Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020

A Ciência da História está interessada em compreender como as sociedades, nas mais distintas temporalidades, produziram para si e para os outros, diferentes formas de orientação e sentido no tempo, tanto para ações individuais quanto para as coletivas. Trabalhando com os indícios documentais e diversas historiografias disponíveis, o historiador consegue propor análises e reflexões que objetivam compreender, entre tantas possibilidades, os mecanismos de identificação, regulamentação social, processos conflituosos ou diplomáticos entre diferentes grupos sociais ou sociedades distintas. Em tempos de interações e conexões entre o local e o global, as ciências humanas tem se dedicado cada vez mais aos estudos das fronteiras, processos migratórios e identidades, de modo a discutir como estes fenômenos relacionam-se com a produção de orientação e sentido no tempo.

O dossiê Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos, proposto pelos professores Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB / Blumenau) e Renato Viana Boy (UFFS / Chapecó), abre espaço para questões dessa natureza, contemplando reflexões interdisciplinares que debatam as complexas relações entre fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. Reunimos aqui um grupo de seis artigos de pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao estudo de temáticas situadas cronologicamente antes do período que chamamos de Modernidade, além de uma entrevista com o professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, Otávio Luiz Vieira Pinto.

Dois artigos escolheram abordar a temática das sociedades pré-modernas enfatizando Roma Antiga. O primeiro deles, As trocas de correspondências entre Tibério César e a aristocracia senatorial durante seu afastamento para Capri (26 – 37 d.C.): uma análise dos crimes de traição nos Anais de Tácito, escrito por Rafael da Costa Campos, teve como objetivo expor a importância das trocas de correspondências como fundamental ferramenta política e administrativa do Principado. A análise ficou concentrada no período em que Tibério César se afastou de Roma e residiu na ilha de Capri (26 – 37 d.C.). O afastamento do princeps foi um marco de inflexão política em seu governo, e as trocas de correspondências apresentadas por Tácito em seus Anais expõem o seu impacto sob a aristocracia mediante a intensificação dos casos de acusações e condenações pelo crime de traição (maiestas). O segundo artigo, intitulado Uma República degradada: breve estudo da guerra de Jugurta de Caio Salústio Crispo, de Alice Maria de Souza, por sua vez, analisa a obra Guerra de Jugurta, de Caio Salústio Crispo, escrita durante o Segundo Triunvirato. Considerando os elementos exteriores ao texto em si – tais como contexto, objetivos do autor e gênero – interpreta o referido documento não somente como produto de apropriações do passado, mas, também como produtor de novas representações, servindo como veículo de transmissão e ressignificação da memória. Vemos, então, uma problemática envolvendo História e Memória. É o que faz Erick Carvalho de Mello, mas, agora, abordando a temática do celtismo e da celticidade. Sua reflexão, proposta no artigo O Mito e a cultura de memória Celtas: Uma convergência de imaginários, parte do campo da Memória Social, não da Ciência da História, mas, em um constante diálogo interdisciplinar, aborda o papel das diferentes apropriações do que se entende por “cultura celta” na formação das identidades nacionais de grupos como irlandeses, escoceses e bretões franceses. O autor procurou identificar como o mito do celtismo é construído na História recente e como a partir deste mito uma cultura de memória é formada e nos possibilita ter uma compreensão mais aprofundada sobre os conflitos históricos que esses grupos enfrentam hoje, sem deixar de dialogar com a forma como a temática tem sido tratada quando o foco são as populações prémodernas, se decidirmos denominá-las de “celtas” ou não.

O artigo Multiculturalidade e a Christiana Civilitas na Britannia de Guildas (s. VI), escrito a quatro mãos por Helena Schütz Leite e Renan Frighetto, se propõe a discutir sobre as transformações observadas no século VI na Britannia do século VI não sob o prisma da decadência e destruição do mundo romano no Ocidente europeu, visão muito presente na tradição historiográfica sobre o período. Diferente disso, os autores propõem, através do estudo da obra De Excidio Britanniae, de Gildas, perceber a pluralidade cultural que é possível observar ali, e a busca por uma identificação que aproximasse dos diferentes reinos da Britannia na Antiguidade Tardia.

