Protagonismo negro em São Paulo: historiografia e história | Petrônio Domingues

Neste livro iluminador, Petrônio Domingues nos oferece uma introdução compreensiva às pesquisas recentes sobre a história e a cultura negra em São Paulo, muitas delas realizadas por estudiosos afro-brasileiros. Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Filosofia e Historia da Biologia 23 Nestor Macedo
Petrônio Domingues | Foto: Sesc.org |

SCOTT The common wind 23 Nestor MacedoUma parte relevante, porém ignorada de nossa história, é recuperada habilmente por Petrônio Domingues em sua mais recente obra. Domingues tem-se destacado como um historiador comprometido em expandir o entendimento do multifacetado papel do negro na construção da sociedade brasileira. Um dos maiores estudiosos da história do ativismo negro político, o autor se posiciona contrário ao discurso convencional que situa o negro brasileiro como relevante agente cultural, mas que não atribui a mesma significância à atuação negra na história política, econômica e social. Domingues, em Estilo Avatar, traz uma essencial contribuição para retificar essa narrativa.

A escolha de pesquisar uma organização até então pouco conhecida, a Ala Negra Progressista, organização fundada e liderada por Nestor Macedo em São Paulo, no ano de 1948, constitui-se em uma das fortalezas do livro. Através deles, Domingues expõe a ignorância que permeia a sociedade brasileira sobre a multiplicidade e complexidade do papel do negro no âmbito político brasileiro. Domingues ressalta que, apesar de serem ativos participantes do processo democrático, Nestor Macedo e a Ala Negra Progressista nunca receberam atenção da literatura especializada e jamais foram objetos de uma pesquisa acadêmica. Tal observação reforça a relevância dos estudos históricos em promover narrativas de inclusão. Enquanto muito da literatura sobre populismo no Brasil tem se concentrado apenas em lideranças brancas, Estilo Avatar reverte o foco e investiga a dimensão das práticas populistas na população afro-brasileira.

Esse trabalho se junta a uma literatura emergente que se dedica a compreender a trajetória histórica do negro na política brasileira. As recentes pesquisas acadêmicas de Edilza Sotero (2015), Tianna Paschel (2018), Gladys Mitchell (2018) e Kwame Dixon (2016) comprovam que a rica, porém ainda pesquisada em estágio incipiente, história afro-brasileira no mundo político é pontuada por uma mobilização determinada, intelectualmente centrada e imbuída de profunda consciência política.

Estilo Avatar vai além da missão de resgatar esse importante e olvidado fragmento da história brasileira. As correções metodológicas e teóricas no campo de Black Studies que visam retificar narrativas históricas que, por longo período, colocaram o negro como sujeito passivo na construção histórica, são habilmente executadas em Estilo Avatar (DAGBOVIE, 2015). A análise de Domingues da sinuosa relação entre Nestor Macedo e um dos expoentes do populismo político brasileiro, o governador paulista Adhemar de Barros, serve de advertência a historiadores para a diferença entre assimetria de poder e completa subjugação. Ao mesmo tempo que o autor não esconde o fato de Adhemar de Barros gozar de reconhecimento e poder político superiores aos de Nestor Macedo, ele salienta que ambos constantemente negociavam e buscavam, através de sua associação, o alcance de seus objetivos particulares.

O primeiro capítulo traça as origens da ANP. A ascendência da organização é contextualizada na atmosfera política vivida em São Paulo nos anos pós-Estado Novo. É nesse ambiente de retomada democrática que Adhemar de Barros se estabelece como liderança política e expoente do populismo no estado de São Paulo. Domingues define o processo de construção do “mito Adhemar Barros” como um projeto político que focava numa interlocução direta com as massas, apoiada por um grupo de profissionais de propaganda e uso massivo da mídia, “recorrendo ao rádio, ao cinema, à música e a imprensa” (p. 55) para conduzir sua campanha eleitoral. Domingues nota que a “Ala Negra Progressista inscrevia em capítulos, artigos e parágrafos dos seus estatutos a preocupação com o negro no mundo da política” (p. 48). Convencionalmente, considera-se que houve um hiato na história do ativismo negro político no período entre o abrupto fim da Frente Negra Brasileira em 1937 e o advento do Movimento Negro Unificado em 1978. O autor parcialmente diverge de tal narrativa e nos mostra, através do caráter político da Ala Negra Progressista, que o negro brasileiro nunca deixou de aspirar a um papel de protagonista na política brasileira. Além da relevância histórica da ANP por ter sido uma organização negra que objetivava a inserção da comunidade afro-brasileira no mundo político, a ANP também desempenhava um relevante papel no fomento da conscientização racial. Tal mobilização se articulava principalmente através de “panfletos, palestras, encontros e reuniões sociais” (p. 50). O livro também singulariza o engajamento de lideranças femininas que, através de uma Diretiva Feminina, conduziram diversas atividades de cunho social. Ademais, nesse capítulo o autor destaca a constante negociação entre a classe política e a operária, ressaltando a assimetria de poder entre as partes sem a plena submissão do grupo subalterno. Domingues demonstra que a elite política, embora fizesse uso da máquina eleitoral para se manter no poder, era também alvo da pressão da classe trabalhadora, estabelecendo assim entre as partes uma “relação de negociação e conflito por uma via de mão dupla” (p. 74).

