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Lecciones de ética – KANT (FU)
KANT, I. Lecciones de ética. 3ª ed. Barcelona: Crítica, 2009. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.3, p.442-445, set./dez., 2012.
Como eram as aulas de filosofia prática do professor Immanuel Kant? Qual era a bibliografia básica utilizada nas referidas aulas? Quais eram os temas centralmente abordados? Na função de professor, Kant possuía um estilo similar àquele do Kant filósofo? Essas perguntas servem de estímulo para a leitura da obra Lecciones de ética, a qual foi editada a partir de manuscritos de ouvintes dos cursos de Kant. Frise-se que a mencionada obra constitui um dos cursos acadêmicos kantianos mais negligenciados, pois, enquanto outro curso, a Antropologia sob o ponto de vista pragmático, foi publicado ainda em 1798, as Lecciones de ética foram editadas somente em 1924.
Apesar de contar com uma tradução para o inglês desde 1930, a edição em espanhol foi publicada somente em 1988, e ainda não há nenhuma versão para o português. A edição espanhola aqui utilizada tomou por base o texto Moralphilosophie Collins, datado de 1784-1785, o qual integra o primeiro volume do tomo XXVII das Obras completas editadas pela Academia. Ademais, em notas ao pé da página, a versão em espanhol apresenta as pequenas divergências existentes entre o texto de Collins, base da tradução, e o de Menzer. Aliás, é importante lembrar que há várias versões das Lecciones de ética, cada qual com uma data diferente, mas com o texto praticamente igual.
Na introdução da edição em espanhol, Roberto Rodríguez Aramayo ressalta que a descrição das aulas de Kant como descontraídas não é compatível com um professor que dita pontualmente todo o conteúdo. Assim, surge a hipótese de que Kant lecionava de forma tão vivaz e repleta de digressões que os alunos eram incapazes de anotar integralmente as palavras dele, o que culminava no comércio de apontamentos para que fosse possível ter uma versão completa. Em relação à descontração nas aulas do filósofo de Königsberg, resta evidenciado que o mestre contava anedotas, era bem-humorado e incentivava os estudantes a pensarem por conta própria. Tendo em mente tais características, pode-se ler as Lecciones de ética e aproveitar as explicações pormenorizadas do professor Kant.
A obra é estruturada a partir de duas grandes partes: a primeira, cujo título é Philosophia Practica Universalis, fornece uma visão geral da filosofia prática, com ênfase na seara conceitual; a segunda, nominada Ethica, com destaque para a aplicação dos preceitos éticos no cotidiano dos seres humanos. Já no Proemio da primeira parte, delimita-se o âmbito da filosofia prática: regras de comportamento ligadas ao livre-arbítrio, as quais contrastam com a filosofia teórica, composta por regras de conhecimento. Destarte, a filosofia prática possui ações e condutas livres como objeto e, ao abstrair tal objeto, pode-se afirmar que a referida modalidade de filosofia proporciona uma regra do bom uso da liberdade, regras que determinam o que deve ser mesmo que nunca tenha ocorrido. Assim, examina-se um ser que possui livre-arbítrio, ou seja, um ser racional, sendo que Kant deixa claro que pode não ser exclusivamente o ser humano.
Conforme o professor Kant, as regras do que deve acontecer são expressas através de imperativos. Dessa forma, há três espécies de regras, as quais correspondem a três diferentes tipos de imperativos. Primeiramente são apresentadas as (i) regras de habilidade, expressas por imperativos problemáticos, cujo enunciado traduz uma necessidade da vontade relacionada a um fim arbitrário, pois aqui se considera algo bom quando é meio de obtenção para um fim apetecido. Tais regras não integram a filosofia prática, pois mandam apenas hipoteticamente. Assim, apenas as regras de (ii) sagacidade e de (iii) moralidade pertencem ao âmbito da filosofia prática; estas são necessárias objetivamente, enquanto aquelas o são de forma subjetiva.
As (ii) regras de sagacidade são enunciadas por imperativos pragmáticos, constituindo regras do entendimento sobre o que seja a felicidade e dos meios adequados para alcançá-la. Dessa maneira, há um fim determinado, a felicidade, que exige destreza no uso dos meios. Por fim, as (iii) regras de moralidade são expressas por imperativos morais, nos quais “o fim é propriamente indeterminado e a ação tampouco está determinada conforme ao fim, mas se dirige unicamente ao livre-arbítrio, seja qual for o fim. O imperativo moral manda, pois, absolutamente, sem atender aos fins” (Kant, 2009, p.42). Assim, o imperativo moral requer boa vontade expressa em ações livres, o que proporciona ao agente um valor interno – a moralidade.
Após as regras e imperativos, Kant passa a analisar o summum bonum, o qual é definido como um ideal, um arquétipo do conceito de bem que se liga tanto à felicidade das criaturas racionais como à dignidade destas. Ao expor o bem supremo segundo Diógenes, Epicuro e Zenão, Kant aponta os equívocos de cada pensador. Na sequência, o sistema moral é concebido como intelectual, ou seja, sem fundamentos externos, como na educação ou no governo. Nesse sentido, a lei moral possui uma necessidade categórica, que não decorre da experiência, mas da razão pura; possui fundamento na índole interna, o que exclui fundamentos externos, como o teológico. Além disso, as ações podem ser exigidas prática ou patologicamente, isto é, segundo leis da liberdade ou da inclinação sensível.
