Revisão legal e renovação religiosa no antigo Israel | Bernard M. Levinson

É com entusiasmo que recebemos em língua portuguesa uma obra de Bernard M. Levinson.2 Temos em mãos uma pesquisa multidisciplinar seminal, cujo objetivo do autor é “abrir o diálogo entre os Estudos Bíblicos e as ciências humanas” (p. 33). As abordagens científicas são dos documentos legais da Bíblia hebraica, mas não se restringem a eles, tendo como cenário o Sitz im Leben siro-palestino no contexto das transições sociais envolvendo a população judaíta entre os séculos VIII-V a.C. Diante das quase restritivas especializações acadêmicas o objetivo é digno de nota, por isso o livro traz já em seu primeiro capítulo, “Os estudos bíblicos como o ponto de encontro das ciências humanas”, a argumentação conceitual sobre o “cânon” como uma possível ponte entre disciplinas que trabalham a reavaliação das forças intelectuais e históricas, as ideologias e códigos definidores do cânon bíblico e de outros cânones.[3]Para o autor, a “ausência de diálogo com os Estudos Bíblicos empobrece a teoria contemporânea em disciplinas nas ciências humanas e a priva de modelos intelectuais que de fato favoreceriam o seu intento” (p. 28), mormente em seu emprego crítico das teorias das suposições ideológicas que objeta a noção de um cânon por ser a mesma uma entidade autossuficiente, um fóssil literário imutável.

É por este pressuposto que os estudos em história, arqueologia, filosofia, filologia e antropologia – acrescentaríamos a psicologia –, mesmo como disciplinas, podem contribuir conjuntamente com os Estudos Bíblicos quanto ao exame das construções teóricas e processos metodológicos com base histórica, pois o próprio cânon sanciona a centralidade da teoria crítica. Nesse sentido, “a interpretação é constitutiva do cânon” (p. 39). As camadas literárias, particularmente, e os livros da Bíblia hebraica não devem ser vistos somente como “teologia”, mas mormente como obra intelectual. Desse modo, a teoria cultural, por exemplo, atingiria maior fundamentação em diálogo com a pesquisa cujo foco é o rigor filológico. Aqui está realmente um dos temas em que o livro se encaixa nos debates contemporâneos, problematizado por várias abordagens.

Em princípio, a eliminação dos códigos legais do corpus bíblico da noção de lex ex nihilo. A cultura material do antigo Oriente-Próximo tem comprovado que as leis cuneiformes, originadas na Suméria no final do terceiro milênio a.C. e descobertas em escrita suméria, acadiana e hitita, ao espalhar-se pelo Mediterrâneo influenciaram inclusive os escribas israelitas, que passaram a copiá-las (como o modelo de tratado neoassírio pressuposto como modelo no livro do Deuteronômio, capítulo 28). “Usando as categorias da crítica literária, pode-se dizer que uma voz textual era dada a essas coleções legais por meio de tal moldura, que as coloca na boca de um monarca reinante. Não é que o divino esteja desconectado da lei no material cuneiforme” (p. 46). De fato, as chamadas leis humanitárias israelitas são expressão revelada do divino, de forma que inexiste atribuição autoral, mas um mediador venerável.

Nessa reorganização de textos, surge a necessidade por parte dos revisores de evitar o questionamento à infalibilidade de Deus e o conceito de revelação divina, resolver o acaso de injustiça de Deus e manter a perpetuidade das leis. Estas questões estão arguidas e pesquisadas exemplarmente do capítulo dois ao quatro no livro e com suas implicações melhor elaboradas no capítulo cinco – intitulado “O cânon como patrocinador de inovação”. Entretanto, resta a constatação, não vista por Levinson, de que o Deus do antigo Israel nunca refere a sua palavra (dabar) como “lei” (dat), mas como “instrução” (torah). Estes problemas são elucidados pelo autor à medida que identifica as técnicas literárias israelitas, mormente nas composições sacerdotais do período pós-exílico (após 538 a.C.) com evidências na Antiguidade Clássica, nomeadamente a subversão textual estruturada como “lema”, “retórica de encobrimento”, “exegese harmonística”, modelos e terminologias dos tratados de Estado hititas, neoassírios e aramitas, o straw man (técnica retórica de superar a proposição original), o tertium quid (presente no Targum), a paráfrase homilética, retroprojeção, adição editorial, pseudepigrafia, glosa. Todo o trabalho hermenêutico intracanônico, literariamente revisionista, ocorre tendo como tempo narrado o ambiente político das ameaças neoassíria e, em seguida, neobabilônica aos grupos populacionais israelitas na faixa leste-oeste da região do Jordão, cujo tempo presente dos escribas são os períodos arqueológicos persa e grego.

