A pobreza no Satyricon de Petrônio – FAVERSANI (RBH)

FAVERSANI, Fábio. A pobreza no Satyricon de Petrônio. [Editora da UFOP, 1999]. Resenha de: VIZENTIN, Marilena. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

A reflexão sobre os Estudos Clássicos coloca-se como fundamental na construção de uma História Cultural do Ocidente; e já que o Brasil se insere dentro deste quadro, é razoável esperar que nós, brasileiros, possamos produzir algo sobre este momento do pensar em nossa própria cultura.

Malgrado o número bastante reduzido da tiragem (apenas 90 exemplares), acreditamos que a publicação e divulgação deste texto causará um impacto bastante positivo na comunidade científica brasileira que se dedica a este ramo da História. Além disso, trata-se de um estudo que se insere dentro de uma nova frente de trabalhos sobre História Antiga no Brasil, os quais buscam uma maior autonomia em relação à historiografia produzida na Europa e Estados Unidos, bem como uma nova abordagem de conceitos há muito cristalizados. Nesse sentido, esta nova “geração” de historiadores procura uma melhor inteligibilidade de problemas inerentes à época atual a partir do estudo de sociedades antigas, de forma a contribuir para a construção de uma identidade cultural nacional própria.É aproximadamente com esta colocação que Fábio Faversani, autor da obra em epígrafe, inicia o trabalho sobre o qual nos deteremos nesta resenha. Fruto de sua dissertação de mestrado, A pobreza no Satyricon de Petrônio, lançada recentemente por uma iniciativa da Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, representa uma contribuição de grande relevância para o avanço dos estudos sobre a Antigüidade Clássica no Brasil.

A obra de Faversani, deste modo, procura responder à seguinte questão: “(…) as posições sociais são determináveis pela posição dos agentes nas relações de poder?” Na tentativa de respondê-la, o autor dedica-se à análise de uma das obras mais polêmicas produzidas pelo mundo antigo, seja pelo seu conteúdo, seja pelo estilo único com que foi redigida: o Satyricon, de Petrônio. A partir dela, reflete sobre os livres pobres em Roma à época do Principado e sobre as relações diretas de poder engendradas por estes personagens. Sua primeira conclusão é a de que a posição dos agentes sobre os quais se detém é determinável pela sua inserção na dinâmica das relações sociais e não apenas pelo controle deste ou daquele atributo. Discute, para tanto, ao longo dos capítulos, questões que se referem diretamente à problemática da obra latina; questões de fundo mais teórico, como os conceitos de “classe” e “estamento”; e o tratamento dado pela historiografia aos livres pobres do Império romano. Ademais, utiliza-se de instrumentos analítico-conceituais próprios de forma a efetivar sua proposta inicial de trabalho.

Estruturada desta maneira, Faversani dá início à sua exposição enfocando primeiramente a obra latina sob múltiplos aspectos. Assim, propõe um resumo bastante breve e esquemático de seu conteúdo, dividindo-o em cinco partes, de modo a colocar o leitor a par da história ali narrada. A seguir, passa para os problemas, a nosso ver bastante comuns quando se trata de um texto antigo, relativos à data e autoria do mesmo. Nesse sentido, perfaz, com bastante acuidade, todo o caminho de estudos realizados com esta finalidade, ressaltando a grande importância dos próprios códices para a definição destas questões. No sentido de elucidar o nome de seu verdadeiro autor, tece uma série de argumentos que, se de início nos parecem relativamente confusos, aos poucos vão se definindo mais claramente. Identifica, pois, C. Petrônio Arbiter como o verdadeiro autor em questão.

No concernente à data em que foi escrito o Satyricon, Faversani apresenta os diferentes meios pelos quais se procurou chegar a um período aproximado, quais sejam: recursos lingüísticos, econômicos e estilísticos. A seu ver, entretanto, nenhuma das datas propostas pôde solucionar verdadeiramente o embate, o que o leva a tomar o termo hortus pompeianus como chave para a elucidação do mesmo1.