Outro artigo que também lida com a questão das identidades e historiografia é A fronteira entre cristãos e muçulmanos: uma terra de ninguém?, escrito por Márcio Felipe Almeida. Entretanto, o ponto central das análises do autor está no espaço de fronteira disputado por populações cristãs e islâmicas no século XIII. Vale ressaltar que a fronteira, neste caso, não é uma linha divisória entre dois territórios, como se pode pensar à primeira vista. Diferente disso, neste artigo, Márcio Almeida discute a fronteira como sendo, ela mesma, um território pretendido pelos dois grupos em questão.

O último artigo deste dossiê é aquele que avança mais próximo do fim do período chamado de pré-moderno, intitulado A Colonização Oriental e os Processos de Reformulação Rural em Brandemburgo (séculos XII–XIV). Neste artigo, Álvaro Mendes Ferreira se dedicou a analisar o processo de transformações no espaço rural do Europa oriental, ocorridas no período assinalado, em virtude do processo de consolidação do regime senhorial. Tendo os processos na Marca de Brandemburgo como estudo de caso, o autor busca compreender como os vilórios eslavos se enquadravam neste cenário de transformações.

Por fim, apresentamos ainda uma entrevista com o professor Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto, que tem dedicado suas pesquisas ao mundo persa e às trocas culturais entre os grupos da costa Suaíli, na África, e os grupos árabes e iranianos do Oriente Médio, entre os séculos VI e XI. Atualmente, Otávio Vieira Pinto é professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, pesquisador do Middle Persian Studies (MPS) e do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos), além de colaborador do projeto internacional Networks and Neighbours.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número traz também dois artigos e duas resenhas. O artigo de Darlan Damasceno e Gilmar Arruda, intitulado Religiosidade e Natureza: imigrantes ucranianos e a transformação do meio ambiente (Paraná 1890-1915), aborda como a religiosidade dos imigrantes ucranianos atuou no processo de ressignificação e transformação do meio ambiente entre os anos 1890 e 1915, na região centro-sul do Estado do Paraná. As fontes utilizadas pelos autores, indicam que a religiosidade dos imigrantes foi fundamental no processo de (re)construção da realidade social nas colônias, e para moldar o modo de vida dos indivíduos através de esquemas de percepção inscritos em suas ações.

No texto de Cássila Cavaler Pessoa de Mello, De estrangeiro a cidadão: o processo de naturalização instaurado em 1832 e seus limites, a autora discute o processo de naturalização instaurado no Império do Brasil a partir da Lei de 23 de outubro de 1823. Aponta os motivos que estimularam os estrangeiros a buscarem o título de cidadão brasileiro e expõe os trâmites e as dificuldades enfrentadas por aqueles que optavam por se tornar cidadãos. O texto explora tanto a perspectiva estatal, quanto a dos indivíduos neste percurso.

Na seção resenha, temos dois instigantes textos. Um novo estudo sobre a vida de Marx, uma resenha de Daniel de Souza Lemos, trata da obra Karl Marx: uma biografia dialética, publicada no Brasil em 2019, de autoria de Angelo Segrillo, professor de História Contemporânea e coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História, na USP. O texto de Isabel Schapuis Wendling, intitulado Modelando Condutas: uma resenha da obra sobre os poderes nas escolas católicas masculinas no Brasil, resenha a obra Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018.

Este dossiê e os demais artigos que compõem o número 35 da Fronteiras: Revista Catarinense de História estão fundamentados na proposta de uma história plural, que dispõe de espaço às múltiplas possibilidades de análises históricas de populações, personagens e acontecimentos em tempos recuados, definidos aqui como pré-modernos até a atualidade mais recente, focos dos textos que se enquadram fora do nosso dossiê. Afinal, se a História é a Ciência dos seres humanos no tempo e quem faz História é como o ogro da lenda, que, ao farejar carne humana, vê ali sua caça, para lembrarmos uma célebre reflexão do medievalista francês March Bloch, não é possível nos contentarmos com qualquer narrativa supostamente historiográfica que deixe de contemplar estas outras dinâmicas espaço-temporais tão importantes para compreendermos nossa própria historicidade.

Desejamos uma proveitosa leitura!

Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB)

Renato Viana Boy (UFFS)

Organizadores do Dossiê

Samira Peruchi Moretto (UFFS) Editora


SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; BOY, Renato Viana; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.35, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A História Antiga entre o local e o global: integração, conflito / Revista Brasileira de História / 2020

História Antiga: Diferentes Perspectivas

O presente dossiê surgiu em atendimento a uma chamada dos editores da Revista Brasileira de História e foi operacionalizado mediante uma rede de trabalho muito mais ampla do que aquela visível pelos nomes de seus organizadores. Desse modo, inicialmente, gostaríamos de agradecer aos colegas da coordenação do Grupo de Trabalho em História Antiga da Associação Nacional de História (GTHA-Anpuh), professores Alex Degan e Fábio Morales, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que contribuíram para o sucesso dessa iniciativa ao lado do professor Dominique Santos, da Universidade de Blumenau (Furb), também integrante da Coordenação Nacional do GTHA-Anpuh e um dos editores do dossiê. O agradecimento é extensivo à comunidade de Antiquistas brasileiros, que atuou de forma intensa na divulgação deste dossiê tanto no Brasil quanto no exterior. A existência de diversos núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil [1] e com sólidas redes de colaboração internacional é a base sólida que permite que os estudos sobre a Antiguidade e suas recepções tenham se consolidado cada vez mais, a ponto de podermos construir um dossiê como este na Revista Brasileira de História. Essa ampla rede de cooperação representada pelas diversas ações regulares do GTHA-Anpuh [2] permitiu que o dossiê, apesar de ter sido lançado no final do ano e com prazo relativamente curto, encontrasse excelente acolhida. Desde o início, a contribuição da equipe da Revista Brasileira de História, muito particularmente do editor, professor Valdei Lopes de Araujo (Ufop), e do secretário, Marcus Vinicius Correia Biaggi (Anpuh), foi diligente, próxima e indispensável. As antiquistas que compõem o Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, professoras Helena Papa (Unimontes) e Katia Pozzer (UFRGS), foram muito presentes, apoiando nosso trabalho em diversos momentos. Expressamos nossa gratidão!

Foram recebidas 15 excelentes contribuições de autores brasileiros e estrangeiros para a nossa chamada. Nesse ponto do processo, ganhou destaque e merece nosso mais efusivo agradecimento o trabalho dos pareceristas que se dedicaram não apenas a avaliar, mas também a qualificar com o máximo rigor e critério cada uma das propostas. A tarefa não era simples: havia 15 propostas muito qualificadas e só poderíamos publicar nove delas, por conta das normas do periódico. No total, trabalhamos com 36 pareceristas sediados no Brasil e no exterior para construirmos um quadro que permitiu a escolha cuidadosa dos artigos aqui apresentados. Essa seleção é ilustrativa, ainda que não seja exaustiva, da diversidade das pesquisas feitas pela nossa comunidade. Em que pese essa diversidade, há ainda alguma unidade que reflete o eixo proposto para o edital desde sua chamada inicial, que se expressava nestes termos:

Os desdobramentos dos vários processos de globalização e seus conflitos ao longo da história colocam em debate qual o papel das dinâmicas locais e de suas articulações ou interconexões em esfera global. Tal pauta assume relevância especial no tempo presente, em que a globalização apresenta paradoxalmente claros contornos de violenta exclusão. As pesquisas nesse campo para a Antiguidade são tão importantes que têm levado a uma redefinição do campo, como se vê em obras como Corrupting Sea, de Peregrine Horden e Nicholas Purcell (Horden; Purcell, 2000), e História Antiga, de Norberto Luiz Guarinello (Guarinello, 2013). As diversas abordagens teóricas, pensadas através dos processos de helenização, romanização, cristianização ou mediterranização, e também das críticas a seus limites, expressos sobretudo nas abordagens pós-coloniais e decoloniais, expressam a diversidade de estudos que temos produzido e debatido. Esse dossiê pretende servir como momento para um balanço e avaliação de possibilidades futuras de investigação.