Decerto, a apresentação de uma obra ou biblioteca autorizada como obra aberta não é novidade, mas não a tarefa de repensá-la a partir da sua “fórmula de cânon” em relação à exegese e à hermenêutica intracanônicas,[4] histórica e filologicamente apropriadas como instrumentos de renovação cultural. Bernard M. Levinson empreende tal pesquisa com as camadas literárias legais tendo como fontes as coleções legais reais do Oriente-Próximo e a sua noção de um vínculo jurídico obrigatório, compreendidas como sendo feitas em perpetuidade. A fórmula nos textos do antigo Oriente tem a intenção de impedir inovações literárias, preservar o texto fixado originalmente. Com isso, as gerações posteriores têm o desafio de ampliar um corpus delimitado, suficiente e autorizado através da incorporação das suas vidas, adaptando-o às realidades em suas amplas esferas não contempladas na época de sua composição. Destarte, esses procedimentos etnográficos, não raros no antigo Oriente-Próximo, estão presentes na literatura do antigo Israel.

A originalidade da historiografia bíblica [5] é explorada na pesquisa sobre a revisão legal para demonstrar a própria ideia de história legal em que o tempo narrativo serve como um tropo literário em apoio à probabilidade jurídica. Quanto a isso, Bernard M. Levinson apresenta uma interpretação metodologicamente complexa e inovadora do livro de Rute da Bíblia hebraica, apresentando-o como oposição revisionista e talvez subversiva das “leis mosaicas” operadas pelo escriba judeu Esdras no final do século V a.C. Assim, ele introduz o debate sobre as identidades étnica e social no âmbito das questões jurídicas e sua transferência para o domínio teológico.

Fundamentando-se em sólido trabalho documental (chamamos a atenção para as notas de rodapé!), a pesquisa da revisão legal no antigo Israel apresenta como seu ponto alto da multidisciplinaridade os textos do livro do profeta Ezequiel da Bíblia hebraica (profeta ativo de c. 593-573 a.C.).[6] Aqui o debate profético dá-se com o Decálogo e a sua doutrina do “pecado geracional”. O profeta revisa a doutrina, minuciosamente historicizada por Levinson apreendendo a técnica do straw man: o profeta lança mão de uma estratégia para absolvição por rejeição popular da torah divina através de institucionalização de sabedoria popular, o que extrapola como história social os limites da teologia. De forma adequada para prosseguir na abordagem da interpretação e revisão da “lei” no livro do Deuteronômio e nos Targumim, [7] Levinson demonstra que o livro do profeta Ezequiel ao rejeitar por completo a doutrina do pecado geracional está argumentando “que o futuro não está hermeticamente fechado” (p. 78), o que para a sua época soaria como uma pedagogia da esperança. O argumento é de que “a despeito da sua terminologia religiosa, ela [a formulação da liberdade elaborada pelo profeta] é essencialmente moderna em sua estrutura conceitual” (p. 79), comparável na história da filosofia ao conceito de liberdade moral de Immanuel Kant (1724-1804).

Tanto quanto Ezequiel fez, Kant prepara uma crítica pungente da ideia de que o passado determina as ações de uma pessoa no presente. Ele desafia qualquer colocação que reduza uma pessoa ao seu passado e impeça o exercício do livre arbítrio ou a possibilidade de mudança. Ele sustenta que as pessoas são livres a cada momento para fazerem novas escolhas morais. Sua concepção de liberdade é dialética: embora não exista na natureza nenhuma liberdade proveniente da causalidade (de uma causa imediatamente precedente), a liberdade de escolha existe para os seres humanos com base na perspectiva da ética e da religião (p. 79).

Assim como o filósofo Immanuel Kant rejeita filosofias coetâneas (Thomas Hobbes, o determinismo associado ao “espinosismo”, Gottfried Leibniz), o profeta Ezequiel rejeita o determinismo pactual templar do período da monarquia israelita, tendo a seu favor o caráter dialético do conceito de autoridade textual presente no antigo Israel. Portanto, não é difícil desfazer o ponto cego filosófico entre razão e revelação. E, ao contrário do que comumente se pensa, a revisão do cânon é intrínseca ao próprio cânon, pois “a revelação não é anterior nem externa ao texto; a revelação é no texto e do texto” (p. 95); daí a pseudepigrafia mosaica, que contribui teórica e metodologicamente para uma história da recepção e interpretação dos textos.

Em adição, um terço do livro, isto é, o sexto capítulo, dedica-se ao pesquisador, a nosso ver, sem prejuízo dos demais leitores; o autor o chama de “genealogia intelectual” ou história da pesquisa por meio de pequenos ensaios bibliográficos de várias das mais importantes obras científicas sobre a literatura e a sociedade do antigo Israel, desde a produção do final do século dezenove até a mais recente. Por fim, saliente-se que o autor do livro não esboçou alguma tentativa de conceituar “etnicidade e identidade” – assim mesmo enunciado, como fundações construcionistas isoladas [8] – e a sua aplicação aos grupos populacionais da Antiguidade, omissão que não compromete a importância e a qualidade científica do livro, que certamente interessará aos estudiosos da grande área de Ciências Humanas.

