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Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior | Giselle Martins Venancio e André Furtado
A Editora da Universidade Federal Fluminense acaba de lançar Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior (2020). O livro de Giselle Martins Venancio e André Furtado é uma importante contribuição para interpretar a recepção da obra de Gilberto Freyre no exterior, em especial na França do pós-guerra. Compreender as condições de leitura de autores canônicos como Fernand Braudel, Roger Bastide e Lucien Febvre – os leitores franceses estudados no livro – não é trivial, pois a consagração de Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), não dependeu apenas do próprio texto, nem da argumentação e da pesquisa contidas nele, mas de uma série de questões que povoam o mundo dos leitores.
Mestiça cientificidade aprofunda o entendimento acerca da recepção francesa de Casa-grande nas décadas de 1940 e 1950. Funciona também como iniciação à obra de Gilberto Freyre para estudantes, jovens pesquisadores e interessados em um dos autores brasileiros mais importantes do século XX, o de maior repercussão internacional, objeto ainda hoje de acalorado debate público. Sem perder a potência da pesquisa e dos debates acadêmicos contemporâneos, o livro em questão não deixa de praticar história pública. Leia Mais
Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido | Laura de Mello e Souza
A coleção Perfis Brasileiros, coordenada por Elio Gaspari e Lilia Moritz Schwarcz, tem oferecido aos leitores biografias, algumas delas de excelente nível, prestando importante serviço ao gênero biográfico. Agora vem a lume Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido, da historiadora Laura de Mello e Souza, o que só confirma o acerto dos editores em mobilizar pesquisadores de qualidade acadêmica para biografar personagens de relevo pertencentes ou conectados à tradição histórica brasileira.
A narrativa da vida e morte de Cláudio Manuel da Costa – poeta mineiro do setecentos, quase esquecido fora dos círculos literários mais eruditos ou dedicados aos estudos arcádicos – é mais que a biografia do homem que virou nome de rua em Belo Horizonte, Sorocaba ou Curitiba. Mais do que uma mera biografia, o livro é um mergulho na história das Minas do século XVIII. Sem abdicar da força da erudição histórica, nem desconsiderar a contribuição da cultura acadêmica mais atualizada, a autora soube produzir um texto elegante e fluído que, ao narrar a vida de um homem, estabelece o fundo histórico no qual ele viveu.
Ao reconstruir a trajetória do poeta, Laura de Mello e Souza alude à formação histórica de uma das mais remotas e importantes províncias do Império português. Para o pequeno Reino de Portugal, e seu vasto Império, que se estendia por três continentes, o século XVIII amanheceu sob o impacto da descoberta de ouro no interior da América, que viria rapidamente a se tornar o fulcro de todo o sistema português. A atenção da Coroa e de seus agentes – bem como de reinóis e colonos, modestos ou afidalgados – voltou-se para os ermos do continente, muito além da Serra da Mantiqueira. Ao abordar o homem, a autora expõe a sociabilidade urbana de Ribeirão do Carmo, depois denominada Mariana, e Vila Rica, depois Ouro Preto, com suas festas, igrejas e ordens religiosas. No texto aparecem as relações políticas entre os homens bons e a Coroa. Ou ainda as estratégias de ascensão social, típicas das sociedades do Antigo Regime, ávidas por insígnias, nas quais as relações sociais estavam assentadas em critérios de fidelidade, parentesco, amizade, honra e serviço. Também aparece o peso da escravidão, “talvez o elemento mais importante da sociedade surgida nas Minas: sociedade conflituosa, tensa, complexa e mestiça desde o nascedouro” (p.34). Ao narrar a morte do poeta já idoso – rico e prestigiado, mas inconfidente e preso – a autora contempla em discretas e precisas pinceladas a Inconfidência Mineira, amparada pela leitura dos autos e por fina interpretação histórica, em que o rigor analítico dialoga com a leitura dos poemas.
