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O papel social do historiador: da cátedra ao tribunal – DUMOLIN (FH)
DUMOULIN, Oliver. O papel social do historiador: da cátedra ao tribunal. Trad. Fernando Scheibe. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. Resenha de: GAIOTTO, Mateus Américo. Historiadores no espaço público: questões para o debate. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.366-369, jan./jun., 2018.
Voltada ao público em geral, a obra O papel social do historiador, de autoria do francês Oliver Dumoulin e traduzida por Fernando Scheibe, acrescenta mais um título à coleção História e Historiografia, promovida pela Editora Autêntica que tem por objetivo principal fazer circular, entre estudantes e pesquisadores de história brasileiros, títulos que, ainda que não traduzidos, inspiravam certa curiosidade local por conta das abordagens instigantes e/ou pela renovação que promoveram nos âmbitos temáticos, metodológicos e teóricos.
A obra chega em momento oportuno, afinal, o debate contemporâneo a respeito da(s) função(ões) do historiador e da História na sociedade contemporânea encontra no Brasil da última década novas problemáticas, principalmente, em função da situação política nacional.
Oliver Dumoulin, de forma elegante, introduz o tema ao seu leitor ao apresentar discussões que permearam o chamado “processo Papon”. Os episódios que atravessaram a trajetória do político francês e colaborador nazista representam, ainda hoje, um ponto traumático na experiência histórica francesa; seus diversos julgamentos, ocorridos na década de 1980, são exemplos das situações nas quais o papel de historiadores se fez central, visto a não prescrição dos crimes contra a humanidade. A presença de profissionais da História, nesse e em outros casos, suscitaram não só o debate em torno do processo, mas do papel e dos limites dos historiadores nas sociedades contemporâneas.
Na função de espectadores autorizados do passado, esses profissionais trariam o “contexto” para que o júri pudesse guiar-se por algo que não havia vivido, questão central para os julgamentos de crimes de Guerra e contra a humanidade cometidos no século XX.
Assim, o tema central da obra é apresentado pela própria fonte do historiador, que monta sua análise e a divide em três partes: I – Hoje, a encomenda e a expertise, em nome do interesse geral, em nome dos interesses particulares; II – O erudito e o professor 1860-1920; III – O triunfo do cientista impotente e as vias alternativas 1920- 1970.
A divisão realizada pelo autor subverte a ordem cronológica e aborda o tema proposto de forma a iniciar diretamente pelo problema, ou seja, apresenta o tempo e as práticas atuais da historiografia, para, em um segundo momento, mostrar ao leitor as diversas raízes do debate em questão.
Na primeira parte, as discussões em torno do julgamento do “Processo Touvier” são o ponto central da questão. Os ataques sofridos pelos historiadores presentes no tribunal questionaram a qualidade e a importância do trabalho historiográfico e servem de pano de fundo para o autor caracterizar o momento experienciado pelo profissional frente à sua importância social. A figura do expert, aquele que tem uma postura mais próxima a do cientista, em contraposição a do amador, é colocada em destaque; a metodologia de trabalho com as fontes, o olhar diferenciado, a abstração frente ao seu próprio trabalho, são o foco do texto nesse primeiro momento.
O papel da imprensa também é enfatizado nesse e em outros momentos do livro. Os jornais, revistas e folhetins aparecem como os responsáveis por fazerem a ponte entre debates que antes eram exclusivos dos ambientes privados e/ou acadêmicos; além disso, são esses produtos culturais que apresentam aos historiadores novos problemas e questões a respeito do seu fazer historiográfico. O autor defende que a imprensa atua de maneira privilegiada, moldando o papel do historiador, afinal, é nela que constroem os debates contemporâneos, sendo ainda o espaço de afirmação dos sujeitos debatedores.
Gradativamente, o autor vai apresentando as diversas oposições às quais o historiador contemporâneo é chamado a se posicionar, dialogar e responder. Os diversos métodos historiográficos constituem um ponto central da argumentação e a relação da França com a disciplina histórica é o destaque; ainda que, numa segunda parte desse primeiro capítulo, ao demonstrar que o debate é amplo e abarca todas as áreas de estudo da própria história, o autor amplie seu recorte espacial.