Outros pontos sobre os quais ainda tece algumas considerações referem-se aos locais em que se ambientam os episódios narrados e as condições em que foi escrita a história. Para Faversani, a definição precisa das cidades citadas no texto latino, para seu estudo, é absolutamente irrelevante; basta-lhe saber que se tratava de um ambiente urbano do centro-sul italiota, notadamente cidades de porte médio. Quanto ao contexto em que teria sido escrito, deixa alguns aspectos a desejar, pois pressupõe que o leitor esteja bastante familiarizado com o período retratado, não entrando em maiores detalhes sobre os aspectos políticos e econômicos — fundamentais pelo que se pôde depreender da análise subseqüente. Este fato, por sua vez, produz uma visão — errônea — da existência de um mundo à parte, composto apenas pelos livres pobres, como se eles não interagissem e não fizessem parte de toda uma estrutura social já estabelecida.

Finalmente, para encerrar este capítulo, Faversani esboça a trajetória da tradição textual petroniana atentando para as falsificações existentes acerca do Satyricon (o texto que nos chegou não está completo), e alertando para o uso inadequado destas falsificações, principalmente em edições brasileiras (segundo ele, todas elas dão o texto como concluído). Este item serve de mote para a introdução do estilo e das intenções petronianas. Para o autor, Petrônio, ao pintar a realidade que o cerca de forma cômica e parcial, acaba controlando o que seus leitores vêem de forma direta, daí a dificuldade, hoje, em se compreender e nomear seu estilo. Chega-se à conclusão, portanto, de que se trata de um estilo original e inédito, na medida em que faz uso de inúmeros gêneros literários já existentes. Sua exposição, mesmo que em tom popularesco, apresenta criticamente uma “realidade afastada do natural e inegavelmente em crise”, daí o recurso adotado por Petrônio, qual seja, o de apontar para diferentes perspectivas na busca de outras tantas soluções.

O segundo capítulo, a seu turno, tratará dos aspectos teórico-metodológicos e dos instrumentos analítico-conceituais a serem utilizados na posterior análise da fonte, cujo foco de preocupação será apenas a pobreza construída no Satyricon. Tendo isto em vista, Faversani coloca a abordagem da historiografia com relação ao tema escolhido, centrando sua atenção em historiadores como Rostovtzeff, Catherine Salle, Paul Veyne, E. Badian e Ramsey MacMullen. Alguns deles encontram o que ele chamou, bastante a propósito, de “consoladora solução”, isto é, a idéia do panem et circenses, na qual os pobres viveriam despreocupadamente à sombra das dádivas dos ricos… Os argumentos subseqüentes, em função disso, procuram recolocar a questão das condições de vida dos pobres — verdadeiramente “sofríveis” —, concluindo que a plebe não poderia sobreviver sem qualquer tipo de estratégia que lhe garantisse ao menos o sustento.

Esta constatação leva Faversani a uma discussão sobre dois conceitos hegemônicos na historiografia social: classe e estamento. Sua abordagem dar-se-ia pelo fato de constituírem elementos bastante importantes para a compreensão da posição social ocupada por Trimalchio, um dos principais personagens da narrativa petroniana e comumente o mais analisado pela historiografia. Seria Trimalchio um típico representante de uma classe ascendente, vinculada ao mercado, e concorrente ou aliada plausível da aristocracia fundiária romana ou, ao contrário, seria típico na demonstração de que os libertos não podiam constituir um grupo hegemônico ou serem admitidos naqueles já existentes, tanto por limitações jurídicas, quanto culturais? É o que Faversani procurará demonstrar por meio da análise dos dois conceitos acima referidos. Tanto um quanto o outro, infere, são ou insuficientes para a análise da sociedade romana, ou eficientes apenas para a compreensão da elite senatorial, e não em relação aos libertos. Crê, portanto, que a solução para todos os impasses apontados esteja na “(…) criação de uma categoria analítica alternativa, capaz de satisfazer as necessidades de compreensão das potencialidades ou efetiva ocorrência de ações coletivas dos agentes sociais”.