Cláudio, dilacerado
Cláudio Manuel da Costa nasceu no distrito da Vargem do Itacolomi, perto do Ribeirão do Carmo, hoje Mariana, no dia 5 de julho de 1729. Seu pai, um modesto português de nome João Gonçalves da Costa, e sua mãe, Teresa Ribeiro de Alvarenga, de antiga e tradicional família paulista, haviam sido atraídos pelo ouro, como milhares de outras pessoas. E prosperaram, pois tiveram escravos, terras, minas e honra. Mas não se tornaram verdadeiros potentados da terra, como sugere a documentação relativa ao inventário da morte de João, pai de Cláudio: “A simplicidade da vida material dos cônjuges contrastava vivamente com o fato de terem enviado cinco filhos – todos os homens que nasceram – para estudar em Coimbra” (p.40). Se João e Teresa reuniram recursos o suficiente para mandarem seus rapazes a Coimbra, é lícito imaginar que amealharam alguma riqueza, tiveram gana de ascensão social e certa sofisticação cultural, além de amigos importantes. Entre eles estava o poderoso contratador João Fernandes (pai de outro João Fernandes, talvez ainda mais poderoso e célebre por esposar Chica da Silva). João Fernandes, o velho, era amigo de João Gonçalves da Costa e padrinho de seu filho, o menino Cláudio.
Aos 15 anos o jovem Cláudio atravessa as Gerais a fim de estudar no colégio jesuíta, no Rio de Janeiro. E aos 18, cruza o Atlântico. No dia primeiro de outubro de 1749, já matriculado na Universidade de Coimbra, inicia sua carreira de homem de letras. Às margens do Mondego, entre aulas, leituras e convivências – e versos – começa a construir sua fama de erudito. Cláudio foi capaz de adquirir uma sólida bagagem cultural humanista permanentemente alimentada ao longo da vida.
Em 1754, aos 24 anos, contrariado, retorna a Minas, de onde nunca mais sairia. Jamais abandonou os versos, mas ganhou a vida (e fez fortuna) como advogado e homem de Estado, exercendo diversas funções, de almotacé a cargos na Fazenda pública e na Câmara de Vila Rica. Ao narrar a vida pública de Cláudio, a autora traça interessante perfil do modo como Estado e a administração atuavam, com seus meandros, labirintos e interesses (lícitos e escusos). Naquele mundo bruto, Cláudio jamais deixou de ser poeta e foi capaz de transpor à sua obra a contradição expressa na convivência tensa entre uma cultura urbana e letrada e outra matuta e iletrada, tão característica das Minas do século XVIII, na qual se sentia “vítima estrangeira” na própria terra.
O poeta não apenas viveu em Minas, mas a expressou, sem jamais esquecer a cultura árcade da Europa. O confronto e a convivência entre a civilização e a barbárie no Novo Mundo é um tema recorrente na Ilustração. A saudade da civilização do Reino é sempre lembrada para falar da desolação de sua terra. “Ser letrado na aldeia não o livrava contudo dos tormentos internos. Em 1768, no ‘Prólogo’ à Obras, desabafou que as boas influências recebidas em Coimbra – ‘alguns influxos, que devi às águas do Mondego’ – estavam destinados a sucumbir, uma vez retornado às Minas: ‘aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância!’” (p.138).
A saudade – e o sentimento de inferioridade – perante a Europa, que já acometia Cláudio Manuel da Costa, parece ser um antigo traço do homem de letras brasileiro. Um século e meio depois das saudades metropolitanas de Cláudio, Mário de Andrade, em carta a Carlos Drummond, repreendendo-o, diria: “O dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a Moléstia de Nabuco. (…) Moléstia de Nabuco é isto de vocês andarem sentindo saudade do Sena em plena Quinta da Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever covardemente colocando o pronome carolinamichaelisticamente” (referência à filóloga portuguesa Carolina Michaëlis). (Lélia Coelho Frota, Carlos e Mário, 2002, p.128). Muitos dos conflitos vividos por Cláudio, ainda antes da modernidade, são dramas existenciais constantemente reatualizados por certos estratos da elite brasileira, que vivem cindidos entre a crença profunda de pertencer ao Ocidente e o sentimento igualmente profundo de estar à margem.