Kant lembra que todos os fundamentos do discernimento moral são objetivos, mas os fundamentos da execução também podem ser subjetivos. Quanto à execução, é importante mencionar a coação, imposição de uma ação a contragosto, o que pode possuir motivação prática ou relacionada às inclinações sensíveis. Assim, o ser racional pode satisfazer sua obrigação por coação ou por dever, ou seja, motivado interna ou externamente. Aliás, interna e externa também pode ser uma das classificações das obrigações. Estas são obrigações perfeitas, integrantes do âmbito jurídico, nas quais posso ser coagido por outro; já as obrigações internas são imperfeitas, correspondentes à seara ética, na qual cabe autocoação. Nota-se que as obrigações externas são maiores que as internas, pois as obrigações externas podem ser internas, mas não o contrário.
Ao diferenciar o jurídico do ético, Kant faz algumas afirmações que merecem destaque: (a) as disposições de ânimo não podem ser exigidas juridicamente, pois sua natureza interna impede seu reconhecimento; (b) a satisfação da obrigação jurídica é condição para todo dever ético; (c) as omissões éticas, ao contrário das jurídicas, não são propriamente ações. Isso significa que Kant já reconhecia que: (a) o direito apenas pode exigir ações ou abstenções, não intenções; (b) os deveres jurídicos têm primazia sobre os éticos, de forma que não cabe discussão acerca da ação ou omissão que é exigida juridicamente, apenas deve ser cumprida independentemente da intenção do agente. Por fim, (c) na concepção kantiana omissões éticas não podem ser imputadas ao agente por outro ser humano.
O professor Kant também analisa o castigo nos âmbitos jurídico e ético. Neste classifica a punição como puramente retributiva e naquele como preventiva, seja através da melhoria do infrator ou da dissuasão dos demais pelo exemplo. O filósofo afirma que há dois foros para julgar as ações humanas: um externo, competência do direito, e outro interno. Este tribunal interno, chamado de consciência moral, julga e sanciona as ações. Como fica claro na segunda parte da obra, Kant atribui à consciência moral o julgamento do próprio agente conforme a lei moral. É interessante notar que, após a condenação ou a absolvição, deve ocorrer o arrependimento moral e a adequação das ações ao ditame judicial, sendo que há destaque ao segundo ato – a adequação. Afinal, nem no foro humano a dívida é satisfeita somente com o arrependimento.
Na segunda parte, o filósofo de Königsberg continua a distinguir ética e direito, reiterando que um bom cidadão diferencia-se do homem virtuoso, pois este age com base na boa intenção, enquanto aquele é motivado pela coação. Na sequência, examina-se a religião, concebida como resultado da união da teologia com a moralidade. Para o filósofo, a crença na existência de Deus deriva da razão. Afinal, “qual seria a razão de nutrir intenções puras que, à exceção de Deus, ninguém pode perceber?” (Kant, 2009, p.122). Esse Ser Supremo é concebido como onisciente, para que perceba as intenções do agente, sendo impossível nutrir intenções morais puras sem acreditar que há um Ser que as observa.
Quanto aos deveres, tema central da Ethica, Kant enfatiza os deveres do ser racional para consigo mesmo, pois são negligenciados pelos filósofos e constituem a base para que o sujeito seja capaz de praticar qualquer outro dever. Além disso, os deveres para consigo mesmo atendem à dignidade do gênero humano, e sua violação despoja o homem de seu valor em termos absolutos, enquanto a violação dos demais deveres éticos apenas retira o valor em termos relativos. Daqui emerge a concepção de dignidade, que primeiramente inviabiliza que qualquer ser racional utilize a si próprio como meio. É óbvio que uma pessoa pode trabalhar e, nesse sentido, ser meio para outra pessoa, mas nem por isso perderá sua condição de pessoa e de fim. Aliás, Kant condena a preguiça e a ociosidade, afirmando que, quanto mais ocupados, mais vivos nos sentimos.
No tocante à dignidade, esta é delineada como algo cujo valor é superior à vida. O filósofo reitera que a vida em si não representa o bem supremo que foi confiado ao ser humano e tampouco o que deve ser atendido em primeiro lugar. A dignidade possui valor superior à sobrevivência, pois “quando o homem não pode conservar a vida senão humilhando sua condição de ser humano, mais vale que a sacrifique” (Kant, 2009, p.196). Em que pese essa afirmação kantiana, o filósofo considera o suicídio um ato intrinsecamente detestável, pois representa a destruição da humanidade e coloca esta abaixo da animalidade. Igualmente condenável é a prostituição, que transforma o ser humano em coisa para a satisfação da inclinação sexual de outro.