Dito isso, cabe um destaque para a segunda das três partes que compõe esse primeiro capítulo, na qual Oliver Dumoulin sai pela primeira e única vez do ambiente europeu e busca nos Estados Unidos um exemplo mais bem-acabado do que ele chama de expert, modelo que, na sua perspectiva, ainda era marginal no continente europeu. Para tal, recorre novamente aos tribunais e às representações históricas daquela sociedade. No final, Dumoulin aponta para a falta de protagonismo da História enquanto disciplina fora da Europa, situação que só vai se alterar no fim dos anos de 1970, quando o historiador Morgan J. Kousser se faz presente regularmente nos julgamentos a respeito das vitimas de segregação nos EUA, tema mundialmente reconhecido como do âmbito da expertise daqueles historiadores.
Em O erudito e o professor 1860-1920, o autor retorna então à fundação da profissão de historiador para tentar responder as questões de fundo que baseiam sua tese. Nesse esforço, busca compreender todos os vieses que fundamentaram a profissão e seus fenômenos, assim, historiciza o próprio fazer historiográfico. Com foco na atuação e produção do historiador, esse capítulo traz para o leitor uma visão mais abrangente do fazer historiográfico desde os debates acerca da profissionalização, até a prática efetiva das revistas dedicadas à disciplina, como a Revue critique d’histoire et de littérature, passando pelo Anné sociologique, a Revue historique e os Annales, que terão papel central no último capítulo. Assim, ao escrever a história o historiador a estaria praticando.
No que diz respeito à virada do século XIX para o XX, o chamado “Affaire Dreyfus” e a presença dos historiadores naquele processo é que reclamam atenção do autor. Segundo ele, a atuação dos historiadores de então estava fundamentada em três valores, a saber: científico, cívico e patriótico. A exemplo de outros cientistas, atuavam em prol da nação, situação que iria se expandir e dominar o campo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Aqui, o Manifesto dos 93 na Alemanha, as ações de Ernest Lavisse e Émile Durkheim na universidade francesa, e os esforços da Conferência de Paz, se misturam para expor a hipótese de um historiador voltado a proteger a cultura de seu país em meio à destruição; mas, para desempenharem adequadamente essa missão cívica e patriótica, torna-se necessária a nomeação e o reconhecimento profissional, procedimento que depende dos pares e que atesta a legitimidade do fazer historiográfico.
No último dos três capítulos, O triunfo do cientista impotente e as vias alternativas 1920-1970, o mundo dos historiadores é abalado novamente, mas desta vez no pós I Guerra. Nesse contexto, Dumoulin volta seu olhar crítico para a reorganização da disciplina histórica nas cátedras das grandes universidades europeias e, em consequência, o novo papel da História e dos historiadores. Para tanto, com base nos exemplos dos discursos de Lucien Febvre, o autor apresenta o que seria a ruptura com os ideais nacionalistas e uma deontologia do desengajamento. Novamente o autor marca seu capítulo com o surgimento de uma crise na História, ou na historiografia, que reflete a sociedade francesa de então. A sociedade, a economia, a história da arte e outros diversos assuntos, que não os políticos, aparecem no seio dessa crise que leva a um novo rearranjo da disciplina.
O pensamento apolítico e a Segunda Guerra abrem o fim dessa parte do livro e, com isso, a reorganização dos grupos de historiadores em torno das revistas especializadas.
Sempre em comparação rápida com outros países do oeste europeu, o texto busca apresentar uma visão abrangente daquele cenário, mas restrita à realidade europeia, o que não desqualifica a construção analítica do autor, que mostrou-se competente na discussão e conseguiu dar conta das hipóteses levantadas na obra.
O livro de Dumoulin apresenta e desenvolve bem seus argumentos e alcança seus objetivos ao tratar de uma visão ampla da construção social do historiador durante o final do século XIX até a contemporaneidade. Por meio do estudo de biografias, autos processuais, imprensa e obras consagradas da historiografia, o autor não deixa de lado nenhuma das grandes correntes teóricas que surgiram nos últimos séculos. Porém, cabe o alerta para o público brasileiro; conforme apontado acima, essa análise prioriza as experiências europeias e, principalmente, francesas, razão pela qual as especificidades do fazer historiográfico latino-americano e brasileiro não são contempladas.
