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Soldiers, Saints, and Shamans: Indigenous Communities and the Revolutionary State in Mexico’s Gran Nayar, 1910–1940 | Nathaniel Morris
Nathaniel Morris | Imagem: The University of Arizona Press
The period 1910-40 was tumultuous in Mexican history. The armed phase of the Mexican Revolution (1910-20) was followed by fragmented attempts by Revolutionary politicians to assert Federal control and modernisation in the face of military rebellion, resistance to social reform, two major religious revolts known as the Cristiada, and ongoing, albeit often unremarked, agency from Mexico’s indigenous populations. This latter aspect is the focus of research in Nathaniel Morris’s excellent new history. The author’s specific attention is on the Wixárika, Naayari, O’dam, and Mexicanero communities of the Gran Nayar region along with adjoining locations along the Sierra Madre Occidental highlands.
Nathaniel Morris’s work is a landmark study of ethnohistory and a highly original addition to our knowledge of Mexico’s revolutionary and counter-revolutionary era of 1910-1940. His focus is the Gran Nayar, a region centred on Nayarit, but also including parts of the states of Sinaloa, Jalisco, Zacatecas, and Durango, during the armed phase of the Mexican revolution and the Cristero wars. Soldiers, Saints and Shamans fills a void in the historiography. As Morris correctly points out, there has been very little historical analysis of indigenous agency in the Mexican Revolutionary period, and ‘the Gran Nayar remains entirely absent from most Mexicans’ mental map of the period’ (p. 11). Throughout the 19th century, any Indian initiative was written off as a ‘caste war’, and irreconcilable with White and mestizo nation-building.(1) 20th-century historians and anthropologists mostly assumed that Mexico’s indigenous populations were either passive recipients of Revolutionary nation-building schemes or defiant outsiders from the mestizo state. A landmark study of caudillos (political/military ‘strongmen’) in the Independence Wars represented Indians as ‘apolitical’.(2)) Indigenous agency was usually explained as a defence of ‘old ways’, and the amorphous collection of rituals, everyday representations, and beliefs lumped together as a static rather than dynamic ‘costumbre’ (customs). Condescending, and even racist, interpretations died hard, as Nathaniel Morris’s separate study of the 19th-century Manuel Lozada revolt in a similar region has shown.(3) The outsized role played by indigenous communities in religious revolts, including the Cristiada, was explained as being motivated by religious devotion and an ingrained scepticism towards the Mexican state.(4) More recent scholarship has shifted the dial somewhat, demonstrating the considerable degree to which indigenous peoples collaborated with White/mestizo state-building all the same, often by turning against their defiant (‘bronco’) kin.(5) But Soldiers, Saints and Shamans should be considered a breakthrough. Leia Mais
Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica | Ronaldo Amaral
O livro Santos imaginários, santos reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica que aqui nos propomos a resenhar levanta problemáticas que concernem a relação entre hagiografia como fonte histórica e o Imaginário. O autor almeja no âmbito das manifestações maravilhosas do imaginário a mesma relevância histórica nas esferas referentes às expressões sociais, econômicas e políticas. À vista disso, Ronaldo Amaral nos propõe reflexões acerca das relações entre a História, a Literatura e o Imaginário, cuidando em seu livro de reafirmar a importância das hagiografias para que possamos vislumbra-las à luz do passado tardo-antigo e medieval, bem como mostrar alguns caminhos para que os historiadores possam recair sobre elas seus olhares e se atentar às riquezas socioculturais que esses escritos compartilham acerca de um imaginário, que bem nos conta o autor, é sempre coletivo.
Portanto, na introdução e no capítulo um intitulado A hagiografia como fonte histórica. O imaginário relegado nos é apresentada, e somos levados a entender, as discussões teóricas no campo da história e do imaginário onde ele se torna, por excelência, em ferramenta teórico-metodológico para análise da História. Os embates que concernem ao uso da literatura, em especifico a literatura sagrada, como fonte histórica foram propiciados pela descoberta de novos métodos e teorias, nesse sentido seria uma heresia não mencionarmos a importância dos bolandistas, que por sua vez, compilavam erudições críticas de textos dedicados a santos, mesmo que naquela instância almejavam dados concretos que afirmassem uma existência real. Amaral também trata neste capítulo a importância de Hippolyte Delehaye ao ampliar os métodos bolandistas em que impunham problemas ao histórico da vida dos santos e buscava fatos verdadeiramente históricos, ou seja, para além do “fictício”. Todavia, já teria esse autor chamado a atenção para a hagiografia como fonte histórica, mesmo que seus métodos o levassem para um viés positivista em almejar a verdade objetiva, por consequência, separando o histórico do imaginário, o que Amaral em seu livro não propõe a separação da vida sociomaterial do imaginário. No entanto, é impreterível analisarmos as inovações de Delehaye a sua época, possibilitando assim entender à hagiografia como fonte histórica.