Nesse sentido, Faversani vai se ocupar do que chamou de “relações diretas de poder”. Retoma, para tanto, a discussão encetada a partir da década de 60 pelos historiadores ingleses (P. Gansey, R. Saller, A. Wallace-Hadrill, C. Whitaker, entre outros) e dá continuidade à mesma aumentando as possibilidades de tipos de relações diretas de poder e observando — daí sua inovação —, as redes de ordenação e controle que, em conjunto, elas estruturam. Ademais, respeita a multiplicidade qualitativa destas relações, tratando-as como tipologicamente diferenciadas, sem privilegiar um único tipo. Inclui, assim, diferentes categorias que se inter-relacionam, tais como clientes, libertos, protegidos, amigos, protetores, senhores e patronos, inferindo ser a extensão das redes entre eles muito variável e dependente da capacidade de cada agente em estabelecer ligações.

Na “difícil busca de uma idéia de pobreza”, portanto, Faversani conclui este capítulo com um panorama de como os romanos da elite encaravam seus contemporâneos pobres e com uma nova abordagem das categorias utilizadas pela historiografia para classificar e definir a pobreza. Busca, a partir disso, uma melhor visualização de como os pobres se colocavam diante do universo dos ricos e de que maneira interagiam com ele. Assim, segundo o autor, existiria um grande debate a respeito da idéia de pobreza, mais do que sobre o pobre enquanto agente social em si, o que não contribuiria em muito na reconstrução dos mecanismos de produção e reprodução da vida social criados pelos pobres. Nesse sentido, aponta para as dificuldades de se delimitar conceitualmente a pobreza, passando a discutir alguns estudos que, mesmo não tendo como tema central a Antigüidade Clássica, procuraram esclarecer, ou pelo menos levar em consideração a questão da pobreza.

Em “As relações de poder no Satyricon“, temos finalmente a análise dos agentes sociais presentes na narrativa de Petrônio. Em relação a isso, e visando a uma maior inteligibilidade por parte do leitor, Faversani divide o texto latino em “episódios” (mais precisamente quatro), nos quais buscará conclusões de validade mais geral para esta fonte. Estuda, para tanto, cada um deles por ordem crescente de complexidade, levando em conta sua extensão, as redes de poder minimamente independentes, o número de agentes sociais envolvidos e os dados que levam à caracterização destes. Antes de iniciar sua análise acerca destas questões, entretanto, elabora um estudo dos protagonistas do Satyricon, pois cada um deles participa de mais de um episódio e sua repetição, a seu ver, poderia se revelar enfadonha.

A partir de sua caracterização, Faversani traça as diversas estratégias de sobrevivência empreendidas por estes personagens, bem como as relações sociais encetadas pelos mesmos. Disso infere que tais estratégias teriam um caráter mais defensivo, ao mesmo tempo em que funcionavam como mecanismos de escape para as faltas cometidas ao longo de seus estratagemas. Daí as relações sociais que estabeleciam não poderem, de forma alguma, ser duradouras, visto a iminência de serem reconhecidas por outrem.

Na análise que se segue dos episódios (“de Quartilla”, “Viagem a Crotona”, “Farsa de Crotona” e “Cena Trimalchionis“), observa-se sempre uma breve síntese de cada um deles e uma primeira identificação dos principais personagens envolvidos no excerto em questão. Dentre eles, Faversani detém-se sobretudo no último episódio elencado, destacando a figura de Trimalchio e sua atuação perante os convivas do lauto banquete que oferece. Para tanto, apresenta “os olhares da historiografia” sobre este personagem, verificando as “tipicidades” atribuídas a ele e as diferentes concepções de sociedade romana que motivaram a criação dos “típicos Trimalchios”. A seu ver, Trimalchio seria típico apenas de como as elites viam os libertos ricos e não de como eles de fato poderiam ser, de forma que uma análise mais coerente deveria levar em consideração também as suas relações sociais e não apenas os estereótipos elaborados tanto pela epigrafia produzida pelos próprios romanos, quanto pela tradição textual remanescente.