O capítulo seguinte foca no personagem histórico central da obra de Domingues, Nestor Macedo. Os arquivos do Deops possibilitaram ao autor revelar fragmentos da vida social e ativista de Nestor Macedo e sua organização. A ANP não passou incólume frente ao ostensivo monitoramento do Deops de qualquer movimento social, cultural ou político que pudesse representar potencial ameaça à ordem política. A rigorosa investigação conduzida por Domingues nos apresenta na figura de Macedo um personagem riquíssimo, que acima de tudo, aprendeu a lidar com os meandros da política e sociedade brasileira para lutar por uma posição de protagonismo.

O autor nos revela que Adhemar de Barros e Nestor Macedo eram produtos de similar estirpe política que sorviam das práticas populistas para avançar suas agendas. Enquanto Adhemar de Barros usava dos palanques políticos e da máquina eleitoral para consolidar sua carreira política e permutar favores, Nestor Macedo ficou conhecido como o “Rei dos bailes”, dada sua estratégia de promover atividades festivas no salão de baile da ANP, e assim sedimentar sua influência na comunidade negra.

Em relação ao personagem principal do livro, Domingues em momento algum romantiza a personalidade de Nestor Macedo como articulador político e ambicioso líder negro, assim como nunca a deprecia por suas falhas e dúbias condutas que por vezes tiveram desfecho em uma delegacia. Domingues expõe tanto as virtudes como as defecções desse personagem complexo. O autor salienta que ao mesmo tempo que Macedo “não se importava de colaborar com o Deops e tampouco tinha por isso crise de consciência” (p. 98), ele também via a política como instrumento de justiça racial, e através desse meio reivindicava benefícios para sua comunidade.

O último capítulo examina como a ANP capitalizou dos ares democráticos que alentavam a comunidade negra a demandar a inclusão da questão racial nas agendas das lideranças político-partidárias. Esse capítulo foca em uma das perguntas fundamentais abordadas no livro. Por que Nestor Macedo e a Ala Negra Progressista optaram por apoiar Adhemar de Barros? Domingues argumenta que, apesar de algumas demonstrações de solidariedade à população negra, para Adhemar a questão racial era de secundária importância.

Para Domingues, a razão da aproximação de Adhemar junto aos votantes negros era fundamentalmente “um investimento de engenharia política, de quem não desperdiçava a oportunidade de explorar o potencial eleitoral dos segmentos específicos da população” (p. 164). Domingues atribui grande peso à associação entre Nestor Macedo e Adhemar de Barros à negligência dos atores políticos, tanto da esquerda quando da direita, quanto à questão racial durante as décadas de 1940 e 1950 (ANDREWS, 1991HANCHARD, 1994). Dessa forma, o populismo ademarista “mesmo que de forma oportunista, instrumental e frívola” (p. 227), destacava-se por incluir a questão racial em sua plataforma política. Com a consolidação democrática das últimas décadas na América Latina, a questão da maior integração política de grupos subalternos começou a receber maior atenção por parte do meio acadêmico. Estudos históricos como Estilo Avatar nos possibilitam traçar a trajetória do laborioso processo que tais minorias enfrentaram para conscientizar lideranças políticas brasileiras sobre a questão racial.