Já quanto aos deveres para com outros homens, Kant divide-os em deveres de afeto ou benevolência e deveres de justiça ou obrigação, de forma que há um instinto para a benevolência, o que não ocorre com a justiça. Sob a rubrica de deveres para com outros seres racionais, incluem-se os deveres para com outros seres vivos não racionais e coisas. Ademais, Kant afirma que os seres humanos são como hóspedes da natureza, que possuem a obrigação de restringir o consumo, pois devem desfrutar dos recursos vitais tendo em vista a felicidade alheia. Nesse ponto, nota-se que, apesar de elaborar uma ética antropocêntrica, Kant manifesta claramente uma preocupação ambiental, principalmente com o consumo consciente e com a não violência para com animais e vegetais.
Por fim, o filósofo de Königsberg trabalha brevemente vários temas, dentre os quais se destaca a retomada da ideia de humanidade, ao argumentar que se pode diferenciar o homem mesmo de sua humanidade e que os juízes devem observar esta ao aplicar o castigo, inclusive no caso de um grande criminoso. Também é delineada uma concepção de amizade calcada em um ideal de que, se todos os homens zelassem pela felicidade dos outros, o bem-estar próprio seria atingido através dos demais. O último tema é a educação, composta pela formação e pela instrução, sendo que aquela é negativa e visa à segregação de tudo o que é contrário à natureza, enquanto a instrução pode ser negativa, ao prevenir o cometimento de erros, ou positiva, ao agregar conhecimentos. Assim, todo o lado negativo da educação chama-se disciplina, a qual supõe coerção, contrapõe-se à liberdade, e seu aspecto mais elementar baseia-se na obediência. Para Kant, a suprema perfeição moral que o gênero humano pode alcançar depende do transcurso de muitos séculos e da educação.
Em suma, Immanuel Kant dispensa apresentações, afinal representa um marco na Filosofia, mas a obra Lecciones de ética possibilita aos leitores conhecer uma faceta negligenciada de Kant: a de professor. Neste ofício, ele se socorre da filosofia de Baumgarten e, com exemplos e explicações pormenorizadas, clarifica muitos dos temas abordados nas obras Crítica da razão prática, Fundamentação da metafísica dos costumes e A metafísica dos costumes. A obra evidencia a veracidade da declaração inicial contida na introdução da edição espanhola de Lecciones de ética, qual seja, que, além de filósofo, Kant é um autêntico mestre da humanidade.
Juliane Scariot – Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, RS, Brasil. E-mail: juliane.scariot@gmail.com
[DR]
História da ética – SIDGWICK (C)
SIDGWICK, Henry. História da ética. São Paulo: Ícone, 2010. Resenha de: SCARIOT, Juliane . Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 3, p. 170-174, set/dez, 2012.
A ética pode ser inserida entre os temas filosóficos que mais despertam o interesse de pensadores de diferentes épocas. Estabelecer o que propriamente ela é, o que é a virtude, qual é a conduta correta, o que é o bem e qual é a relação da ética com a psicologia, a política, a teologia e o direito são algumas das questões tradicionais desse âmbito. Considerando a relevância do tema, Sidgwick (2010) apresenta a História da ética, obra que fornece uma visão geral da ética desde, aproximadamente, 550 a.C. até o século XIX, época na qual Sidgwick escreveu a obra. Obviamente, no tocante aos estudos éticos de seu tempo, o autor enfatiza a ética inglesa, na qual ele próprio se inseria.
Sidgwick nasceu em 1838 e faleceu em 1900, desenvolvendo suas pesquisas na Universidade de Cambridge, instituição na qual trabalhou como professor. A principal obra de Sidgwick é The methods of ethics, de 1874, em que ele compara criticamente o método do egoísmo ético, da moralidade do senso comum e da benevolência universal. Esse livro foi revisado e editado sete vezes, ou seja, há sete diferentes edições da obra e, apesar de sua importância para os estudos éticos, nenhuma das edições foi traduzida para o português. Além das contribuições à filosofia moral, Sidgwick estudou matemática, filosofia política e jurídica, epistemologia, metafísica, parapsicologia, pedagogia, etc. Leia Mais
Principia ethica – MOORE (C)
MOORE, George Edward. Principia ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e Isabel Pedro dos Santos 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 234-237, jan/abr, 2012.
Qual é o âmbito da ética? O que é bom? O que é o bem? O que é bom em si mesmo? O que significa dizer que determinada ação é um dever? Essas são questões abordadas pelo filósofo inglês Moore (1873- 1958) no livro Principia ethica, um clássico da ética, publicado em outubro de 1903. Originalmente, a obra era composta de seis capítulos e um prefácio, mas a edição aqui utilizada inclui o prefácio à segunda edição, no qual Moore analisa as críticas tecidas ao seu texto e aponta algumas alterações que seriam necessárias; também há o artigo “O conceito de valor intrínseco”, publicado em 1922, e o texto “O livrearbítrio”, que integra Ethics, obra publicada em 1912 e reeditada em 1966.
É importante mencionar que, além dos textos de Moore, a obra tem uma introdução na qual apresenta, brevemente, o autor e a obra. Leia Mais