelling — obra que sela definitivamente o rompimento com as colaborações filosóficas entre ambos, e faz com que este último se coloque como um combatente frente a dialética hegeliana. Em Iena temos dois períodos, o primeiro, de 1801 a 1803, é marcado fortemente pela defesa de Hegel ao idealismo objetivo. Para tanto, o filósofo inicia sua parceria com Schelling demonstrando a diferença da filosofia deste com a de Fichte onde, o último, é colocado como um agnóstico (LUKÁCS, 2018, p. 342), motivo que colocou Hegel como defensor da filosofia schellinguiana e revelou a ambos que ali nascia uma nova formulação filosófica por parte de Schelling. Nesse processo, Lukács aponta que Hegel combateu o individualismo abstrato da ética elaborando uma crítica mais concreta, dessa forma o filósofo alemão “não se limita mais a examinar problemas isolados da ética kantiana que tem uma problemática coincidente com a sua, mas submete toda a ‘filosofia prática’ do idealismo subjetivo a uma análise crítica abrangente” (LUKÁCS, 2018, p. 391).
A filosofia hegeliana, segundo o húngaro, é histórica desde as primeiras elaborações de Berna, porém essa concepção só entra em cena após as “renúncias às ilusões jacobinas de renovação da Antiguidade”. É nesse momento que Hegel se depara com os “problemas da dialética da sociedade burguesa moderna”, isso faz com que se constitua, no seu pensamento filosófico, um problema central e latente de “conexão dialética entre o desenvolvimento histórico e a sistemática filosófica”. Dessa maneira Hegel tem a possibilidade de levantar contra Fichte uma crítica a suas concepções de “liberdade independentemente das leis objetivas da natureza e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 410. Lukács mostra que o historicismo de Hegel segue uma concepção que não significa uma glorificação do passado, pois esse seria a visão do historiador romântico que apareceu na Alemanha “sob a influência publicística da contrarrevolução”, disseminando a “concepção de que a ‘organicidade’ das formações históricas e do desenvolvimento histórico exclui a vontade consciente dos homens de mudar seu destino social” e, além disso, também defendem que “a ‘continuidade’ do desenvolvimento histórico é francamente contrária à interrupção da linha de desenvolvimento já iniciada” (LUKÁCS, 2018, p. 411. As concepções de Hegel nesse momento já se apresentam como um prelúdio para a sua primeira síntese filosófica de peso sistematizada em Fenomenologia do espírito A Fenomenologia do espírito de Hegel é colocada por Lukács como uma obra seminal do pensamento filosófico alemão e marca uma virada nas coordenadas do desenvolvimento não só da filosofia hegeliana, mas de todo pensamento moderno. É no segundo momento de Iena, 1803 a 1807, que Hegel iria amadurecer suas diferenças filosóficas com Schelling, as quais foram reduzidas pelo primeiro apenas à questão do método, mas que o húngaro enfatiza que a diferença se apresenta “também em todas as questões da filosofia da sociedade e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 559). A concepção filosófica-histórica de Hegel, a partir de Lukács, vai na contramão da visão moderna, pois na filosofia hegeliana não existe “estado de espírito”, assim há uma diferença em relação a “posição histórica do tempo presente” (LUKÁCS, 2018, p. 594). Em Iena, o filósofo húngaro diz que “a Revolução Francesa e sua superação (no triplo sentido hegeliano) por Napoleão constitui o ponto de inflexão decisivo da história mais recente” e que entra em contraposição com a visão posterior do velho Hegel que a “Reforma assume a posição central na história da era moderna que em Iena Hegel havia atribuído à Revolução Francesa e a Napoleão” (LUKÁCS, 2018, p. 595).
O filósofo húngaro atribui à Fenomenologia a sistematização entre as categorias de mediação, reflexão etc. mas considera as categorias de alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfrendung) como pontos centrais do desenvolvimento dessa obra, ambos os termos derivados da tradução do termo inglês “alienation” para o alemão – termo esse que foi utilizado na economia-política inglesa, quando se tratava da venda de mercadoria e, também, pela “teoria do contrato social para denominar a perda da liberdade original, a transmissão, a exteriorização da liberdade original à sociedade originada pelo contrato”(LUKÁCS, 2018, p. 689). A categoria de alienação não foi usada exclusivamente por Hegel na filosofia clássica alemã. Lukács exibe que Fichte já a tinha utilizado para mostrar que um “objeto posto” constitui uma alienação do sujeito e o próprio objeto é concebido como uma “razão alienada”. O estudioso do filósofo alemão aponta que, na Fenomenologia, há três níveis de apresentações da categoria de alienaçãoo primeiro faz menção à relação entre sujeito-objeto, e vincula toda produção humana, o trabalho, à “atividade social e econômica do homem”; o segundo nível a alienação é o que se apresenta na sua forma capitalista, e que, mais tarde, será desenvolvido por Marx como categoria fetichismo (LUKÁCS, 2018, p. 691); no terceiro nível é um momento que passa pela alienação, ou seja, como “coisidade (Dingheit) ou objetividade (Gegenständlichkeit)” que é a “forma em que, na história da gênese da objetividade, esta é apresentada filosoficamente como momento dialético na trajetória do sujeito-objeto idêntico de volta a si mesmo, passando pela ‘alienação’” (LUKÁCS, 2018, p. 692).