Ainda neste capítulo o autor trata que a partir do imaginário surgem hábitos, costumes e comportamentos capazes de apresentar a razão humana para o homem medieval onde suas bases fundantes estão arraigadas nas sensibilidades, nas estruturas do pensamento simbólico e analógico ao invés de pensamentos idiossincráticos forjados. Nesse sentido, nos é apresentado críticas por parte do autor aos métodos de tratamento dos santos de existência literária como não históricos. No que tange ao refutamento dos santos criados pelo imaginário dos hagiográficos o autor rebate isso afirmando que todo santo fictício é um santo por excelência, pois cumpre sua razão a ausência que viria a responder, assim sendo, muitas vezes os santos são personagens ideais no caráter personificado da santidade e que os hagiógrafos não puderam lhe escolher, foram assim, impostos por suas circunstâncias espaço-temporais próprias buscando atender as necessidades materiais e mentais de seu período histórico. Desta forma, fica evidente para o autor que sua historicidade concreta pouco importa, mas sim os atributos supra-humanos do santo.
No capítulo dois A emergência do imaginário nas fontes hagiográficas o autor menciona a hagiografia como texto literário capaz de interessar ao historiador por lhe oferecer uma fonte ordenada, cujo estudo linguístico facilita o trabalho que contempla seu contexto dentro do fenômeno histórico. Amaral, tanto neste capítulo como em outros, irá inaugurar um debate historiográfico onde contrapõe historiadores que afirmam o sincero não ser histórico, mas sim o verdadeiro ser histórico. Nessa acepção o autor levará algumas páginas discutindo o que seria a verdade, sobretudo a verdade histórica, e defende que a “realidade” apresentada pelas hagiografias não devem ser julgadas por métodos, mas sim serem entendidas na categoria do verossímil ao invés do sincero e verdadeiro. Assim sendo, por tratar a hagiografia de uma história sagrada seu teor de verdade também não deve ser buscado nas circunstancias e ideários no lugar daquele que fala, senão no lugar do qual se fala. Como afirmação de seus entendimentos o autor nos diz que as realidades fundadas em imagens e situações maravilhosas concebidas pelo imaginário são uma realidade tão verdadeira como a histórica.
Amaral continua por acentuar que à hagiografia interessa ao historiador enquanto o ajude na compreensão da vida social de sua época, embora sempre esteja atrelada a um processo histórico mais amplo, visto que a hagiografia é sempre um “recriar”, no entanto, devem ser vistas para além das estruturas econômicas e políticas, ou seja, deve ser concebida pelo imaginário. No discorrer do capítulo encontramos novas críticas, tanto benévolas como nefastas, a renomados historiadores, como Peter Brown e Santiago Castellanos a exemplo, sendo este último mais questionado, pois é partidário que a hagiografia não atende ao caráter de documento histórico, mas, apenas, pode ser tratada como fonte marginal e ser “desmentida” a partir de documentos ditos “oficiais”. Para isso, o autor nos ensinou que o que se almeja nas hagiografias é uma realidade menos precisa do que a dos documentos oficiais, visto que é menos carregada de ideologias do que tais documentos. Por meio dessas considerações o autor entende que a hagiografia é uma realidade construída e constitutiva por seus autores, uma vez que o autor é sempre o porta-voz de seu meio, concretizando assim a função do imaginário coletivo e dos ideais da comunidade. Após direcionar seus entendimentos, Amaral defende que o imaginário é um modo de apresentar a História.