Em vista disso, sob o “prisma das relações diretas de poder”, Faversani vai analisar a figura de Trimalchio ressaltando a multiplicidade de personagens que atuam na Cena Trimalchionis e seu verdadeiro papel em relação a seu anfitrião, aspectos estes que considera extremamente importantes para a construção da personalidade do mesmo. Estabelece, assim, uma tipologia, dividindo-os entre comensais (em sua maioria libertos), indivíduos mencionados pelos comensais, e servidores (pertencentes à familia trimalchionis), de maneira a reconstruir as inter-relações estabelecidas entre eles. Ao examinar cada uma destas “categorias” — que convergem, direta ou indiretamente para uma única pessoa, ou seja, Trimalchio —, estabelece, por fim, um quadro geral de relações de poder que os envolvem, cumprindo, sem dúvida alguma, os objetivos a que se propusera no início de seu trabalho.

Na busca de uma melhor compreensão da pobreza, portanto, Faversani acaba confirmando “a importância das relações diretas de poder como elemento ordenador e estruturador da sociedade romana” — ao menos daquela cuja imagem Petrônio nos permitiu vislumbrar —, por meio de instrumentos analítico-conceituais próprios que, à primeira vista, pareceram-nos absolutamente pertinentes. Talvez, como o próprio autor afirmou, estes instrumentos não tenham a mesma validade junto a períodos históricos mais abrangentes, daí a necessidade de se propor novas alternativas de análise que possam contemplar também outras questões, além da pobreza.

Ao enfocar os livres pobres do período neroniano, todavia, Faversani coloca-nos diante de questões que, malgrado os muitos séculos decorridos, ainda se revelam preocupantes. Nesse sentido, a utilização que faz de exemplos tirados de outros contextos históricos não é fortuita. Apenas revela ser a pobreza um problema latente, não só para os que a observam de longe — sejam senadores romanos ou acadêmicos —, mas sobretudo para os que dela fazem parte e que sobrevivem, ainda, graças àquelas mesmas estratégias (guardadas as devidas proporções). Procurar investir em outras “alternativas de análise”, como a aqui esboçada, embora possa parecer muito pouco perante a injusta realidade brasileira, sem dúvida muito auxilia na construção de “uma visão do passado a serviço da transformação (…) de nossa sociedade”. O caminho escolhido, convenhamos, não é dos mais fáceis, mas até aqui, parece-nos, andou-se bem!

Notas

1 Segundo Faversani, só teria sentido possuir um hortus pompeianus antes de 79 d.C., ano em que Pompéia é soterrada pela erupção do Vesúvio. Deste modo, a obra só poderia ser anterior a esta data.

Marilena Vizentin – Mestre-História, USP.

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A pobreza no Satyricon de Petrônio – FAVERSANI (VH)

FAVERSANI, F. A pobreza no Satyricon de Petrônio. Ouro Preto:  Editora UFOP, 1999. Resenha de: GARRAFFONI, Renata Senna. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 246-249, jul., 2000.

Este livro de Fábio Faversani, publicado recentemente pela Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, é o resultado de sua pesquisa para obtenção do título de Mestre em História e leva-nos a uma viagem pelos setores subalternos da sociedade romana do início do principado.

Logo nas primeiras páginas percebemos que o historiador desenvolve um estudo no campo da História Social e tem como fonte principal uma obra literária, o Satyricon de Petrônio. Escrito de uma maneira clara e objetiva, este trabalho permite ao leitor compreender algumas polêmicas presentes no estudo da Antigüidade Clássica. Tais polêmicas são analisadas com seriedade e compreendem não só aspectos literários da fonte como também as que envolvem a construção de seu objeto de pesquisa.

Assim, para cumprir estes objetivos, Faversani divide seu estudo em três capítulos. O primeiro — Satyricon — é centrado na fonte. De maneira ordenada, somos introduzidos ao universo do romance por meio de um resumo de seus principais episódios e, em seguida, o historiador discute sua datação, os problemas com relação à autoria, a provável origem de seu título, os locais em que se ambientam as aventuras dos protagonistas, a preservação do texto ao longo dos séculos e encerra comentando o estilo literário e as intenções de Petrônio ao escrevê-lo.