Lukács se esforça em sistematizar historicamente o envolvimento de Hegel com o seu tempo histórico e demonstrar o reflexo desse tempo em sua filosofia. Dessa forma o húngaro não faz uma biografia de Hegel, mas um tratamento histórico-sistemático olhando a “filosofia como parte importante do movimento total da história” (LUKÁCS, 2018, p. 21). Graças ao trabalho de tradução de Nélio Schneider, a divulgação do pensamento de Lukács — que se iniciou na década de 1960 com Konder, Coutinho e Chasin — ganha ainda mais volume e temos a oportunidade de ter em mãos um trabalho histórico-filosófico que contribui para o desenvolvimento do marxismo no Brasil de forma fecunda e dialética pois essa obra tem a capacidade de desmistificar a filosofia de Hegel e, com uma leitura atenta, absorver o método dialético que ali se explicita.
Referências
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider.1º ed. São Paulo Boitempo, 2018.
NETTO, José Paulo. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978.
NETTO, J. Paulo. Introdução: Sobre Lukács e a Política. In. LUKÁCS, György Socialismo e democratização – Escritos políticos 1956-1971. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
Edson Roberto Silva – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. e-mail: edoliviera89@gmail.com.
[IF]Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)
MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.
Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.
Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.
A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.
A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.
No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).
Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.
No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).
Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).
A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.
Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.
A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).
De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).
No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).
Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).
Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).
Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.
31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).
Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).
Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.
O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.
Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: mjrech7@gmail.com
Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: fe.taufer@hotmail.com Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999
Uma era secular – TAYLOR (C)
TAYLOR, Charles. Uma era secular. Trad. de Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2010. Resenha de: CAMATI, Odair. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 192-195, set/dez, 2013.
Charles Taylor é um filósofo contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É Professor Emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de Mcgill. De 1976 a 1981, Taylor dirigiu a cadeira de “Pensamento Político e Social” na Universidade de Oxford. Suas principais contribuições são na área da filosofia política, filosofia social e história da filosofia, com isso defende uma participação ativa na vida política, tendo concorrido ao Senado canadense.
O livro Uma era secular, no original [A Secular Age] (2007), lançado no Brasil pela Editora Unisinos, em 2010, está divido em cinco partes, nas quais Taylor busca responder a dois questionamentos, a saber: (i) o que significa dizer que vivemos em uma era secular; e (ii) por que passamos de uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para uma sociedade na qual a fé representa uma entre tantas possibilidades humanas. Para isso o filósofo canadense apresenta três formas de compreender a secularidade: a primeira é a tradicional separação entre Igreja e Estado; a segunda forma afirma que a secularidade consiste no abandono de convicções e práticas religiosas; por fim, a terceira forma à qual Taylor se dedica é a compreensão da fé como uma opção entre outras. Leia Mais
O 18 Brumário de Luís Bonaparte – MARX (CTP)
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução Nélio Schneider. Resenha de: MAZA, Fábio. O 18 Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.
A Boitempo Editorial tem se esmerado em reeditar as obras de Marx e Engels. Através da Coleção Marx-Engels, vem apresentando ao leitor brasileiro uma série de escritos traduzidos diretamente do alemão. Além de títulos que já se encontravam disponíveis em língua portuguesa, a Boitempo publicou textos como Sobre o suicídio2 inédito no Brasil. Agora traz seu décimo título, “a célebre análise de Marx sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França”.3 De fato, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte é um livro notável e obteve uma fortuna nas ciências sociais que poucas obras ousaram conquistar.4 As razões dessa ventura se devem a vários fatores de difícil síntese em uma resenha. Contudo ao reler o 18 Brumário percebe-se que a obra não perdeu força e pode jogar luz sobre os limites da representação política parlamentar. Como isso não quero retornar a uma anacrônica classificação do tipo “democracia burguesa”, expediente utilizado ainda por certa esquerda esquizofrênica reduzida a guetos. Mesmo assim, não se pode deixar de se ater aos acontecimentos que tem sacudido o norte da África e o Oriente Médio e perceber a forte demanda por democracia em vários países da região. Ou ainda, os acontecimentos da Grécia e Espanha que vem questionando as estruturas formais da democracia e exigindo ampliação dos mecanismos democráticos das decisões políticas e econômicas. Seja em Madri, Barcelona ou Atenas o que está em jogo é uma ampliação da democracia para além do revezamento entre partidos conservadores ou socialdemocratas no poder.