No capítulo Hagiografia, biografia e história o autor irá questionar em conjunto com Jacques Le Goff, Loriga, Schwob, Pierre Bourdieu e outros autores a realização das biografias antes da modernidade, pois essas não são capazes de apresentar significações históricas gerais no que concerne uma vida individual, nesse viés, o autor nos propõe utilizarmos para investigar o período medieval não a biografia, mas sim intentos biográficos. Assim, no que diz respeito ao “processo biográfico” da vitae dos santos, esse se ocupa mais com as pródigas realizações sagradas do que com o teor laico e a exatidão espaço-temporal, no entanto, Amaral não despreza que as vitae tragam informações de uma existência mais factível dos santos, porém toda informação “factível” nas hagiografias está mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso, milagres, aparições demoníacas, curas e lugares estão ligadas por uma função simbólica que se remete mais a uma realidade transcendente do que factível. É ressaltado por Amaral que a inconsistência histórica acerca do personagem hagiográfico, quando se deseja a biografia, não está na fonte mesma, mas sim na abordagem do historiador, desta forma, a hagiografia trata de homens que deixam de sê-lo ao se tornarem, por sua escrita, santos, ou nas palavras do autor:
“O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana” (p.75).
Seguindo esse pensamento, nos é apresentado uma crítica do autor acerca da pretensão da hagiografia como biografia, pois entende que seria algo faltoso, visto que é inviável “resgatar” uma personalidade histórica factível e dá-la a conhecer posteriormente, mesmo munido de fontes. É muito latente no livro a questão de quando nos referimos a vida dos santos devemos nos ater mais ao espírito do discurso do que em sua letra, pois é neste que se emerge significados mais precisos da escrita e é ainda mais arraigado quando investigado pela ótica do imaginário.
O autor utiliza esse capítulo terceiro para assentar seu modus cogitare em que à hagiografia é constituída por verdade, sinceridade e realidade, isso porque, suas narrações se assentam em tempos, lugares e acontecimentos que antes de tudo são representações, portanto, as hagiografias são constituídas de lugares e situações ideais apresentadas por signos de transcendência, estruturas simbólicas e espaços do mítico e não por meros dados factíveis e positivos. Outro ponto fulcral tratado neste livro é quando o hagiógrafo é hagiografado, ou seja, quando descreve a si mesmo, para isso o autor traz exemplos de Valério do Bierzo, monge eremita que atribuía a si virtudes das vidas de outros padres do deserto. Para Amaral, esses eremitas mostravam tanta admiração por aqueles santos de sua mesma profissão monástica que imitá-los seria algo grandioso. Há também que se considerar a apropriação literária no âmbito hagiográfico na Idade Média, que seria mais do que uma subtração de textos e palavras das fontes, seria o que o autor chama de “aggiornamento” com adequações do lido e apropriado pelo autor vivido.
Referente ao capítulo quatro A natureza do tempo e do espaço na hagiografia, é explicitado a percepção do tempo e espaço profano/sagrado no imaginário de monges primitivos onde as noções de espaço geográfico – deserto, árido ou floresta – é mais do que um lugar, é um não lugar, isto é, um lugar que rompe com lugares humanos e seu próprio mundo temporal. Desta forma, os lugares assentados nas hagiografias sempre se remetem a imagens de caráter divino transcendental do que propriamente em espaços geográficos materiais. Portanto, o autor vislumbra que os lugares mais importantes nas hagiografias são os lugares da santidade, os lugares se tornavam santos pela presença do santo propriamente dito que não carregava consigo pecados e por essa sua santidade tornava os lugares sagrados. Nesse intento, somos levados a entender que os lugares apresentados pelas hagiografias são mais do que descrições de lugares concretos passam a ser símbolos que revertem significantes profanos os tornando sagrados com efetiva participação dos santos, como os desertos.
Nos é apresentado ainda neste capítulo o quão os espaços geográficos de desconhecimento dos homens medievais eram concebidos por uma dimensão mítica e fabulosa, com isso, o autor quer ressaltar em sua obra que o espaço era pensado mais em totalidade do que parcialidade. Amaral diz ser “auspicioso” buscar nas hagiografias um estrito espaço geográfico exato, visto que na Antiguidade Cristã os espaços serviam para separar o eremita da sociedade, portanto essa cisão de espaços dentro das hagiografias é interpretada como uma cisão para com a realidade cósmica. Nesse sentido, Amaral defende neste capítulo que os santos conseguem romper com o tempo ordinário ao se transportar miraculosamente no tempo e no espaço presenciando assim lugares distintos e longínquos em tempo curto. Desta forma, cabe ao escritor da vida do santo solitário demonstrar o lugar que ele não está, ou seja, extramundano, longe da sociedade e do pecado. O autor encerra este capítulo com a reflexão em que a vida e feitos de santos se desenvolvem em uma temporalidade da santidade, e não obedecem uma dinâmica aberta, portanto, os santos estão acima e além do espaço mundano.