Já no segundo capítulo — Relações de Poder na Análise da Pobreza —, estabelece o quadro conceitual que vai empregar ao analisar a fonte. Para tanto, inicialmente, realiza um balanço teórico no qual problematiza o lugar da pobreza dentro dos estudos clássicos. De acordo com Faversani, até a década de 60 muitos historiadores afirmavam que não havia necessidade de se pesquisar este tema; eram poucos os que consideravam sua importância e, quando o faziam, acabavam tomando viéses analíticos que tinham como pressupostos preconceitos desvalorizadores: criou-se uma tradição que demonstrava um quadro falso da pobreza em que os pobres seriam alimentados e divertidos pelo Estado ou por homens ricos, tendo uma vida sem grandes esforços, seriam, enfim, tratados a “pão e circo”.

Ao questionar esta postura conservadora, Faversani apresenta-nos uma outra realidade na qual os pobres não se comportavam como parasitas do Estado. Considerando que somente os cidadãos romanos poderiam participar da distribuição do trigo, o estudioso afirma que haveria necessidade de se estabelecer, entre os demais agentes, outras estratégias de sobrevivência que não se restringissem às doações. Recuperá-las e descobrir quem eram os pobres romanos e como viviam seria, portanto, uma tarefa do historiador clássico.

Antes de estabelecer os instrumentos analíticos para compreender melhor este mundo, Faversani examina dois conceitos desenvolvidos pela História Social e empregados acriticamente no estudo da Antigüidade Clássica: classe e estamento. Analisando estes conceitos, e confrontando-os com as características do personagem Trimalcião1, descritas por Petrônio, o historiador considera a insuficiência de tais instrumentos analíticos e acaba por concluir que as deficiências de análise podem ser supridas se forem consideradas as relações diretas de poder2. Tais relações foram propostas por Faversani com base nos trabalhos de Garnsey e Saller, primeiros a mencionar esta possibilidade de estudo do Mundo Antigo, e são concebidas como sendo interações estabelecidas entre os agentes, pressupondo os seguintes elementos: pretensão de longa duração, inexistência de regulação legal, ocorrência de troca de bens e serviços, flexibilidade, isto é, possibilidade de promoção social de um dos agentes e, por último, existência de uma estimativa recíproca da posição de cada agente.

Assim, sob este ponto de vista, o pobre seria aquele que ocupava uma posição inferior nas relações de poder sem que esta posição seja uma categoria jurídica como o caso dos escravos, por exemplo. O pobre seria, então, “( … ) uma noção antes de tudo, relativa. Alguém pode ser pobre do ponto de vista de um agente social, mas não para um outro, colocando em ponto diverso da escala social. Faz parte do próprio jogo de manutenção da ordem social esta relatividade e permissividade do conceito de pobre” (pp. 87-88).

No terceiro e último capítulo — Relações de Poder no Satyricon —, temos a análise das ações dos protagonistas (Ascilto, Gíton, Encólpio e Eumulpo) e suas estratégias de sobrevivência, além da interpretação do episódio de Quartila, da Cena Trimalchionis, da viagem à Crotona e da farsa que se desenvolve nesta cidade sob a ótica das relações de poder. A partir destas considerações, o historiador conclui que a imagem que Petrônio nos fornece em sua obra é que as relações diretas de poder são elementos que ordenam e estruturam a sociedade romana; a posição social dos agentes seria, portanto, relativa e determinada pela sua inserção nas redes de relações de poder.

Esta conclusão é, na verdade, uma confirmação da hipótese levantada logo na introdução de seu trabalho (pp.11-12), o que explicita a posição teórica que o autor assume: apresenta ao leitor um questionamento das falhas dos conceitos existentes e desenvolve um modelo mais completo para testá-lo tomando por base o Satyricon de Petrônio.