Esses estudos sobre a Antiguidade que temos produzido e debatido no âmbito do GTHA-Anpuh, contudo, não se limitam à pesquisa sobre as sociedades antigas. Parte fundamental de nossas reflexões se volta para as tradições e representações que se produziram tendo como base fundamental a Antiguidade (tanto tradições intelectuais acadêmicas quanto culturais, expressas em linguagens tão diversas quanto as óperas e as séries em streaming, chegando aos jogos tradicionais ou de computador e narrativas populares e jornalísticas). Os estudos sobre os usos dos passados perpassam os vários momentos da existência de sociedades diversas ao longo do tempo. Isso ocorre com a nossa sociedade e com muitas e muitas outras que tomaram e tomam as várias Antiguidades como referência para se pensar a si mesmas (e é decisivo refletir criticamente sobre essas identidades construídas arbitrariamente por diferentes sociedades para si mesmas). O estudo da Antiguidade, sabemos, não pode ser pensado sem uma reflexão sistemática e aprofundada sobre os usos do passado, que são centrais para o estudo e releitura crítica desses passados (tanto os “antigos” quanto os que tomaram a esses “antigos” como elementos fundamentais para a construção de sua contemporaneidade, como apontam os estudos de François Hartog, na França, Francisco Murari e Pedro Paulo Funari, no Brasil, e José Antônio Dabdab Trabulsi com sua produção franco-brasileira).

Nesse campo dos usos do passado, ainda, assume relevância o ensino da História Antiga nos diversos níveis. O GTHA-Anpuh teve essa pauta no centro de seus debates desde sua criação (Silva, 2001), mas conheceu forte impulso a partir do debate sobre o lugar do Ensino da História com a reforma do Ensino Médio e a criação da BNCC no Brasil, além das mudanças que têm ocorrido na forma de se pensar o Ensino no mundo todo. Isso tem alimentado a discussão sobre esferas específicas no campo dos estudos sobre os usos do passado no que se refere especialmente à Antiguidade com a intensificação dos debates e o aprofundamento de práticas voltadas também para as atividades de Extensão. Esse movimento é percebido tanto pelo crescimento dos trabalhos apresentados nos encontros do GTHA-Anpuh quanto pelo aumento das publicações em nossos periódicos especializados.[3]

Em síntese, como expressa o título, este dossiê se volta à reflexão dos debates atuais na e sobre a História Antiga que têm sido produzidos no Brasil e no mundo, face aos dilemas e conflitos produzidos pela globalização e seus efeitos, sejam os positivos como os adversos. Trata-se, acima de tudo, de avivar e registrar um debate entre o mundo atual (em sua diversidade) e mundos antigos (idem), cuja conjunção permite fertilizar e tornar mais plural o próprio campo da História.

As contribuições publicadas neste dossiê refletem diferentes olhares para esse eixo geral proposto pelos editores. Problematizando as obras de Benjamin Isaac (2004) e Susan Lape (2010), Félix Jácome Neto faz importantes reflexões sobre racismo, etnocentrismo e preconceitos culturais. Localizando as deficiências conceituais e argumentativas dos discursos dos dois autores, Jácome Neto questiona a tese de uma suposta continuidade entre o racismo antigo e o moderno, pois as relações étnicas na Grécia Antiga seriam mais bem compreendidas se pensadas como formas não hereditárias de preconceito cultural ao invés de racismo, que tem uma história específica ligada à colonização europeia e ao tráfico negreiro da época moderna. Trata-se, então, de uma investigação sobre a relação entre etnicidade antiga e racismo moderno, com suas continuidades e permanências.

O estudo das recepções da Antiguidade e Usos do Passado se estabeleceu como um dos campos da área de História Antiga. Glaydson José da Silva, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni lembram, no entanto, que a reutilização do passado em contextos posteriores já era uma prática na própria Antiguidade. A frase de Horácio (epis., Il, 1, 156-7) “Graecia capta ferum victorem cepit et artes / Intulit agresti Latio” (“a Grécia conquistada conquistou a seu feroz conquistador e introduziu as artes no agreste Lácio”) é apenas um dentre tantos exemplos. Tais práticas tiveram continuidade com o Cristianismo, o Renascimento etc. Assim, há muito a ser explorado sob essa perspectiva. Objetivando compreender melhor esse fenômeno, os autores apresentam uma análise dessa dinâmica nos estudos de História Antiga e das definições, aproximações e distanciamentos entre recepção e usos do passado, contemplando, ainda, uma análise específica do caso de Curitiba, mostrando como a presença da Antiguidade greco-romana se manifesta na realidade brasileira.

