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Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial – TRAWNY (RFA)
TRAWNY, P. Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial. Tradução Soraya Guimarães. Rio de Janeiro: Mauad, 2015. Resenha de: SANTOS, Eder Soares. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.28, n.43, p.365-372, jan./abr, 2016.
Lançado na Alemanha no início de 2014 e publicado em língua portuguesa no Brasil, no final de 2015, pela editora Mauad, com tradução de Soraya Guimarães Hoepfner, o livro Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial, de Peter Trawny, tem se tornado um novo ponto de partida para a discussão do chamado “caso Heidegger”, ou seja, o envolvimento de Heidegger com o nazismo.
O livro surge como resultado do trabalho de edição, realizado por Trawny, dos Cadernos negros, lançados na coleção das obras completas de Heidegger pela editora Vittorio Klostermann. Neles, o autor discute e comenta algumas das passagens mais polêmicas escritas por Heidegger sobre os judeus e o judaísmo. Destacamos algumas delas:
Também a ideia de um entendimento com a Inglaterra, no sentido de compartilhar as “prerrogativas” do imperialismo, não alcança o processo historial em sua essência, pois a Inglaterra, agora no âmbito do americanismo e do bolchevismo, por sua vez, também no âmbito do judaísmo mundial, participa do jogo até o fim. A pergunta pelo papel do judaísmo mundial não é racial, mas sim uma pergunta metafísica pelo modo de ser do tipo de ser-homem, que, completamente desarraigado, pode assumir o desenraizamento de todos os entes de Ser, enquanto “tarefa” histórica mundial. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.243; TRAWNY, 2015, p.38-39)
Por meio de um talento calculador acentuado, os judeus “vivem” de há muito sob o princípio de raça, razão pela qual resistem veementemente contra a sua aplicação irrestrita. A instituição da cria racial não tem origem na própria “vida”, mas sim na subjugação da vida pela maquinação. O que se opera com esse planejamento é a desrracialização total dos povos através de seu próprio assujeitamento à instituição e recorte uniformizado e unidimensional dos entes. Com a desrracialização, um autoestranhamento dos povos – a perda da história – ou seja, o âmbito de decisão de Ser vira um só. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.56; TRAWNY, 2015, p.30)
A escalada momentânea do judaísmo tem, porém, seu fundamento no fato de a metafísica do Ocidente, especialmente em seu desdobramento moderno, ser o ponto de ancoragem para o alargamento de uma racionalidade vazia e uma aptidão para o cálculo que, desse modo, ganham morada no “espírito”, sem jamais alcançar sua própria decisão. Quanto mais originárias e principais as futuras decisões e questões, mais inacessíveis elas permanecem para essa “raça”. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.46; TRAWNY, 2015, p.37)
Partindo de passagens como as elencadas, Trawny sustenta duas teses em seu livro: 1) há um antissemitismo onto-historial nas reflexões de Heidegger; e 2) essas reflexões provocam um movimento de contaminação em sua obra. Trawny deixa isso claro ao afirmar que:
A visão sobre Heidegger ganha uma nova faceta, até então desconhecida: em uma determinada parte do seu percurso filosófico, o filósofo tornou público um certo antissemitismo em seu pensamento, que pode ser precisamente descrito como um antissemitismo onto-historial. (TRAWNY, 2015, p.17)
O conceito de “contaminação” é para o que se segue, de um modo específico, muito importante. O antissemitismo que infesta determinadas passagens dos Cadernos negros, contamina, toca outras. Como consequência, o pensamento que até então foi comprometido teoricamente sob uma perspectiva neutra se mostra sob uma outra ótica. (TRAWNY, 2015, p.18)
Trawny tenta justificar esses pressupostos fazendo uso tanto de passagens dos Cadernos negros, como de textos publicados nas obras completas de Heidegger, mostrando que este constrói uma narrativa de um início e de um outro começo da história do ser. Para o editor, “tudo o que em Heidegger está associado ao nacional-socialismo tem sua proveniência na narrativa do ‘primeiro começo’ com os gregos e do ‘outro começo’ com os alemães” (TRAWNY, 2015, p.33).