O conceito adotado por Faversani foi, inicialmente, desenvolvido por Garnsey e Saller para interpretar as relações estabelecidas entre os membros da elite. Ao reelaborar este conceito, Faversani o expande e abre a possibilidade de utilizá-lo para uma maior compreensão dos submundos da Antigüidade. Embora seja uma categoria analítica mais convincente que classe ou estamento, pois proporciona uma visão mais ampla e diversificada do mundo pobre, a essência de ambos ainda continua presente, uma vez que propõe um conceito baseado na ordenação das relações sociais. Neste sentido, cada personagem representaria um papel específico dentro da trama do Satyricon e, mais genericamente, na sociedade romana.

A partir destas considerações, percebemos que a base de seu argumento é a ordem e, conseqüentemente, o estabelecimento de hierarquias: quem não possui uma boa posição nas redes de relações de poder sempre estará submetido à vontade de outrem. Este tipo de postura proporciona uma análise totalizante da sociedade e permite ao autor transitar da obra literária para o cotidiano romano, pois assim como as relações expressas no romance ordenam as atitudes dos personagens, elas seriam, também, elementos estruturadores da sociedade em que Petrônio vivera3.

Tendo ressaltado estes pontos, percebemos que o autor procura estabelecer os padrões sociais de maneira globalizante e, ao optar por este modelo de análise, acaba deixando de lado alguns aspectos mais particulares da composição do discurso petroniano, como por exemplo os exageros e os recursos lingüísticos e literários empregados para caracterizar a presença das diferenças entre os personagens. Tais aspectos poderiam revelar não somente estruturas sociais, mas também a visão de mundo de um membro da elite romana sobre a sociedade de seu tempo. No entanto, esta pequena ressalva não tira o principal mérito de seu livro: a preocupação política em dar voz e procurar alternativas para compreender um segmento da sociedade que foi, durante muito tempo, apagado ou menosprezado pela grande maioria dos historiadores clássicos.

Notas

1 Trimalcião é um liberto rico que, ao longo do romance, oferece um banquete extraordinário. A riqueza de detalhes presente neste episódio gerou inúmeras polêmicas entre os classicistas e fez com que este personagem fosse o centro de longos debates. Muitos estudiosos da Antigüidade discutiram o papel que este liberto representaria na sociedade romana. O próprio Faversani apresenta os artigos de Veyne e Rostovtzeff e os questiona apoiado em outros pesquisadores. – Para abordagens recentes sobre a famosa Cena seria interessante, por exemplo, conferir também: – Aquati, C., “Uma história arrepiante no Satíricon”, Clássica (suplemento 2), Araraquara, SBEC, 1993, pp. 55-61.

– ________, “O narrador da Cena Trimalchionis: ironia e omissão”, texto base para a comunicação – SBEC, R.J., 1995, pp. 2-11 (Ensaio)

– _________, “Linguagem e caracterização na Cena Trimalchionis: Hermerote”, in: Glotta, S.J. Rio Preto, 16: 4763, 1994/95.

– Gonçalves, C.R., A cultura dos libertos no Satyricon: uma leitura, Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em História da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da UNESP/Assis, S.P., 1996.

– Rosen, K., “Römische Freigelassene als Aufsteiger und Petrons Cena Trimalchionis”, in: Gymnasium, 102, Bonn, 1995, pp.79-92.

2 De acordo com suas próprias palavras: “neste sentido, parece-nos proveitoso – obviamente, aos pesquisadores preocupados em compreender a história social antiga em uma perspectiva transformadora – procurar mecanismos alternativos àqueles estabelecidos pelo conceito de classe social para a compreensão de grupos sociais. Assim, é promissora uma perspectiva de análise fundada nas relações diretas de poder. Essa propicia, por um lado, possíveis soluções às críticas levantadas ao conceito de classe e, por outro, garante, se empregada de forma múltipla, como as redes de relações, a definição de grupos sociais que permitam a compreensão das ações coletivas.” (p.61).

3 Esta postura é clara em sua conclusão: “essa análise totalizante, fundada em um quadro conceitual adequado, confirmou nossa hipótese de que as relações diretas de poder são elemento ordenador e estruturador da sociedade, ao menos daquela cuja imagem Petrônio nos transmite” (p.160).

Renata Senna Garraffoni – Doutoranda em História – IFCH/UNICAMP. Bolsista da Fapesp.

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