No que concerne ao quinto e último capítulo Hagiografia: a tradição da escrita, a escrita da tradição, o autor nos coloca como latente a perícia que historiador tem para fazer emergir de um texto uma realidade, todavia, isso é possibilitado, e Amaral defende essa possibilidade, por meio de uma interpretação hermenêutica dos textos onde se objetiva atingir e extrair o espírito do texto, ou seja, a “vivência subjetiva do autor” que corresponderia ao seu meio sociocultural e mental. Nesse sentido, entendemos que para compreensão de um texto ou uma fonte deve-se levar em consideração todas as suas possibilidades de interpretação, ou seja, a intenção do leitor, a do próprio texto e a do autor. Outro pródigo ponto do capítulo são os apontamentos acerca da dificuldade de apreender o fato histórico em si, ou seja, compreende-lo em sua essência, pois cada apreensão, seja do leitor ou do autor, deforma-o, modela-o. Em consonância a isso é discorrido pelo autor que a realidade hagiográfica tem menos uma visão positiva e materialista da história, pois não almeja suas análises dos fenômenos religiosos por meio historicista, mas sim por meio de seus símbolos, metáforas, alegorias e outros meios que constituem a linguagem religiosa.
Ainda no que diz respeito a este capítulo quinto nos é explicitado que todo santo recriado por uma nova hagiografia, antes mesmo disso, já era um santo consagrado pela tradição, todavia ao ser recriado ganha um novo corpo individual e social ao se inserir em um outro homem histórico e o hagiógrafo fica responsável por inseri-lo em um novo espaço-temporal. Esse processo, segundo o autor, se desemboca por um produto da imaginação que busca alicerçar insuficiências mundanas do presente. Esse modelo de santidade que se almeja é sempre uma construção baseada no coletivo, pois a imaginação é o ato de um ser social e obedece a esquemas de reorganização que são comuns a um grupo. O autor enfatiza que o imaginário gesta as hagiografias e exerce sobre elas um poder de realização, o poder da retomada. Amaral nos conta que todo modelo de santidade, seja qual for, partirá de Cristo, dessa forma a fonte de seu trabalho será as Sagradas Escrituras, portanto, ressalta que na Antiguidade Cristã havia interesses ideológicos, e que os seus contemporâneos leram as Sagradas Escrituras impelidos pelos acontecimentos da época, sobretudo em visões de mundo que estavam permeadas pelo maligno e influídas pela filosofia antiga – neoplatônica e escatológica.
Levando-se em conta o que foi observado, podemos entender o quão profícuo é considerar o imaginário como pedra angular de um entendimento mais pleno acerca da Antiguidade Cristã, visto que o imaginário é interdisciplinar e compreende a vida humana em seu sentido mais amplo e profundo, pois tece seu entendimento no simbólico. Portanto, essa obra de Ronaldo Amaral enalteceu as considerações, maneiras de pensar, críticas e novas caminhos para pesquisas no campo da História. Nesse sentido, sua obra torna-se por si só uma ferramenta teórica aos interessados em vislumbrar as razões sensíveis dos homens nas hagiografias, sobretudo vistas à luz do imaginário.
José Walter Cracco Junior – Graduando do curso de História da UFMS-CPTL, bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID).
AMARAL, Ronaldo. Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013. Resenha de: CRACCO JUNIOR, José Walter. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.129-138, 2016. Acessar publicação original [DR]
Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografi | André Luis Pereira Miatello
O universo temático referente à Ordem Minorita [1] é amplo. A importância computada historicamente aos franciscanos como um dos movimentos espirituais, culturais e sociais de maior difusão e transcendência na História da Igreja e da espiritualidade explica a abundancia do material produzido sobre este tema. Como afirma o teólogo Daniel de Pablo Maroto [2]:
Retém como óbvio historicamente que o movimento espiritual dos “frades”, os mendicantes, nas primeiras décadas do século XIII, constitui uma verdadeira revolução religiosa como resposta as necessidades pastorais da Igreja em plenitude de seus poderes, especialmente durante o pontificado de Inocêncio III (1198- 1216).
O livro de André Luís Pereira Miatello insere-se precisamente neste universo. Contudo, as afirmações lançadas pelo autor contradizem boa parte da tradicional historiografia, frequentemente apologética, e que faz das Ordens Mendicantes e de seus fundadores os criadores de uma nova cultura cristã no Ocidente Medieval. Não se trata de contar a história dos santos do período medieval, nem tampouco seus exemplos de virtudes. A perspectiva aqui é outra: a partir da memória póstuma, ou mais precisamente do momento em que as obras hagiográficas fazem propaganda da santidade de seus respectivos fundadores, Miatello procura discutir – e propor – algumas questões fundamentais para a temática em questão.