Concepção e narrativa
Narrar a vida – e de certo modo a obra – de um homem e seu mundo é uma luta com o tempo e com as palavras. Luta ainda mais árdua quando o acervo documental é exíguo e já se vão mais de dois séculos entre o tempo do narrador e do narrado. Reconstruir um tempo e um mundo que já nos são estrangeiros é tarefa por excelência do historiador, cuja missão é traduzir o passado, reconstruindo demoradamente filias e fobias, conceitos e projetos, paixões e ódios, decifrando códigos cuja fluência se perdeu. O Cláudio Manuel exumado por Laura nem é o “verdadeiro”, irremediavelmente perdido, nem é um personagem inventado à maneira de um ficcionista, mas um Cláudio reconstruído a partir de um acurado tratamento documental e bibliográfico, assentado em seu contexto histórico. Para que esse Cláudio exista foi necessário imaginar – ao modo dos grandes historiadores do XIX, como Jules Michelet, que, primando pela qualidade da reflexão e pela exploração crítica das fontes, não recusaram o estilo e a potência interpretativa, capazes de criar uma perspectiva autoral, inconfundível.
Para narrar a viagem de Cláudio Manuel entre o Rio de Janeiro e as Minas, na longa volta para casa, em 1754, depois de seus anos de estudo em Coimbra, a historiadora soube encontrar soluções aos problemas que a pesquisa impunha: na falta de quaisquer documentos relativos à viagem do jovem bacharel, a autora utilizou o relato do reinol Costa Matoso, que na qualidade de ouvidor nomeado àquela capitania, registrou a viagem em minúcias, em 1749; assim, ficamos sabendo que nos estreitos e tortuosos caminhos de Minas não raro a bagagem senão as próprias mulas despencavam ribanceira abaixo; que as chuvas de verão praticamente impediam a viagem entre novembro e março. Narra a biógrafa que, à “medida que a baía do Rio de Janeiro ia ficando para trás, encoberta por véus esgarçados de neblina, ficava também o oceano que ligava a colônia à metrópole, ficavam os navios atracados no cais, as igrejas, os conventos, o palácio dos governadores, o mundo mais lusitano e mais polido que havia desempenhado um papel tão importante na sua formação, e ao qual ele se ligara profundamente, com admiração e culpa” (p.70).
A riqueza do texto, submetido ao rigor da pesquisa histórica, garante à narrativa pelo menos duas camadas de leitura: o leitor especializado encontrará acurada perspectiva analítica, ancorada em erudição bibliográfica e documental; já o leitor não especialista reconhecerá no texto sabor e interesse.
No livro não há notas de rodapé, nem longos balanços historiográficos, como é comum nos textos vazados em linguagem acadêmica. No entanto, no fim do volume, já depois dos agradecimentos, entre as páginas 201 e 215, há uma importante contribuição aos estudantes e estudiosos das Minas do século XVIII. Em “Indicações e comentários sobre bibliografia e fontes primárias” a autora, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, oferta aos interessados um valioso roteiro de leitura, com comentários acerca da bibliografia e da documentação.