Essas camadas temporais são exploradas e aprofundadas tanto nos artigos de Camila Ferreira Paulino da Silva e Leni Ribeiro Leite quanto no de Anderson Zalewski Vargas. No primeiro caso, investigam-se alguns usos do passado no próprio passado, quando as autoras discutem como o poeta Horácio se apropriou da tradição retórico-poética romana e grega de forma a estabelecer sua posição frente à sociedade romana, no contexto de alargamento de fronteiras e de fabricação de um novo regime político durante o Principado de Augusto. Ou seja, como estratégias retóricas foram utilizadas para fabricar, reinventar, atualizar, redefinir e reescrever o passado posicionando-o em relação aos jogos de poder em Roma. O tema da retórica também é predominante no segundo caso. No artigo de Vargas, porém, são avaliadas as dinâmicas entre Antiguidade e Contemporaneidade. O autor analisa como os recursos retóricos clássicos foram utilizados para persuadir os leitores do jornal Correio da Liberdade, publicado em Porto Alegre em 1831. A temática da recepção da Antiguidade no periódico gaúcho é percebida sobretudo a partir da peculiar apropriação da tirania ateniense de Pisístrato em matéria sobre o regime político brasileiro da época.

Em “Palavra de mulher”, Marta Mega de Andrade investiga a ação política das mulheres na história grega antiga, sobretudo na pólis. Compreendendo a questão como contemporânea, a autora analisa tragédias, comédias e epigramas funerários dedicados às mulheres no final do século V e início do século IV a.C, em Atenas, para pensar a persistência de requisições femininas aquém do direito políade, validadas pela comunidade e pela dimensão da “vida comum”, mesmo que as “vozes” não sejam passíveis de identificação a uma autoria feminina. A dimensão do cotidiano também é um espaço / tempo da política, e lá poderemos perceber esse logos gunaikos, uma “palavra de mulher”.

O estudo da chamada cultura material é fundamental para a compreensão das temáticas da área de História Antiga. Considerando isso, Gilberto da Silva Francisco, Haiganuch Sarian e Fábio Vergara Cerqueira partem do estudo de caso de uma ânfora de tipo panatenaico em figuras vermelhas atribuída ao artesão caracterizado como Pintor de Nicóxeno, conhecida na historiografia da área como “ânfora de Mississípi 1977.3.115”, para retomarem a Arqueologia da Imagem e posicioná-la entre a iconografia clássica e a cultura material. Para tal, discutem-se os conceitos de suporte e de contexto, elementos básicos para o tratamento arqueológico das imagens, realizando um debate teórico sobre esse tipo de metodologia. Pensando um mediterrâneo globalizado, os autores chegam à conclusão de que a integração não uniformizava a relação entre os povos específicos e o universo material ao seu redor. Assim, não se pode atribuir naturalmente um significado ático para imagens produzidas na Ática. Ao contrário, a imagem precisa ser pensada em um complexo quadro envolvendo materiais, circulação e recepção.

Essas complexas relações entre o local e o global também são temas das análises do austríaco Raimund Karl, da Bangor University. Autores clássicos, como Políbio, César, Estrabão e outros, escreveram sobre os “Celtas”, mas a Arqueologia permite realizar leituras diversas e aprofundar o conhecimento sobre esses atores históricos da Antiguidade. As fontes históricas clássicas e a Arqueologia não estabelecem uma relação simples de complementaridade, mas permitem colocar questões diversas e relativamente autônomas. A partir de algumas questões que percebeu quando coordenava um projeto sobre o sítio arqueológico de Meillionydd, na Península de Llŷn, localizada no País de Gales, Karl problematiza as diferenças, integrações e conflitos entre as várias sociedades “célticas” da Europa e seus vizinhos, bem como o próprio uso da temática “céltica”, tanto em passados mais recuados quanto em mais recentes.

Horacio Miguel Hernán Zapata questiona o pretexto de que não seria interessante para nós, latino-americanos, estudar a História Antiga oriental porque a temática não responderia aos interesses “nacionais” e não seria necessária para nosso contexto. Respondendo a esse tipo de provocação, o autor aponta três razões e algumas reflexões, defendendo que a História Antiga daquela parte do mundo é fundamental para nós e pode funcionar como uma espécie de “laboratório” que colabora para que possamos pensar todo um conjunto de diferenças socioculturais acerca dos modos de experiência social sob uma perspectiva histórica. Reconhecer essa diversidade de formas em que pode materializar-se a experiência humana ao longo da História é fundamental para nossa contemporaneidade.