Em seguida, o autor se concentra em retomar diferentes passagens dos Cadernos negros que deixam claras as posições antissemitas de Heidegger, expressas nesses seus diários pessoais, em especial nas reflexões entre os anos de 1938 e 1945. São destacados, em especial, os tipos de antissemitismo onto-historial em Heidegger (cf. TRAWNY, 2015, p.37-62), o conceito onto-historial de “raça” (cf. TRAWNY, 2015, p.63-72), um possível efeito da contaminação antissemita de Heidegger em relação a seu mestre Edmund Husserl (cf. TRAWNY, 2015, p.88) e a questão da exterminação dos judeus e a indiferença de Heidegger (cf. TRAWNY, 2015, p.101-112). Por fim, Trawny levanta a tese da contaminação do pensamento do filósofo com a seguinte questão:
Como devemos lidar com antissemitismo onto-historial de Heidegger em relação à Shoah? Agora não está mais apenas em debate a necessidade ou não de se defender o “erro político” de Heidegger contra um “politicamente correto” e assim defender, voluntária ou involuntariamente, as relações que destroem a esfera pública (se é que seja possível). Há um antissemitismo no pensamento de Heidegger que – como é próprio a um pensador – corresponde a uma (impossível) justificativa filosófica, mas que não vai ultrapassar dois ou três estereótipos. A construção da narrativa onto-historial o torna ainda pior; é o que conduz à contaminação desse pensamento. (TRAWNY, 2015, p.123)
Quanto aos Cadernos negros, eles são compostos por 34 cadernetas de notas de capa preta, tendo sido escritos entre 1930 e 1970. Neles, Heidegger dá vazão a seus pensamentos privados, classificando-os como Considerações, Observações, Quatro Cadernos, Indicações e Provisórios, além de Vigília e Noturnos. Dessa série de cadernos, faltam as Considerações I, que não foram encontradas em seu espólio (cf. TRAWNY, 2015, p.19). Esses cadernos foram reunidos nos volumes 94, 95, 96 e 97 das Obras completas.
O estilo de escrita presente nessas cadernetas – diferente de muitos escritos de Heidegger, que parecem tratados – aparece na forma de aforismos que variam entre curtos e longos, às vezes assumindo o formato de pequenos ensaios. Muitos temas são tratados neles, como linguagem, palavra, verdade, ciência, ser e ente, temas esses já conhecidos de seus leitores. O que há de novo nesse material são os comentários antissemitas de Heidegger e o modo como esses conhecidos temas se relacionam a essas declarações.
A linguagem desses Cadernos beira o incompreensível, variando das mais obscuras e ininteligíveis passagens à tentativa de uma escrita poética que toca em temas já publicados em Contribuições à filosofia: do acontecimento apropriador (cf. HEIDEGGER, 2015), atingindo o ponto máximo em um destilar de bílis contra tudo e todos (os americanos, os ingleses, os franceses, os bolcheviques e os judeus).
Embora sejam anotações privadas e declarações de seu foro pessoal, para Trawny, não se trata de meras anotações: “trata-se de escritos filosóficos elaborados” (TRAWNY, 2015, p.20). Tendo o próprio Heidegger declarado sua aversão à publicidade (cf. TRAWNY, 2015, p.16), pergunta-se qual papel desempenham seus escritos “públicos”, ou seja, aqueles destinados a uma contribuição filosófica, e qual o papel dessa elaboração filosófica privada no conjunto inteiro de suas obras. Há um topos privilegiado onde se expressa de fato a filosofia de Heidegger?
O antissemitismo onto-historial teria sido motivado pela procura por uma história do ser em sua verdade, procura essa que Heidegger começa depois de 1930, quando se dá conta de que Ser e tempo ainda é insuficiente para responder a Seinsfrage, a pergunta pelo ser. Essa história do ser se estende entre um começo e um fim da filosofia e a necessidade de se pensar de uma vez por todas em um novo começo. O começo da filosofia é grego; seu fim, a maquinação em sua essência técnica; seu outro começo, o evento apropriador (Ereignis).
A “verdade” desses acontecimentos não se encontra fundada em nenhuma teoria da verdade, nem mesmo na alétheia, na verdade como desvelamento. Encontra-se no conto, no dito, na própria narrativa (cf. TRAWNY, 2015, p.19). Toda boa história necessita de um inimigo poderoso. A maquinação, enquanto resultado da técnica moderna, se enquadra nesse papel. Esse inimigo se mostra nas mais diferentes formas: imperialismo, cristianismo, protestantismo, americanismo, judaísmo (cf. TRAWNY, 2015, p.32). Aqueles capazes de dar movimento ao novo início são os alemães, apoiados por um nacional-socialismo espiritual que, diferente do nacional-socialismo vulgar praticado por Hitler e seus asseclas, poderia conduzir o povo alemão em sua missão de ser o destino do Ocidente (cf. HEIDEGGER, GA 95, p.24; cf. TRAWNY, 2015, p.34).
Assim, a base do antissemitismo de Heidegger é metafísica, onto-historial, apoiada em sua ambição de encontrar um novo começo para a história do ser. Contudo, nem por isso ela é menos desastrosa e insuportável.