A experiência religiosa mendicante é abordada a partir de como os acontecimentos da vida de Francisco de Assis e de Antônio de Pádua eram retratados pelos hagiógrafos dos movimentos. Miatello propõe pensar tanto as palavras e ações dos pregadores, articulando os efeitos imediatos da pregação, quanto aos efeitos que podem ser qualificados como de “longa duração”, reavivados pelo culto a memória.
A relação entre as Ordens Mendicantes e as cidades em que atuavam é também um dos temas mais interessantes do qual os historiadores se debruçaram ao longo dos anos. No entanto, longe das conclusões obtidas pela historiografia, Miatello inverte a equação: os espaços urbanos bem como as redes de sociabilidades e de poder não são derivadas das ações empreendidas pelos frades, mas sim frutos de um contexto conturbado e tenso no qual as comunas italianas estavam se afirmando como entidades autônomas independentes. Em outras palavras, “não é o santo que funda a cidade, é a cidade que, a partir de certos santos, dá novo sentido a sua trajetória, projetando-se em um futuro, incerto, mas promissor” (p. 12). Claro que esta relação não pode ser traduzida em via de mão única. Assim como as cidades se apropriam do corpo e da lembrança de um santo para se promover, os frades minoritas usam as biografias como parte de seu repertório discursivo para atuarem politicamente nas cidades italianas medievais.
Esta relação é possível devido à especificidade da história italiana. Como bem nos lembra Patrick Gilli [3], as cidades da Itália setentrional viviam desde o século XII imersas em um contexto de inconstâncias políticas e tensões envolvendo duas autoridades de vocação universal: o papado e o império. Faltavam a elas modelos de estruturas de governo e de conduta para legitimar sua condição e que servissem de norteadores da vida politica. Tais fundamentos foram tirados em parte das hagiografias que se tornaram “uma espécie de arma ideológica nas mãos dos mendicantes, do papado e das cidades, todos estes envolvidos num projeto de controle das populações e instituições urbanas da Itália centro-setentrional” (p. 18). Devolvendo, desta forma, os frades à dinâmica social. Não trata-los como seres excepcionais significa enxerga-los a partir das relações de poder tecidas pelos diversos grupos.
A pregação e a penitência são elementos centrais para compreender as bases em que se operavam as ações destes agentes históricos. A paz buscada não é entendida em termos sociologizados, mas como resultado de uma realização espiritual e moral e que esta estritamente vinculada com a vida prática, econômica e política. Assim como os pregadores exortavam as multidões para alcançar a pacificação e a coesão das cidades, os hagiógrafos construíram uma memória da obra desses pregadores. Desta forma, reside mais uma contribuição dada pelo autor para renovar as abordagens do tema: as Vitas mendicantes, enquanto obra de edificação e de oratória, não são novidades. Elas dialogam com o passado e são devedoras de uma trajetória que remonta a Gregório Magno.
É este o objetivo do primeiro capítulo: procurando apresentar as engrenagens da oratória do gênero hagiográfico, o autor lança ao estudo dos prólogos das principais Vitas de santos no Ocidente, para de certo modo, “obedecer aos mecanismos do gênero hagiográfico a fim de entender o seu proprium a despeito da almejada facticidade historiográfica” (p. 23). A partir de uma notável erudição, Miatello nos convida a um passeio pelos mecanismos discursivos que forjaram o culto de santos há pelo menos 6 séculos. Segundo o autor, não devemos tomar como parâmetros para investigar tais documentos as modernas concepções de “verdade”, “fato histórico” ou “historicidade”. Os ditames aqui são teológicos-retóricos e não historiográficos. Se não atentarmos para este detalhe, a composição hagiográfica se torna um repositório de “crenças ou de sentimentos religiosos” pertencentes a um comportamento pejorativamente qualificado como sendo pré-lógico.
Entender a hagiografia como retórica nos leva a interpretá-la como sendo parte de um conjunto maior de práticas letradas que, por sua vez, obedecem a cânones precisos de composição, elaborados ao longo de séculos por autoridades consagradas pela arte e pela erudição; tudo isso constituiu uma verdadeira jurisprudência das belas letras segundo a qual os textos eram pensados, escritos e lidos antes do século XIX (p.27).