É imperativo que pesquisadores deem a devida atenção à estrutura político-partidária de cada contexto político, a fim de compreender a razão pela qual certos grupos negros empregaram seu apoio político a partidos que atribuíam pouca relevância à questão racial. Se a congruência ideológica não se estabeleceu como agente agregador entre tais associações, elas não se constituem em anomalias políticas, mas sim obedecem o comportamento de grande parte das alianças partidárias no meio político brasileiro, onde grupos políticos ideologicamente díspares se aliam para avançar seus específicos projetos de poder, estabelecendo assim “a política da permuta” (p. 94).

Estilo Avatar é leitura obrigatória para qualquer leitor interessado em expandir seu conhecimento sobre o protagonismo negro no projeto de nação brasileira. O resgate histórico de Nestor Macedo e sua organização corrigem a narrativa prevalente que o populismo no Brasil se restringiu a lideranças brancas como Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, que cooptaram e subjugaram a população negra. Estilo Avatar deve servir como um trecho de um caminho longo a ser percorrido pela historiografia das relações raciais no Brasil. Indubitavelmente temos muito a aprender sobre a população afro-brasileira no populismo, e que a obra de Domingues sirva de inspiração para futuras pesquisas acadêmicas.

De igual importância é a correção metodológica apresentada no livro que necessita ser salientada e reiterada para futuras investigações históricas de grupos subalternos. Vindouras pesquisas acadêmicas sobre as experiências da população afro-brasileira têm a missão e a responsabilidade de abdicar de classificar o negro brasileiro como ator anônimo ou secundário, e sim retratá-lo como agente central e ativo da história brasileira.

Referências

ANDREWS, George Reid. Blacks and Whites in São Paulo 1888 – 1988. Madison: The University of Wisconsin Press, 1991. [ Links ]

DAGBOVIE, Pero Gaglo.What is African American History? Malden: Polity Press, 2015. [ Links ]

DIXON, Kwame. Afro-politics and Civil Society in Salvador da Bahia, Brazil. Gainesville: University Press of Florida, 2016. [ Links ]

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2018. [ Links ]

HANCHARD, Michael George.Orpheus and Power: The Movimento Negro of Rio De Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton: Princeton University Press, 1994. [ Links ]

MITCHELL, Gladys L.The Politics of Blackness: Racial Identity and Political Behavior in Contemporary Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018. [ Links ]

PASCHEL, Tianna S. Becoming Black Political Subjects: Movements and Ethno-racial Rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2018. [ Links ]

SOTERO, Edilza. Representação política negra no Brasil pós Estado Novo. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. [ Links ]


Resenhista

João Batista Nascimento Gregoire – University of Kansas, History Department, 1450 Jaywak Blvd, 66045, Laurence, Kansas, United States. joaogregoire@ku.edu.


Referências desta resenha

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2018. 265p. Resenha de: GREGOIRE, João Batista Nascimento. Ativismo político negro e o populismo em São Paulo. Varia Historia. Belo Horizonte, v.37 n.73, Jan./Apr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982) | Thiago Nunes Monteiro

A emergência dos movimentos sociais diversos e de grande vitalidade é uma das dimensões históricas centrais da conjuntura das lutas de resistência à ditadura civil-militar e de redemocratização do país. Em um ambiente de efervescência, o período registra uma grande diversidade de movimentos e práticas urbanas que se configuram como dimensão fundamental do tecido político e social daquele tempo. Leia Mais

A reprodução do racismo: fazendeiros/negros/ e imigrantes no oeste paulista/ 1880-1914 | Karl Monsma

Com A reprodução do racismo, o professor Karl Monsma (Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul) oferece uma abordagem inovadora das relações cotidianas entre imigrantes, negros e fazendeiros no período da abolição até a primeira década do século XX. No erudito livro, Monsma busca entender os processos humanos que não só produzem, mas reproduzem o racismo, apesar de grandes mudanças institucionais e/ou sociais ao longo do tempo. Ele usa o duplo contexto de abolição e imigração para mostrar um habitus racial em mudança e como os diferentes negociaram essa nova realidade, procurando as melhores condições e resultados possíveis, tanto para o indivíduo quanto para os grupos. Apesar do enfoque geográfico no oeste paulista – principalmente no município de São Carlos – a contribuição tanto historiográfica quanto metodológica do livro vai muito além desse contexto.