Uma das qualidades da abordagem de Laura está na construção de um retrato de Cláudio e sua época que transcende a dimensão local ou mesmo “nacional”. Inclusive porque o Brasil enquanto nação não existia, nem existiam as nações modernas, com suas sensibilidades românticas e seus projetos de unidade política, cultural, linguística e legal. Consciente de que a história de Cláudio transcorre numa província do Império português, não é de se estranhar que um dos poucos autores citados no livro seja Charles Boxer, historiador que não escreveu sob a égide do estruturalismo e dos recortes estritos (embora aprofundados) no espaço e no tempo, de onde emerge o particular. A obra de Boxer, mais tributária da hermenêutica documental do que da especulação teórica, construiu grandes painéis interpretativos, narrativos, abertos à multiplicidade temporal e espacial da história, como em O império marítimo português, 1415-1825 ou Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Quando as historiografias brasileira e portuguesa – por melhor que fossem – ainda estavam presas aos recortes nacionais, Boxer já praticava uma historiografia de dimensão imperial, o que não significa menosprezar as instituições locais, como a Câmara, ao contrário, pois era através dela que o braço régio atingia os lugares mais remotos do império. Na “vereação de 1781”, da qual Cláudio fazia parte, todos os membros da Câmara, com exceção de um deles, também pertenciam à Santa Casa da Misericórdia, “compondo, assim, o modelo da oligarquia local detectado pelo historiador britânico Charles Boxer para o conjunto do Império português: quem não estava na Câmara, estava na Misericórdia, quando não estava nas duas” (p.90).
A biógrafa é especialista nas Minas do século XVIII, o que, por certo, ajudou a assentar o biografado no chão histórico em que viveu o poeta árcade. Quanto à apreciação propriamente histórico-literária da obra de Cláudio Manoel da Costa, a historiadora travou diálogo com Sérgio Alcides, autor de Estes penhascos. Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773) e com a incontornável referência de Sérgio Buarque de Holanda, em Capítulos de literatura colonial. Como Lucien Febvre, nos seus Combates pela História, a autora apostou na contextualização e na humanização do personagem, sem, contudo, desconsiderar o enquadramento do estilo retórico de Claudio Manuel e sua época.
Mapas e viagens
“Viagem dilatada e aspérrima” é a frase com a qual Cláudio descreveu o périplo empreendido pelo governador da capitania, entre agosto e dezembro de 1764, comitiva da qual era integrante. Este é também título do capítulo 15 do livro, em que Laura narra a viagem de 40 léguas, ou 2640 quilômetros, pelo interior selvagem das Minas. A viagem expõe os caminhos, as vilas, os rios, as montanhas, os índios, os negros, os sertanistas, os contrabandistas. O lugar seria perfeito (em linha com a criativa concepção do livro) para presentear os leitores com os esforços cartográficos produzidos nas Gerais do século XVIII. Afinal, mapas ocupavam a imaginação do poeta: “Cláudio guardava duas imagens de santos dentro de redomas de vidro, que ficavam em cima de algum móvel ou dentro de um oratório, ou ainda quem sabe ao pé da cama: as paredes, ele reservava para uma de suas paixões, os mapas” (p.144). Não é possível resgatar os mapas das paredes da casa de Cláudio, mas teria sido interessante imaginá-los, especulando (e integrando ao texto) mapas da época, que nelas poderiam ter estado. Há no livro, no entanto, dois pequenos e extraordinários mapas: um que apresenta a setecentista Vila Rica, em que aparece circulada a fazenda de Cláudio Manuel da Costa (e que havia sido do casal João e Teresa, seus pais); e outro que exibe uma vista panorâmica de Mariana. Mas outros poderiam ter sido evocados, inclusive algum que mostrasse o traçado do caminho que havia sido percorrido por Cláudio (e descrito por Costa Matoso) entre o Rio e as Minas. Ele próprio, conta a autora, havia preparado um mapa, hoje desaparecido, para o governo local. Mapas eram uma das suas obsessões, aliás, não apenas sua, mas de seu tempo.
Honra, lei e a vida
Cláudio Manuel da Costa – um luso-brasileiro branco, educado em Coimbra, enriquecido nas lidas de advogado de prestígio, e um dos maiores poetas da língua portuguesa de seu tempo – jamais se casou, porém viveu por mais de 30 anos com Francisca Arcângela de Souza, negra, provavelmente escrava alforriada, com quem teve ao menos cinco filhos (tampouco se sabe o número exato). Para um homem de sua posição, casar-se com uma moça branca, de sua extração social, teria sido fácil, mas naquele mundo, assumir Francisca impunha um custo elevadíssimo.