Notas

3. Com relação à literatura clássica ocidental, basta consultar as últimas obras de Harold Bloom (Yale University) para perceber que ele dedicou-se a esta tarefa; com relação à literatura hebraica, mencionamos a importante produção de Robert Alter (University of California). Sem embargo, é sempre pertinente voltarmos à obra-prima fundante de Eric Auerbach, Mimesis (publicada no Brasil pela editora Perspectiva).

4. Para Levinson, exegese ou hermenêutica é o conjunto de estratégias interpretativas destinado a estender a aplicação de um cânon à vida e suas circunstâncias não contempladas. Para conceito e abordagem diferentes sugerimos a opus magnum em três volumes de Jorn Rüsen, publicada pela editora da Universidade de Brasília, Teoria da história I (2001), Teoria da história II (2007) e Teoria da história III (2010).

5. Este domínio da História há muito tem sido tema de importantes pesquisas de historiadores, arqueólogos, antropólogos e filólogos, das quais arrolamos algumas não citadas por Levinson: CHÂTELET, François. La naissance de l’histoire. Tomes 1 et 2. Paris: Éditions de Minuit, 1996; MOMIGLIANO, Arnaldo. Problèmes d’historiographie ancienne et moderne. Paris: Gallimard, 1983; SETERS, John van. Em busca da história: historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; ASSMANN, Jan. La mémoire culturelle: écriture, souvenir et imaginaire politique dans les civilisations antiques. Paris: Éditions Flammarion, 2010; PRATO, Gian Luigi. Identità e memoria nell’Israele antico: storiografia e confronto culturale negli scritti biblici e giudaici. Brescia: Paideia Editrici, 2010; LIVERANI, Mario. Oltre la Bibbia: storia antica di Israele. 9. ed. Roma, Editori Laterza, 2012 [1. ed., 2003].

6. John Baines em importante investigação sobre a realeza egípcia (BAINES, John. “A realeza egípcia antiga: formas oficiais, retórica, contexto”. In: DAY, John (org.). Rei e messias em Israel e no antigo Oriente Próximo. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 48-49), ao referir-se à religião e crenças egípcias oferece uma informação relevante sobre a Bíblia hebraica: “Assmann [Jan] considera a evocação pelo rei da ordem geral parte do caráter de ‘religião primordial’ das crenças egípcias: a ‘religião’ egípcia é de uma sociedade ou civilização única e não pode ser separada da ordem social dessa sociedade. O mundo da Bíblia Hebraica era um mundo de fé declarada e de compromisso com uma divindade e um sistema religioso determinados por grupos principalmente de elite em uma sociedade organizada relativamente pequena que se insurgiu contra outras sociedades circundantes, mas também tinha aspirações universalizantes; suas crenças normativas também eram objeto de intensa discussão interna”. Em adição, a nosso ver, por uma forte corrente religiosa posicionar-se em favor do “povo da terra” e contra a monarquia, que mantinha o templo como uma espécie de anexo legitimador do palácio, a religião do antigo Israel pré-exílico manteve características suprassociais e maior atenção aos movimentos vitais.

7. Apenas como informação geral, a grafia para expressar uma determinada quantidade de Targum ou o seu plural não é “targuns”, como traduzido no livro (p. 92), mas Targumim.

8. Em contrário, “identidade” é um termo autoexplicativo usado de diferentes maneiras, não é algo estático, mas um processo contínuo e interativo; portanto, construímos identidades étnica, religosa, de gênero etc. Sobre isto, à época da sua pesquisa Bernard M. Levinson teria provavelmente acesso à importante obra: DÍAZ-ANDREU, Margarita et al. The archaeology of identity: approaches to gender, age, status, ethnicity and religion. London: Routledge, 2005. Em adição, recomendamos ao leitor: CARDOSO, Ciro Flamarion S. “Etnia, nação e a Antiguidade: um debate”. In: NOBRE, Chimene Kuhn; CERQUEIRA, Fabio Vergara; POZZER, Katia Maria Paim (eds.). Fronteiras e etnicidade no mundo antigo. Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Pelotas, 15-19 de setembro de 2003. Pelotas: Editora e Gráfica da Universidade Federal de Pelotas; Canoas: Editora da Universidade Luterana do Brasil, 2005, p. 87-104. Recentemente publicamos uma pesquisa com esta temática: SANTOS, João Batista Ribeiro. “Os povos da terra. Abordagem historiográfica de grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo no segundo milênio a.C.: uma apresentação comparativa”, Revista Caminhando, v. 18, n. 1, p. 125-136, 2013.

João Batista Ribeiro Santos – Mestre em Ciências da Religião, com pesquisa na Bíblia hebraica, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e mestre em História, com pesquisa em história antiga, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


LEVINSON, Bernard M.  Revisão legal e renovação religiosa no antigo Israel. Tradução de Elizangela A. Soares. São Paulo: Paulus, 2011. Resenha de: SANTOS, João Batista Ribeiro. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.9, n.1, p.164-169, 2014.

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