O livro se divide em duas partes principais. Monsma começa com uma análise teórica e hemisférica do racismo como fenômeno histórico. Primeiramente, ele navega em uma vasta literatura sociológica, antropológica e histórica para teorizar os conceitos “raça,” “racialização,” e “racismo.” Para Monsma, abordagens do conceito bourdieusiano habitus, que tomam em conta as contradições e inconsistências presentes no próprio habitus, parecem as mais produtivas, abrindo novos caminhos para combinar o conceito abstrato com observações históricas do cotidiano. Mudanças sociais ou estruturais desestabilizam o habitus racial numa sociedade—mas por que a persistência da dominação racial? Para Monsma, o racismo se reproduz em tais contextos dada a intersecionalidade do habitus racial com outros contextos humanos: redes socais, instituições, ideologias, etc. Desconsiderando o resto do livro, esse capítulo teórico já seria de leitura importante para qualquer estudante ou pesquisador interessado em tais aspectos da sociedade. Leia Mais

Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734 | M. Santos

O bandeirantismo e a história das bandeiras paulistas já foi um tema nobre na pesquisa histórica brasileira, do século XVIII, quando surgiriam as primeiras descrições circunstanciadas sobre o assunto, até as primeiras décadas do século XX (ABUD, 1985). Mas, com a afirmação e consolidação dos estudos históricos nas universidades, tais estudos foram, aos poucos, sendo deixados em segundo plano, em função da diversificação das abordagens, das variações dos temas pesquisados e do maior volume de estudos sobre outras regiões do país. Entretanto, nos últimos vinte anos, novamente o tema tem despertado a atenção dos pesquisadores, mas com o fim, não de vislumbrar a importância da capitania, depois, província, e atualmente estado de São Paulo, junto a Federação, e sim com o propósito de inquirir quais as marcas que aquele empreendimento deixou em outras regiões, como os letrados do passado fizeram uso de certas estratégias para abordar o passado e o visualizar como opção a ser reproduzida no presente, quais as relações entre o local, o regional e o nacional, de que maneira se constituíram as fronteiras territoriais e como o bandeirantismo serviu de base para a construção de uma identidade regional, na qual São Paulo se veria distintamente do resto do país. Leia Mais

Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966) FONTES (EH)

FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008, 346 p. Resenha de: LOPES, José Sérgio. São Miguel apresenta os Nordestinos a São Paulo. Estudos Históricos, v.22 n.43 Rio de Janeiro Jan./June 2009.

Um Nordeste em São Paulo traz contribuições originais ao estudo dos processos migratórios no país, o maior dos quais tendo se dirigido no pós-guerra para a cidade de São Paulo, que se tornaria a maior área metropolitana do país. A partir de estudos anteriores relativos à imigração internacional no período pós-escravista (em particular a imigração italiana), nos quais a relação com a industrialização nas primeiras décadas do século XX é analisada, Paulo Fontes pôde estender essa linha de investigação (em que Michael Hall, seu orientador, é um dos autores mais importantes) ao caso da grande migração interna do pós-guerra, a migração rural-urbana concentrada no eixo Nordeste-São Paulo.1

Uma das grandes forças deste livro é a de conseguir iluminar processos sociais de amplitude nacional através do uso da escala local, prática em que o autor já tem um conhecimento acumulado desde a sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que se tornou seu livro de estreia.A possibilidade de desvendar esse processo macrossocial em um distrito inicialmente pouco povoado da cidade de São Paulo – onde a forte ação do foco de recrutamento de mão de obra inicial, que é a Fábrica Nitro Química, ali instalada no final dos anos 1930, e que de certa forma exerce um domínio sobre o distrito como governo local de fato ostensivo ou nos bastidores até meados dos anos 1960 – é fruto dessa escolha de objeto e de um procedimento histórico-etnográfico, dando ao leitor do livro uma narrativa de densa dramaticidade. Nas décadas seguintes a localidade torna-se (e é vista como) um lugar de forte concentração de trabalhadores nordestinos.3

O fato de ser uma grande fábrica privada, de forte capital político junto ao governo federal,4 que veio a ser um dos fatores iniciais da imigração nordestina para São Paulo, e mais ainda na localidade – fábrica esta que tem uma influência preponderante na economia e na vida social do bairro – dá à observação micro, focalizada em tal distrito, um poder explicativo heurístico para a compreensão daquela grande migração dirigida à capital paulista.5

