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Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino | Igor Salomão Teixeira (R)
Igor Salomão Teixeira | Foto: AracneTV |
O fenômeno de santidade, marcado pela sua complexidade e pelo ânimo que alimenta a espiritualidade cristã ocidental, traz consigo toda a densidade que o comporta no que tange ao seu processo de desenvolvimento. Sendo o santo o expoente máximo, cuja vivência terrena lhe confere o acesso irrestrito ao plano sagrado, seu caráter intercessor o torna um importante elemento mediador entre a instância divina e o fiel.
Pensando-o como construção, isto é, imergindo mais profundamente em seu caráter sócio-cultural de concepção, ele é o produto de um intento individual ou coletivo. Nessa linha de raciocínio, ele segue um sentido de ser, encontrando seu delineamento a partir de determinados interesses. O santo reúne em si uma confluência de elementos característicos que ocupam, na lógica social na qual tem origem, finalidades específicas.
Levando em conta o acima exposto, trabalhar o processo de construção de um santo não se torna um exercício de simples execução, dado as múltiplas dimensões que envolvem seu desenvolvimento. Nesse sentido, Igor Salomão Teixeira encontra em sua empreitada um espinhoso, mas interessante caminho de buscar entender como se deu o processo de canonização de Tomás de Aquino e seus consequentes interessados.
Publicado no ano de 2014, o livro de Teixeira traz como objeto de pesquisa o desenvolvimento do processo de canonização de Tomás de Aquino, levado a cabo no papado de João XXII, bem como os possíveis interessados na santificação do dominicano. Trabalhando com o conceito de tempo de santidade (intervalo compreendido entre a morte da personalidade e sua efetiva canonização, de modo retroativo), o autor analisa comparativamente tais lapsos entre figuras contemporâneas e/ou próximas a Tomás de Aquino, buscando realçar semelhanças e diferenças entre elas e possíveis motivações ao resultado obtido no processo.
Sete questões norteiam o desenvolvimento da proposta: quem seriam os interessados na canonização de Tomás? Qual a santidade de Tomás de Aquino entre os dominicanos? Os interrogados conheceram Tomás de Aquino? Que relação tiveram com o candidato a santo? Qual a atuação do papa João XXII no processo? Ao final, canonizado, que santo é Tomás de Aquino? Como se deu a operação da construção narrativa que resultou na Ystoria? O que a canonização de Tomás de Aquino explica sobre o período e sobre as pessoas envolvidas? Outras tantas questões, de cunho secundário, são apresentadas, servindo de pontos de apoio para progressões mais detalhadas que auxiliam na costura do todo.
Procurando alicerçar seu posicionamento, buscando base no alinhamento ou refutação do que a bibliografia viabiliza ao tema, Teixeira estabelece diálogos com autores, como, por exemplo: Sylvain Piron, Andrea Robiglio, Roberto Wielockx, Isabel Iribarren, André Vauchez, etc. Em relação ao último, seu conceito de santidade seria contestado por Teixeira a partir da reflexão por ele feita tomando por base a noção de tempo de santidade, identificando com isso o que o processo de Tomás de Aquino carregaria de mais singular.
O livro se desenvolve basicamente em três capítulos, sendo cada um deles responsável por uma parte relevante na composição argumentativa do autor. O primeiro, voltado aos Inquéritos efetuados em 1319 e 1321, destaca, entre outros, uma não aproximação de João XXII com os dominicanos, dado sua negativa em iniciar o processo do também dominicano Raimundo de Peñafort, o que poderia indicar um possível favorecimento à Ordem. Nele também é destacada a predileção por um teólogo a um jurista, assim como era Peñafort. O alcance da santidade de Aquino é apresentado como sendo circunscrito ao local de seu sepultamento, assim como também é realçado o fato de as Ordens religiosas não comporem o corpo massivo nas oitivas, sendo os Pregadores inclusive menos numerosos que os cistercienses.
O segundo capítulo é direcionado para a questão da santidade de Tomás de Aquino em relação à Ordem dos dominicanos. Nele, Teixeira conclui que não havia uma unanimidade no que diz respeito ao posicionamento da Ordem em relação a Tomás de Aquino, sendo as variações produto dos diversos momentos experimentados pelos Pregadores. Nesse sentido, ganha ênfase o fato de no contexto da canonização nem todos estarem de acordo com os posicionamentos de Aquino. Em linhas gerais, por mais que o resultado comparativo efetuado entre as hagiografias de Pedro Mártir, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino indicassem um alinhamento deste ao propósito dominicano, assim como os demais, a carência de milagres e o desenvolvimento de um culto na Sicília dariam indícios de uma canonização que excede os interesses dominicanos.