Já no segundo capítulo o autor se aprofunda no debate citado na introdução sobre as relações causais entre as intenções políticas do papado com relação à Lombardia do século XIII e o empenho dos frades menores em “converter” as cidades. Aqui – indiretamente – Miatello repensa um dos argumentos chaves para a historiografia temática sobre o processo de institucionalização da Ordem. Tradicionalmente concebida como sendo resultado direto da intervenção do papado romano em assuntos internos do movimento, o autor salienta a aproximação que Gregório IX manteve com os Menores, por exemplo. Fato este que condiciona os frades aos intentos pontifícios e, vice-versa, impossibilitando uma análise puramente maniqueísta do processo. A relação é muito mais complexa do que simplesmente reduzi-la a dois polos de poder: um sendo positivo claramente identificado aos minoritas e outro, negativo, associado ao papa.
O terceiro capítulo avança na análise da “retórica religiosa” em suas relações com a “retórica cívica”. Desde Aristóteles, a vida política supõe o uso de palavras como “instrumentos de poder e de ordenamento social”. Ora, a Ordem dos Menores se constitui como uma Ordem pregadora, embora não sejam todos os seus membros que estejam investidos do ofício de pregação. A participação da matéria hagiográfica foi fundamental nas lidas urbanas do século XIII.
O modelo do santo pregador, associado ao modelo do santo taumaturgo, propiciou as frades uma dupla via inserção no tecido urbano e nas políticas cívicas. Tais frades valiam-se do estereótipo da santidade que as populações lhes atribuíam e da santidade que os fundadores e confrades de suas Ordens desfrutavam no interior da fama pública para levarem ás últimas consequências a aplicação dos preceitos espirituais e políticos defendidos por sua instituição. Na ausência de estabilidade sociopolítica, como acontecia na Itália centro-setentrional, os fardes pregadores despontaram como o canal de coesão dos mais variados anseios de paz (p. 132).
O quarto e último capítulo é dedicado a investigar o alcance social do vocabulário empregado pelos hagiógrafos. Em outras palavras, a efetivação concreta dos conteúdos semânticos dos termos empregados. Entender a gramática sociomoral dos hagiógrafos significa transcender os textos e atingir o cerne do pensamento mendicante. As hagiografias oferecem pequenos exemplos, passagens furtivas de exemplos de governo.
Pensando pelo lado moral com que arquitetavam a vida civil, é possível relacionar os preceitos de governança, presentes no costumeiro da ordem, com um suposto preceituário politico mendicante. De imediato, convém ter presente que governar, segundo os textos hagiográficos estudados, é exercer o poder sobre alguém e, mais do que isso, é assegurar ao grupo aquilo que é conveniente para sua manutenção (p. 162).
André Miatello oferece ao longo das páginas de seu livro uma inestimável contribuição para repensar a História Politica e Social de um dos agentes mais conhecidos do Ocidente medieval. As palavras que compõe o livro revelam toda a preocupação de dessacralizar à imagem da Ordem e voltar à atenção para o zelo pastoral e o projeto de moralização das cidades e das politicas urbanas italianas. Para finalizar penso que nada melhor do que as palavras do próprio autor:
No jogo do poder, que acontecia no campo da política cívica , as Vidas de santos e seu respectivo culto ocuparam um lugar de tão grande eminência que todos aqueles que podiam, papa, bispos, frades, cidades, aproveitaram-se deles para sedimentar a própria força politica e, com isso, manterem e expandirem a sua dominação, ideológica ou concreta (p. 177).
Notas
1. A Ordem recebe esta designação em virtude do posicionamento dos frades frente à autoridade papal: em nenhum momento, frei Francisco e seus seguidores se voltaram contra a figura do papa. Mesmo adotando uma postura de “revitalização” da fé cristã, sempre se colocaram hierarquicamente abaixo aos membros da Cúria Romana. Sua postura os define como menores, ou simplesmente, minoritas.
2. MAROTO, Daniel de Pablo. Espiritualidad de la Baja Edad Media: siglos XIII-XV. Madri. Editorial de Espiritualidad, 2000, p. 17-18.
3. GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália Medieval. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
Douglas de Freitas Almeida Martins
MIATELLO, André Luis Pereira. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. Resenha de: MARTINS, Douglas de Freitas Almeida. Cantareira. Niterói, n.19, p. 79- 81, jul./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]