O paralelismo entre a naturalidade civil do principal proprietário da Nitro, José Ermírio de Moraes, e a origem nordestina de maior parte da mão de obra selecionada pela empresa não escapa nem aos trabalhadores e moradores locais nem ao autor. Pode-se em todo caso aprofundar, em pesquisas futuras, a presença nacional precoce de empresários nordestinos na indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo,6 entre os quais o grupo Ermírio de Moraes ocupa um lugar singular. Ao invés de uma acumulação prévia em estabelecimento industrial e/ou comercial inicial em sua área de origem, como é o caso de outros empresários do Norte (como se dizia na época), José Ermírio entrou de forma precoce e direta num grande grupo industrial têxtil de São Paulo, a Votorantim, em Sorocaba, do industrial português Pereira Inácio, e assim passou a pertencer, desde muito jovem, à burguesia industrial que veio a ser, anos depois, o centro mesmo do poder econômico do país.7

No capítulo 2 (p. 101-102), Paulo Fontes menciona a prática, durante a década de 1940, do agenciamento direto de trabalhadores pela Nitro Química, transportados de caminhão de Minas Gerais e do Nordeste (onde o grupo Votorantim tinha implantação com fábricas de cimento, como a Fábrica Poty, em Paulista, PE, assim como usinas de açúcar).8 Nos anos 1950 o fluxo migratório se dava de forma não diretamente produzida pela fábrica, mas já era fruto seja da articulação das famílias de trabalhadores da Nitro com seus parentes provenientes de suas áreas de origem, seja da procura por parte de famílias recém-imigradas por áreas de moradia, nos loteamentos a baixos preços oferecidos a trabalhadores naquele distrito.9 Aquilo que antes se fazia em escala intrarregional (por exemplo, no interior do Nordeste, o agenciamento de famílias camponesas em estados vizinhos através de agentes pagos por fábricas têxteis por família recrutada, entre os anos 1930 e 40), agora era feito em escala inter-regional de longa distância, Nordeste-Sudeste por via terrestre (agenciamento anteriormente feito de forma internacional por via marítima de longa distância entre Europa e Sul-Sudeste do país).

O livro segue uma ordem cronológica, mas que também tem a lógica de um plano temático de exposição: começa pela análise do processo de migração Nordeste/São Paulo (condições de saída, condições de chegada) em sua dimensão geral, dando conta do mote do título principal; e passa pelas redes de chegada e estabelecimento na cidade (e em particular no bairro) de uma perspectiva étnico-regional, mostrando como pouco a pouco o que é procura por trabalho passa a ter uma dimensão étnica (um novo grupo migrante na cidade, que chega numeroso, passa a ser percebido como tal pelos próprios nordestinos em seus locais de residência, assim como pelos estabelecidos de São Paulo e a sua mídia). Assim, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, a perspectiva maior sobre São Paulo passa a focalizar-se em São Miguel, sem, no entanto, perder a precisão na passagem do geral para o particular (no capítulo1), assim como na passagem ao geral em pontos específicos da narrativa localizada que predomina nos demais capítulos. Por outro lado, a análise do termo genérico e estigmatizante de “baiano”,10 que passa a caracterizar a interação entre os estabelecidos e os novos chegados, se localiza no fechamento do capítulo inicial “Mala de papelão e matuá nas costas”, enquanto que o seguinte, “Terra de nordestinos”, é fortemente correlacionado ao domínio do trabalho e, portanto, da presença da fábrica no bairro, que parece dar um matiz especial à localidade. Assim, o terceiro capítulo, que trata da vida cotidiana no bairro, mostrando a construção de diversidades e identidades – através do acesso às residências (da pensão ao mutirão da casa própria), da vida social do bairro no tempo livre dos trabalhadores (futebol, cinema, bares, clubes sociais e bailes), onde pode se manifestar a diferenciação no bairro entre “a elite” e a “mistura”, das carências urbanas e de transporte de São Miguel Paulista – se dá de forma thompsoniana sob a rubrica sintética de uma “comunidade operária”. Segue-se a parte propriamente política do livro, nos capítulos 4 e 5; o primeiro sobre os partidos e lideranças políticas em São Miguel Paulista, denominado “Direito de fazer política”, direito este que se estende no último capítulo aos movimentos sociais de bairro e de autonomia política municipal.11