Dumoulin posiciona-se ao lado de grandes nomes da historiografia para desenvolver sua hipótese, com clara alusão a Lyautey e sua obra La Revue des Deux Mondes (1891). Entre os historiadores citados vemos nomes como René Rémond, Dominique Kalifa, Paul Ricoeur, Antoine Prost, Marc Bloch, Lucien Febvre, Georges Duby, François Dosse, Fustel de Coulanges, entre outros, além de intelectuais que não pertencem à área da História, apesar de todos estarem preocupados com o mesmo problema e possuírem, em alguma medida, objetivos em comum.
Por meio dessa seleção de historiadores e obras, Dumoulin insere-se num debate amplo mantendo a historiografia e realidade francesas como o cerne de sua reflexão. Apesar disso, o autor evita tomar uma posição, pois não caberia a ele o papel de juiz, figura muito discutida em sua própria obra. Assim, ao elencar o engajamento dos intelectuais e o envolvimento de profissionais de diversas outras áreas que não a da História, nesse contexto, o encontro do historiador com seu papel específico continua distante.
Contudo, o debate aqui apresentado está mais do que nunca presente no dia a dia do grupo, sendo assim, apesar de não se destacar pelo seu ineditismo, a obra e a hipótese de Oliver Dumoulin, de que a escrita da história se altera conforme o papel social do historiador que a realiza, abre um novo olhar nesse campo de discussões e constrói uma espécie de biografia da profissão desde o século XIX até a contemporaneidade.
Mateus Américo Gaiotto Acessar publicação original
[IF]Teoria da Religião. Seguida de Esquema de uma história das religiões | Georges Bataille
Georges Bataille (1897-1962), autor de textos filosóficos, históricos e de violentas ficções eróticas, como História do Olho (1928), tem seu livro póstumo Teoria da Religião, redigido em 1948, novamente publicado no Brasil. A edição anterior, lançada pela Editora Ática em 1993, contou com tradução de Sergio Gois de Paula e Viviane de Lamare, e revisão de Eliane Robert Moraes. Desde então, a obra se encontrava esgotada. A nova e excelente versão, publicada pela Editora Autêntica em 2015, é seguida da conferência Esquema de uma história das religiões, que esclarece e complementa o texto principal.
A tradução foi realizada por Fernando Scheibe, autor de uma importante tese de doutorado sobre Bataille com o título de Coisa Nenhuma: ensaio sobre literatura e soberania (na obra de Georges Bataille). Scheibe também assina as recentes traduções de O Erotismo, A Literatura e o Mal, A Experiência Interior e da revista Achéphale (1936-1939), fundada por Bataille e onde se encontram alguns de seus textos seminais. Tal esforço tem contribuído para colocar definitivamente a radical obra batailleana no horizonte dos debates no Brasil na filosofia e no campo das ciências humanas. Leia Mais
O Erotismo | Georges Battaille
“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Este axioma de Italo Calvino (2007: p.11) baliza com precisão o que a obra L’Erotisme, de Georges Bataille, que veio a lume pela primeira vez em 1957, significou e ainda significa para os estudos de gênero, sexualidade, história da arte e das religiões. O objeto de pesquisa é o erotismo e o seu funcionamento na sociedade, tema do qual o autor jamais se afastou, haja vista as muitas obras publicadas, como História do olho (1972) e Acéphale (1936-1939), para citar apenas algumas. Pode-se afiançar que a obra batailliana busca explicitar uma série de tabus da sociedade, do incesto ao homicídio, tendo como ponto de partida as experiências humanas.
Georges Bataille nasceu em Billom, França, em 1897. Data e lugar não são apáticos ao itinerário do pensador. Nascer na França em 1897 significava, para muitos, estar fadado a combater na Primeira Guerra Mundial dezessete anos depois. Com Bataille não foi diferente, e o autor não esconde esse fato. Já no prólogo de O erotismo, ele atesta que os escritos foram elaborados “entre a guerra”, num “mundo abandonado”, em que os homens viviam “como espectros” (p. 30). Leia Mais