Em seu esforço para se nobilitar, Cláudio empenhou-se em ingressar na Ordem de Cristo, a mais aristocrática das ordens militares portuguesas, fundada na Idade Média e herdeira dos templários. Na época dos descobrimentos, o “mestre” da Ordem era El Rei D. Manuel, o Venturoso, o que denota a importância da honraria, cujo valor era simbólico, destinando-se a “homens que haviam se distinguido tanto em feitos de armas como em outras ações dignas de nota, nas letras, no governo, na religião” (p.110). Além disso, pessoas que trabalhassem com as mãos ou fossem de “raça infecta” (ou casadas com gente de “sangue impuro”), por ascendência moura, judaica, negra ou indígena, estavam legalmente impedidas de pertencer à Câmara, às ordens militares ou à Santa Casa da Misericórdia. “Cláudio não podia. Nem casar com a companheira negra que lhe deu cinco filhos, e com quem permaneceu até o final. Como ficariam as honrarias que perseguia, o hábito de Cristo, o cargo de procurador da Fazenda, tudo amarrado pelas exigências restritivas do status e da legislação sobre pureza de sangue?” (p.160). Cláudio – cultor de Ovídio, leitor de Góngora, em termos políticos razoavelmente simpático às reformas do despotismo ilustrado de Pombal – foi, e não poderia deixar de ser, um “homem de seu tempo e de seu país”, parafraseando Machado de Assis (Instinto da Nacionalidade. Obra completa, vol.3, 1994, p.811). Afinal, vivia numa sociedade escravocrata e num Império cioso da pureza de sangue. Apesar da sóbria simpatia que lhe dedica, a biógrafa não deixa de revelar as contradições do poeta: “Cláudio se afeiçoou a uma negra pobre e não teve a coragem do desembargador João Fernandes de Oliveira, filho de seu padrinho, que, milionário e poderoso, assumiu publicamente tanto Chica da Silva quanto a filharada que nasceu da união” (p.141).
Cai o mundo de Cláudio
A partir da década de 1780 vigia, nas Gerais, um clima de sedição e conspiração, manifesto no que Laura de Mello e Souza chamou de “conversas perigosas”. O descontentamento prevalecia entre os grandes da terra – num contexto pós-pombalino, em que o governador nomeado por Lisboa, Luís da Cunha Meneses, gozava de péssima reputação, na medida em que buscava cortar foros e privilégios da elite local. A inquietação se agravava com a rígida política tributária que onerava as finanças dos endividados homens bons. Nesse clima, abundavam reuniões frequentadas pelo cônego de Mariana Luís Vieira da Silva, por Alvarenga Peixoto, que vivia em São João del Rei, por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, entre muitos outros, como Domingos de Abreu Vieira, Joaquim Silvério dos Reis e, decerto, Tiradentes.
O sentimento de contradição – que opunha interesses locais e o dever de lealdade à Coroa – deve ter calado fundo no já atormentado Cláudio, de certo modo tão português, mas também sensível às coisas do mundo em que habitava. Além dos conflitos latentes, havia um pano de fundo que a autora nota com muita sensibilidade, o que nem sempre percebem os historiadores ávidos de concretude e pouco afeitos a interpretações mais ousadas: “para completar seu desespero, (Cláudio) deve ter percebido com clareza que os luso-brasileiros não eram, no fundo portugueses: nem se sentiam mais assim, nem eram vistos como tais, quando olhados do Reino” (p.180).