No capítulo 4, Paulo Fontes ressalta a importância da atuação do PCB no bairro, que chegou a ter em São Miguel Paulista, nos anos de 1945 a 1947, sua maior organização de base em São Paulo (com mais de mil trabalhadores filiados) sendo então lugar proletário preferencial para aquele partido mostrar sua força (com a admiração de Jorge Amado e as visitas frequentes de Prestes). Tendo tido como ponto de partida de pesquisa o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo, e, em particular, seu grêmio de aposentados, o autor teve acesso aos relatos e à experiência política daqueles trabalhadores, formados no interior ou no entorno do trabalho sindical daquele partido. Esses depoimentos dão um fio condutor não somente à política no período, mas a informações e representações sobre a vida na fábrica e no bairro. O acesso ao arquivo da polícia política organizado nos anos 1990 no Arquivo Público de São Paulo permite completar e precisar, de forma cruzada, essas informações.

Diferentemente da perspectiva de autores que produziram seus trabalhos no fim dos anos 1970 sobre a classe trabalhadora de São Paulo (como os importantes trabalhos de Francisco Weffort e José Álvaro Moisés), posicionados no interior de um debate histórico polarizado pela nova redemocratização então em curso no país, Paulo Fontes está menos impregnado pelo ímpeto incontrolado do julgamento, e mais pela intenção de compreender, a partir de uma base direta e maior de informações dos próprios trabalhadores do período (assim como do aparelho repressivo do Estado), indisponíveis aos analistas dos anos 1970. Tal perspectiva ultrapassa a capa de princípios e de práticas políticas das direções partidárias, para entender os efeitos menos intencionais que aquela ação política tem sobre a associatividade dos trabalhadores. Isso se estende à compreensão do fenômeno da chamada política “populista” nos bairros de trabalhadores, menos pela etiqueta da anomia ou do desvio político (em relação a uma política transparente de representação de interesses de classe tida implicitamente como norma), mas por uma antropologia da política efetivamente praticada nas relações de reciprocidade (desigual) entre políticos e representados (com as visitas dos políticos e suas esposas à casa dos trabalhadores, com as particularidades dos seus comícios etc.). Também nesse caso, a escolha da análise histórico-etnográfica a partir do caso, um bairro estratégico (e não do fenômeno geral, mais abstrato), tem a sua importância, fazendo o livro contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica do ademarismo e do janismo nos bairros de trabalhadores em São Paulo (assim como suas relações com quadros egressos do partido comunista clandestino).

O capítulo final, “Trabalhadores e o bairro” é ao mesmo tempo um capítulo de clímax dos movimentos sociais e um capítulo de síntese de múltiplas determinações, que reincorpora os diversos elementos analisados em capítulos precedentes para dar conta do desfecho na metade dos anos 1960. Aqui o autor analisa o movimento das Sociedades de Amigos do Bairro, assim como três tentativas de autonomização do distrito em novo município, independente de São Paulo. A empresa Nitro aparece novamente, seu poder político sobre o bairro sendo alvo dos movimentos de autonomização (autonomia não só em relação a São Paulo, mas em oposição à Nitro). Isso se completa com a análise do que precede localmente o golpe de 1964, da crise da Nitro Química e das demissões de 1966, abalando definitivamente o caráter monoindustrial do bairro.12

Um Nordeste em São Paulo é assim um livro síntese de um novo padrão de análise, no sentido de que contém em si próprio as contribuições de gerações anteriores apropriadas e transformadas, e ao mesmo tempo o ímpeto das novas gerações de historiadores e cientistas sociais investindo no desvendamento da história social e cultural das classes trabalhadoras ou das relações que entretêm com outras classes e grupos sociais, não só nos grandes eventos, mas também no seu cotidiano.13 O livro traz assim novas contribuições para a história social das classes populares, com o trabalho perspicaz sobre fontes as mais diversas, colocando em novos termos os temas cruciais de décadas passadas sobre os operários de origem rural e sobre a grande migração de nordestinos para São Paulo.

José Sérgio Leite Lopes – Professor associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (jsergiollopes@gmail.com).

Negros e brancos em São Paulo (1888-1988) | George Reid Andrews

Resenhista

Heliane Prudente Nunes – Professora do departamento de História da UFG. Doutora em História Econômica pela USP em 1996.

Referências desta Resenha

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Trad. Magda Lopes. Revisão técnica e apresentação de Maria Lígia Coelho Prado. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1998. Resenha de: NUNES, Heliane Prudente. História Revista. Goiânia, v.4, n.1-2, p.133-136, jan./dez.1999. Acesso apenas pelo link original [DR]