Já no terceiro capítulo, trilhou-se o caminho de trabalhar o reconhecimento papal da santidade de Aquino a partir de aspectos teológicos. Havia, segundo Teixeira, um interesse, por parte do papado, em promover a canonização do dominicano em virtude da disposição existente entre ambos em relação à questões teológicas pontuais que favoreciam João XXII.
As necessidades alimentadas por um contexto turbulento (século XIV), no qual a autoridade papal se via em meio a constantes reviravoltas, fez com que João XXII, ao assumir um trono vacante (desde a morte de Clemente V, em 1314), iniciasse uma série de reformas, o que teria elevado as finanças papais. As diretrizes centralizadoras implementadas por ele, expropriando bens, aumentando taxas, aumentariam ainda mais o patrimônio eclesiástico. Para Teixeira, a canonização de Tomás de Aquino seria motivada dada a posição do teólogo em relação à pobreza radical da Igreja, sendo ele contrária a ela. Tal linha de pensamento, alinhada aos interesses de João XXII, teria feito com que este, buscando legitimação de suas ações, promovesse o processo de reconhecimento da santidade de Aquino.
Em linhas conclusivas, respondendo às questões principais de seu livro, destaca o autor que três seriam os possíveis interessados na canonização de Tomás: os dominicanos, sua família de nobres da região de Nápoles e o Papa João XXII, sendo o último o que de fato a procedera. Em relação à santidade de Aquino junto aos dominicanos, o autor percebe um posicionamento discreto destes no processo de canonização, com certa divergência dentro do grupo acerca das linhas de pensamento tomistas. No que diz respeito ao processo de canonização, poucos foram, dos que participaram do Inquérito, os que tiveram contato com Tomás de Aquino em vida.
A rapidez da canonização de um teólogo e não de um jurista, entre outras posições, desponta como resposta à atuação do papa João XXII no processo. Ao que se relaciona ao santo que é Aquino, bem como à construção narrativa que originou a Ystoria (sua hagiografia, de Guilherme de Tocco), destaca Teixeira que o santo tinha todos os caracteres dos demais santos da “Igreja Católica” (castidade, virgindade, virtuosidade, etc.), sendo a obra elaborada a partir de uma inserção de seu autor, Guilherme de Tocco, na própria narrativa, destacando os elementos que dariam conta de confirmar a santidade em proposta.
No que tange ao que a canonização de Aquino explica sobre o período e as pessoas envolvidas, o autor destaca as tensões existentes entre o papado e as Ordens religiosas, e mesmo entre estas, nos séculos XIII-XIV. Explica que a criação de uma crença e seu devido reconhecimento leva em conta um emaranhado complexo de elementos de ordem política, social, doutrinária, etc. Tais elementos formariam uma conjuntura que favorece os posicionamentos tomados para o desenvolvimento do processo e para a canonização.
O livro de Igor Salomão Teixeira, ao trabalhar os liames que envolveram a canonização de Tomás de Aquino, levando em conta os interesses envolvidos, traz a necessidade de pensar o próprio processo não unicamente como fonte para o estudo da santidade, mas primeiro como peça jurídica dentro de uma lógica que transcende exclusivamente esta questão. Só assim, os interesses envolvidos no reconhecimento da santidade puderam ficar evidentes, dando noção dos intentos que poderiam mover os agentes em tais processos.
Assim, ao trabalharmos com o fenômeno de santidade, seja através do estudo dos inquéritos desenvolvidos, ou das produções hagiográficos em si, entre outros, levando em conta o sentido dado a partir da construção discursiva, a necessidade de considerar as múltiplas dimensões que envolvem a constituição do santo se fará presente. Nesse sentido, pensar a densidade que os estudos hagiográficos, por exemplo, possam conter, considerando-os também como um elemento que compõe a peça jurídica, elevam em importância o teor narrativo que a obra traz consigo, demandando do pesquisador um fôlego a mais para além da pura santificação.
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira – Mestrando PPGHC-UFRJ/Bolsista Capes. E-mail: Jonathas_hist@yahoo.com.br
TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.2, p. 229-233, 2015. Acessar publicação original [DR]