O desastre era iminente. A devassa havia começado no Rio de Janeiro, onde Tiradentes fora encarcerado. Em Minas, na manhã de 22 de maio de 1789 fora preso Tomás Antônio Gonzaga. Outra escolta prendera Abreu Vieira. No dia 24, Alvarenga Peixoto e o padre Toledo foram presos. Todos seguiram para o Rio, “montados em cavalos que os soldados puxavam pelas rédeas e, humilhação das humilhações, agrilhoados nos pés e nas mãos” (p.182). Cláudio contava sessenta anos, era o mais velho dos inconfidentes e estava doente, talvez n’alma também. Ele, cavaleiro da Ordem de Cristo, educado em Coimbra, membro ativo da elite imperial, estava prestes a ser preso por alta traição ao Rei. Na madrugada do dia 25 de maio sua casa fora cercada. O poeta de prestígio, proprietário de escravos, advogado de quase todos os grandes contratadores, rico o suficiente para emprestar dinheiro aos ricos, estava preso. Ele que conhecia como poucos a legislação do Reino, agora era réu e devia depor. O depoente, alquebrado e acovardado, acostumado ao outro lado do balcão, foi logo incriminando amigos e confessando. “Mal lhe perguntaram se desconfiava do motivo que o levara a tal situação e já confessava o terror que o acometera ao saber do envolvimento de Gonzaga ‘numa espécie de levantamento com ideias de República’ e o receio de que o considerassem ‘sócio consentidor ou aprovador de semelhantes ideias’” (p.184). Além de trair seu Rei, traía seus amigos, convivas da Rua Gibu de poucas semanas antes. Ele, que tanto lutara por honra, já não a tinha. Os cargos, já não valiam mais nada. O hábito de Cristo devia soar ridículo.
No dia 4 de julho de 1789 Cláudio decidiu pôr termo à vida.
Ele que, talvez, nem desejasse um efetivo rompimento com a metrópole, contentando-se com maior autonomia da Capitania, um governo mais ilustrado e menos voraz e, principalmente, mais sensível às demandas locais. Cláudio Manuel da Costa foi a primeira vítima da Inconfidência. Antes do degredo de Gonzaga e Alvarenga, ou da morte esquartejada de Tiradentes, fora ele o primeiro a sucumbir.
Laura de Mello e Souza, convincentemente, opta pela tese do suicídio, o que seria visto como algo herético pela historiografia patriótica do século XIX (e por vários outros autores), para quem Cláudio foi assassinado, o que jamais saberemos. Resta ao historiador compreender, reunindo documentos, observando contextos, cotejando informações e refletindo sobre o passado – esse país estrangeiro que, à maneira de um etnógrafo, deve ser inquirido. O historiador não é um ficcionista, mas pode ser um narrador criativo, embora refém das fontes – por isso é também um detetive. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido é um painel das Minas do século XVIII, acessado a partir da leitura de um homem e suas circunstâncias. Empresa intelectual em que se percebe a influência do historiador italiano Carlo Ginzburg – não por acaso, um cultor do método indiciário. E, ainda mais se nota a herança de Sérgio Buarque de Holanda, que leu a poesia árcade de Cláudio como “o contraste entre o espetáculo da rudeza americana e a lembrança dos cenários europeus (…). Nos poemas que, restituído a terra natal, passa a compor, domina insistente e angustiada a nostalgia de quem – são palavras suas – se sente na própria terra peregrino” (Sergio Buarque de Holanda, Capítulos de história colonial, Brasiliense, 1991, p.227). Laura narrou a vida cindida de Cláudio, como Sérgio havia compreendido a obra cindida do poeta.
Alberto Luiz Schneider – Professor temporário de História Colonial no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH /USP-São Paulo/Brasil). E-mail: alberto.ls@uol.com.br
SOUZA, Laura de Mello e. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: SCHNEIDER, Alberto Luiz. A vida (e a morte) de Cláudio Manuel da Costa: poeta árcade, escravocrata e inconfidente. Almanack, Guarulhos, n.4, p. 168-173, jul./dez., 2012.