É claro que a realidade que Marx analisou tem muito pouco haver com o que acontece em nossa época. Em primeiro lugar por que a constituição de organizações diversas que fazem parte das democracias ocidentais hodiernas não existia à época de Marx ou estavam por se constituir. Depois Marx deixa claro em sua análise sagaz e detalhada que no período de 1848 a 1851 todas as armas forjadas pela burguesia contra o feudalismo começavam a se voltar contra ela. Assim se expressa o autor a respeito dos mecanismos democráticos na República Parlamentarista sobre o domínio burguês: Ela [a burguesia] compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornados “socialistas”.5 Esse trecho mais do que apontar a faceta caricatural que a burguesia assumia nesse instante de sua história, introduz-nos em um tema dos mais caros ao livro. Na descrição, quase cronológica dos acontecimentos entre 1848 a 1851, Marx aponta de como cada classe ou fracção de classe se apoio nos ombros dos seus antecessores para em seguida trai-los em causa própria. O único sujeito social golpeado por todos teria sido o proletariado. Em seguida a pequena-burguesia democrática via-se superada pelos republicanos burgueses e esses acutilados pelo Partido da Ordem. Assim, afirma Marx que ao se apoiar nos “ombros” do Partido da Ordem, esse ao encolhê-los deixa os republicanos burgueses se estatelado no chão.
Essa descrição, aqui bastante resumida, não dá conta do grau de complexidade do jogo político e dos conflitos sociais envolvidos no período e os quais Marx analisa com maestria. O autor pondera a cada passo as alianças que são feita e desfeitas em várias oportunidades. Assim se a pequena burguesia democrática abando o proletariado a sua própria sorte nas jornadas de junho de 1848, quase dois anos depois buscará seu apoio para as eleições complementares de 10 de março de 1850. Por sua vez com a vitória dos candidatos social-democratas na mesma eleição, Bonaparte “se viu novamente confrontado com a Revolução” e não lhe restou alternativa a não ser se curvar diante do Partido da Ordem.
Em todos esses casos – cujos exemplos são reduzidos aqui devido ao espaço – Marx analisa a incapacidade dos diversos grupos de tomarem o poder em suas mãos. Como uma linguagem ácida e irônica Marx aponta a “covardia” da pequena-burguesia, dos republicanos liberais e mesmo do Parido da Ordem de estenderem o controle do poder político a toda a sociedade. Esse tipo de situação pavimentou o caminho para que um aventureiro tomasse em definitivo o controle político em suas mãos.
Aqui temos, portanto, o quadro que permitiria a construção de um conceito caro para as Ciências Sociais: o Bonapartismo. O conceito nos remete a uma “manifestação extrema daquilo que, em escritos marxistas recente sobre o Estado foi chamado de „autonomia relativa‟…”6 Uma forma de governo que desautoriza o poder legislativo no Estado democrático e que “efetua a subordinação de todo o poder ao executivo”.7 Mas essa descrição não nos autoriza a concluir a natureza mais profunda desse fenômeno. O bonapartismo é antes de tudo “produto de uma situação em que a classe dominante da sociedade capitalista já não é capaz de manter seu domínio por meio constitucionais e parlamentar.”8 Não se trata de um conceito abstrato, mas fruto de uma análise balizada “no calor dos acontecimentos”. O 18 Brumário será a primeira tentativa de “aplicar” os “fundamentos praxiológicos da concepção materialista da história” à “fenômenos sócias concretos”9 Marx tem plena consciência dos limites históricos impostos tanto ao proletariado quanto à burguesia e nesse sentido vislumbra no conflito de classes o motor que levaria Bonaparte ao golpe de estado.