Um exemplo da temática proposta por Zapata é apresentado no artigo de Jorge Elices Ocón, que aborda os monumentos antigos em contextos islâmicos. Analisando o discurso elaborado pelo DAESH, o autor aponta que, por trás de um caráter radical e destrutivo, a narrativa daquele grupo esconde complexos argumentos relacionados com a narrativa histórica que se objetiva construir a partir da Arqueologia, dos monumentos e dos museus. O grupo islâmico se apropria das ideias do discurso ocidental e colonialista e reinventa o passado, não somente ocultando a realidade de um tráfico de objetos antigos, mas também destruindo outras percepções dos monumentos elaboradas pelas comunidades locais a partir de suas memórias e tradições.

Como é possível perceber, desde que Eurípedes Simões de Paula – membro fundador da Anpuh e um de seus primeiros presidentes – deu as primeiras aulas de História Antiga em uma Universidade Brasileira, a área não parou de se ampliar, se ressignificar e se reinventar. Parte inseparável da historiografia brasileira, os debates produzidos pela área de História Antiga em nosso país têm colaborado para pensarmos questões sociais, econômicas e culturais próprias do nosso tempo, afinal, como dizia Benedetto Croce, “Ogni storia vera, è storia contemporanea” (Croce, 1912), e, de igual modo, Lucien Febvre, “L’histoire est fille de son temps” (Febvre, 1942, p. 2). Em um mundo cada vez mais glocal, é importante debatermos essas realidades interconectadas, evitando o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamou de “the dangers of a single story” (Adichie, 2009). Este dossiê aponta alguns direcionamentos. Boa leitura!

Notas

  1. Para uma informação detalhada sobre os grupos de pesquisa a que nos referimos, cf. o (novo!) sitedo GTHA: https: / / www.gtantiga.com / laboratorios-e-grupos-de-pesquisa. Acesso em: 11 maio 2020.
  2. O GTHA realiza, entre outras ações, um Encontro Nacional bianual e participa regular do Simpósio Nacional de História com a promoção de Simpósios Temáticos. Além disso, o GTHA mantém uma fanpageno Facebook e contas em outras redes sociais. Para deta- lhes, cf. https: / / www.gtantiga.com / . Acesso em: 11 maio 2020.
  3. Silva; Oliveira, 2017. Cf. dossiê completo: www.revistas.usp.br / marenostrum / issue / view / 10208. Acesso em: 11 maio 2020.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The Danger of a Single Story. TEDTalks, TEDGLOBAL, 2009. Disponível em: Disponível em: https: / / goo.gl / 3BdPCc . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

CROCE, Benedetto. Storia, cronaca, e false storie. Memoria letta all’Accademia pontaniana nella tornata del 3 novembre 1912 dal socio Benedetto Croce. Atti dell’Accademia Pontiana, v. XLII. Napoli: F. Giannini e figli, 1912. [ Links ]

FEBVRE, Lucien. L’incroyance au XVIe siècle: la religion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1942. [ Links ]

GUARINELLO, Norberto L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. [ Links ]

HORDEN, Peregrine; PURCELL, Nicholas. The Corrupting Sea: A Study of Mediterranean History. Oxford, UK; Malden, MA: Blackwell, 2000. [ Links ]

SILVA, Gilvan V. da. Editorial do GT de História Antiga. Hélade, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 6-7, 2001. Disponível em: Disponível em: http: / / www.helade.uff.br / Helade_2001_volume2_ numero2_NE.pdf . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

SILVA, Uiran G. da; OLIVEIRA, Gustavo J. D. Editorial. Mare Nostrum – Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, v. 8, p. iv-vii, 2017. [ Links ]

Fábio Faversani – Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Mariana, MG, Brasil. E-mail: faversani@ufop.edu.br http: / / orcid.org / 0000-0002-3464-1020

Dominique Vieira Coelho dos Santos – Universidade de Blumenau (Furb), Blumenau, SC, Brasil. E-mail: vieiradominique@hotmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-0265-2921

Cristina Rosillo-López – Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España. E-mail: mcroslop@upo.es http: / / orcid.org / 0000-0001-5451-841X


FAVERSANI, Fábio; SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; ROSILLO-LÓPEZ, Cristina. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.40, n.84, mai / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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