No âmbito da maquinação, os judeus desempenham um papel essencial, na medida em que, para Heidegger, eles representam a essência da modernidade técnica. Para o filósofo, os judeus possuem o dom acentuado do cálculo e vivem segundo a ideia de raça, cujo princípio é uma subjugação da vida ao domínio da maquinação. Vivem ainda segundo um planejamento que provoca sua total desracialização, produzindo um estranhamento entre os povos e uma perda da história, tornando, assim, impossível a decisão pelo ser (Seyn) (cf. HEIDEGGER, GA 96, p.67; cf. TRAWNY, 2015, p.43).
O calcular – e o poder calcular antecipadamente – é o símbolo maior da maquinação, é o seu gigantesco (das Riesige). O calcular próprio da maquinação provocaria uma determinação de mundo que traria como consequência, para os judeus, a falta de mundo (Weltlosigkeit). Segundo Trawny, Heidegger quer “transformar uma atribuição antissemita muito banal (de um ‘talento acentuado’) em historicidade do ser – e é nessa figura de pensamento que seu antissemitismo está ancorado” (cf. TRAWNY, 2015, p.41). Nessa história, calculabilidade, racionalidade e judaísmo andam de mãos dadas para Heidegger. Até que ponto levar a sério as considerações dos Cadernos negros quando se vê o filósofo querer imputar ao judaísmo a descoberta da racionalidade calculadora num contexto onto-historial? (cf. TRAWNY, 2015, p.43).
Trawny levanta um problema metodológico: como lidar com o antissemitismo onto-historial de Heidegger? E essa questão se torna ainda mais grave: os Cadernos negros revelam que estão presente em suas reflexões um antissemitismo que faz parte de seus pensamentos filosóficos. Então, até que ponto e em qual extensão não há uma contaminação geral na obra de Heidegger?
Vendo por esse ângulo, esse antissemitismo onto-historial estaria infiltrado em várias dimensões da filosofia de Heidegger, o que implicaria revermos sua recepção. Na opinião de Trawny:
Até hoje, o envolvimento de Heidegger no nacional-socialismo foi um problema que resultou em condenações parcialmente exageradas, mas também em reservas justificadas. Agora com a publicação dos Cadernos negros, a existência de um antissemitismo específico que de fato surge em uma época na qual o pensador se posiciona de maneira muito crítica contra o nacional-socialismo real existente não pode ser ignorada. (TRAWNY, 2015, p.131)
Os Cadernos negros exigem uma reflexão em vários níveis: em relação a seu conteúdo, é preciso investigar qual é o significado das declarações antissemitas de Heidegger, assim como também investigar suas outras passagens e saber até que ponto elas se inter-relacionam. É necessário verificar ainda como essas reflexões privadas se relacionam com o restante de sua obra. Além disso, é preciso refletir sobre o estilo filosófico de apresentação desses cadernos: seu modo de apresentação e reflexão apresentam elementos suficientes para afirmarmos que algo de filosófico acontece ali? Essa questão, por sua vez, remete a outra: o que a filosofia se tornou? O que Heidegger queria nos mostrar ao autorizar que esses cadernos só fossem publicados no final do conjunto total de suas obras reunidas? Por fim, precisamos saber como devemos trabalhar com seus textos e tratar seu pensamento filosófico.
No Brasil, o trabalho mais sensato e instigante continua a ser o livro de Zeljko Loparic, Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia (1990), em que o autor coloca a questão de como, afinal, podemos julgar não só a filosofia de Heidegger, mas toda e qualquer filosofia.
Recentemente, a obra Cadernos negros foi tema de debate no XIX Colóquio Heidegger, de 2014, que contou com a presença do editor Peter Trawny. A reação dos pesquisadores presentes no evento variou entre a necessidade de uma revisão de seus próprios posicionamentos sobre a filosofia de Heidegger, a partir das declarações nesses Cadernos, e a impressão de que tais escritos deveriam ser lidos à parte diante de toda a filosofia heideggeriana, não sendo esses Cadernos por si só suficientes para contaminar o que já conhecemos das profundas discussões filosóficas trazidas por Heidegger. Esse é um debate aberto que começa a tomar corpo em solo brasileiro. A recente tradução do livro de Trawny poderá fomentar com excelência essas discussões.
Referências
LOPARIC, Z. Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papiros, 1990.
HEIDEGGER, M. Überlegungen VII-XI (Schwarze Hefte 1938/39. GA 95. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014. HEIDEGGER, M. Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1939/41). GA 96. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014.
HEIDEGGER, M. Contribuições à filosofia do acontecimento apropriador. Tradução M. Casanova. Rio de Janeiro: Via Veritas, 2015.
TRAWNY, p.Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial. Tradução Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: Mauad, 2015.
Eder Soares Santos – Universidade Estadual de Londrina, (UEL), Londrina, PR, Brasil. Pós-doutorado em Filosofia. E-mail: edersan@hotmail.com
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