[…] ao tachar de heresia “socialista” aquilo que antes enaltecera como “liberal”, a burguesia confessa que seu próprio interesse demanda que seja afastada do projeto de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes.10 Portanto, diante do perigo da Revolução, da ameaça ao seu poder social, a burguesia abre mão do poder político. É assim que o Estado parece emergir como autônomo, como “mediador ostensivo.”11 A independência do Estado não poder ser vista como algo “suspenso no ar”. Sua autonomia é “pura aparência, se se atentar para o conteúdo concreto da política por ele levada a efeito.”12 Em todo o relato de Marx ele recheia seu texto como desfile de personagens políticas que servindo outros grupos sociais e em particular o Partido da Ordem, após o golpe de Bonaparte passaram a servir ao seu governo. Além disso, alguns autores nos fazem lembrar que a ditadura de Bonaparte teria se assentado no campesinato da pequena propriedade (Miliband; Pistone; Marcuse).A edição da Boitempo traz uma novidade impar. Trata-se de um prólogo assinado por Herbert Marcuse escrito para edição de 1965 do 18 Brumário em Frankfurt.13 Sua publicação pela primeira vez no Brasil permite um enriquecimento analítico da obra Marx a luz das reflexões de um autor do século XX e que viveu os percalços do fascismo e da guerra.
Marcuse faz diversas considerações sobre os acontecimentos do golpe de Bonaparte, mas irei me ater a um aspecto de sua análise que me parece muito rico, pois leva-nos a perceber que Marx conhecia muito bem os limites do proletariado no tempo da Revolução de 1848. Também nos esclarece quanto ao estilo da escrita presente em o 18 Brumário. Marcuse acredita que Marx tinha plena consciência da derrota e, portanto o “desespero” faz “parte da teoria e da sua esperança.”14 Peço licença ao leitor para citar a saborosa passagem em que Marcuse defende a tese explicitada no trecho acima: […] contra a vontade de quem a escreveu, a obra se torna alta literatura. A linguagem torna-se conceito da realidade, o qual, mediante a ironia, resiste ao horror dos eventos. Diante da realidade, nenhuma fraseologia, nenhum clichê- nem mesmo os do socialismo […] o escárnio e a sátira constituem a aparência real da sua verdade […] estupidez, ganância, baixaria e brutalidade que perfaz a política deixa a seriedade sem fala.15 Como discordar de Marcuse se justamente Marx faz desfilar em seu texto um cortejo fantasmagórico de personagem que se apresentam como caricaturas de um passado mais “glorioso”. Como não aceitar que a linguagem de Marx é irônica e por isso mesmo, como ácido, dissolve manobras políticas e personagens desnudando suas figuras esquálidas. O estilo de Marx – alta literatura – é marca indelével nessa obra. Como não concordar com Marcuse quando Marx, ao tratar de Ledru-Rollin – um montagnard que se refugia no exterior – descreve sua situação assim: “na distancia, sua figura arrebatada do chão da ação parecia aumentar de tamanho na mesma proporção em que o nível da Revolução baixava […]”.16 Cabe por fim falar de alguns aspectos problemáticos na presente edição da Boitempo. Além de erros de grafia, há graves falhas nas notas que acompanham o texto. Em resenha para a revista Carta Capital17 Pompeu apontou, por exemplo, a nota na página 18 que nos remete para 70 que simplesmente não existe, pois a última nota é 69. Mas também podemos observar vários outras incorreções. A nota 20 da página 55 indica a nota 9 da página 34 quando na verdade deveria ser nota 8, enquanto na mesma página 55 a nota 21 nos remete a nota 1 quando deveria ser a nota 9. Os exemplos poderiam se multiplicar. Assim, tamanho descuido com a edição pode induzir o leitor desavisado a erros e prejudicar a compreensão de muitos fatos que dão suportes as análise de Marx.
Notas
2 MARX, Karl. Sobre o suicídio. Tradução Rubens Enderle e Francisco Fontanella. Boitempo Editorial, São Paulo, 2006.
3 http://www.boitempo.com/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-171-0
4 IANNI, Octavio. Apresentação. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 7ª edição.
5 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 80
6 MILIBAND, Ralph. Bonapartismo. Dicionário do Pensamento Marxista. Tom Bottomore. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, p.35.
7 PISTONE, Sergio. Bonapartismo. Dicionário de Política. Noberto Bobbio. Editora Universidade de Brasília. Brasília. DF. 1992.p 118.
8 MILIBAND,Ralph, Op.cit.
9 BRAGA, Ruy. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011.
10 O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 81
11 MILIBAND, Ralph, Op.cit
12 PISTONE, Sergio, Op.cit
13 Na verdade trata-se de um epílogo da edição alemã de 1965 e que na presente edição da Boitempo passa ser prólogo.
14 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011, p.13
15 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 13
16 MARX, Karl. Op.cit.p 68 17 POMPEU, Renato. O escrito e o lido. Carta Capital. nº 647, 25 de maio de 2011.
Fabio Maza – Doutor em Ciências: História Social pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: fabiomaza@uol.com.br