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Sangue de gelo | Orlando Paes Filho
Desde o século XIX a literatura vem tomando a História como locus privilegiado de inspiração. O denominado romance histórico sempre encontrou sucesso entre os leitores ávidos de aventuras, em detrimento de narrativas puramente fantasiosas, a exemplo da ficção científica. Mas essa aproximação entre história e literatura nem sempre rendeu bons frutos: “A literatura apropriou-se tanto dos fatos quanto dos personagens históricos, modificando-os de maneira a, muitas vezes, perpetuar falsas representações” (Campos 2005: 106) [1]. Nesta perspectiva, os romances envolvendo os escandinavos da Era Viking algumas vezes mantiveram estereótipos e em outras ocasiões refletiram uma boa reconstituição sócio-histórica. No primeiro caso, temos a narrativa Vikingaliv (de Vinje 1860), repleta de moralismos cristãos e preconceitos, enquanto The long journey (Johannes Jensen 1924), Gryningsfolket (Jan Fridegard 1944), The long ships (Frans G. Bengtsson 1941-1945) incluem-se no segundo caso: ótimas reconstituições, unindo qualidade narrativa com as pesquisas acadêmicas disponíveis no período (Mjöberg 1980: 237-238; Lönnroth 1999: 247-249).
No primeiro caso, também podemos incluir o novo romance de tema nórdico do escritor Orlando Paes Filho, Sangue de gelo. Nesta obra, são narradas as aventuras da personagem Seawulf Yatlansson num período anterior ao romance Angus, o primeiro guerreiro. O escandinavo é convocado para resgatar a filha de um rei, capturada por um traficante de escravos, sob ordens do danês Ivar, o sem-ossos, durante o ano de 843 d.C. O estilo narrativo de Orlando Paes Filho não evoluiu em nada desde o primeiro romance publicado em 2003, com descrições de batalha, situações cotidianas, conflitos e rivalidades entre os nórdicos, que em muitos momentos tornam-se cansativas e até enfadonhas. A estrutura geral do livro é dividida entre o romance (p. 13 a 158), seguido de um anexo e de muitas ilustrações (p. 159 a 253), aqui residindo um dos seus primeiros pontos fracos: mesmo para os fãs da série, ele mostra-se decepcionante, visto que entre as 253 páginas do livro, somente 88 páginas de texto são dedicadas à narrativa romanceada em si. Para os leitores que já possuem Angus, o primeiro guerreiro, os livros Vikings e Artur da coleção universo Angus, a decepção é ainda maior: praticamente todas as ilustrações de Sangue de gelo são repetidas destas três edições. O autor parece não estar interessado numa obra qualitativa e sim, em muito lucro e expansão comercial de seu produto. Isso é nítido quando analisamos a obra de um ponto de vista acadêmico.
Na contra-capa, Paes afirma que este romance em questão foi produto de uma longa pesquisa: “Ao longo desses anos, Orlando trabalhou incessantemente na pesquisa histórica e religiosa”. Mas os erros textuais e iconográficos apontam para uma outra conclusão. Por exemplo, na descrição do guerreiro chamado Hagarth, este aparece portando “um machado duplo nas mãos” (p. 25). Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em armamentos medievais sabe que os nórdicos empregavam somente machados de uma lâmina, ao qual o próprio escritor faz referência em ilustração do anexo (p. 240). Esse dado pode ser obtido mesmo em publicações traduzidas ao português (como Graham-Campbell 1997: 54; para maiores detalhes ver Griffith 1995: 176-177). Infelizmente, o imaginário artístico é que tratou de popularizar o estereótipo do imenso guerreiro Viking portando machados de dois gumes descomunais – vide a ilustração Duelo entre Seawulf e Wulfgar (Paes Filho 2003: 35) e Ataque surpresa (idem: 340).
Outro estereótipo é a suposta presença de uma bússola magnética primitiva entre os escandinavos, a exemplo da popularizada pelo filme Vikings, os conquistadores, de 1958: “Seawulf confirmou a rota, consultando sua pedra mágica. Se um pedaço de ferro fosse nela esfregado, ele apontaria para o norte” (p. 70). Na realidade, a Arqueologia nunca confirmou este tipo de material e sim, de uma bússola solar (gnômon), que seria um disco de madeira cujo ângulo da sombra determinaria a latitude e o norte geográfico. Vestígios deste equipamento foram descobertos nos anos 1960 na Groelândia e mais recentemente no Báltico, e reconstituições imagéticas podem ser vislumbradas no Brasil até mesmo em ilustrações de livros paradidáticos (como Brochard 1996: 47).
Alguns erros históricos também estão presentes no romance. Na descrição da alimentação durante as travessias marítimas, estas são basicamente mingau de aveia (p. 101). Na realidade, este era um alimento específico para a vida cotidiana em terra, durante todo o ano (Graham-Campbell 2001: 123-124) e que não era útil para a vida no mar, visto que a umidade poderia facilmente estragá-lo: “a vida a bordo, eu já comentei, não devia ser fácil, em particular no caso de grandes travessias. A comida – peixe seco, carne seca e salgada, manteiga salgada, algas secas, pão torrado, reserva de água potável – era escassa” (Boyer 2000: 117).
Algumas terminologias estão equivocadas como: “uma armada de nórdicos poderia ser facilmente confundida com uma frota de daneses” (p. 91). Na realidade, tanto dinamarqueses (na Era Viking: Danes, Heruls), quanto suecos (Gottar, Svear) e noruegueses (Raumariki, Granii, Aetelrugi, Arothi e Raumi) são indistintamente povos nórdicos (Haywood 1995: 25).
Alguns erros com imagens sugerem uma edição publicada com muita pressa e sem nenhum critério de revisão. Por exemplo, as notas 32, 33, 34, 40 e 41 (referindo-se às ilhas bálticas de Öland e Gotland) remetem ao mapa inserido na página 164 (que contém apenas a Dinamarca e sul da Suécia), mas na realidade, o correto seria os mapas das páginas 167 e 168 (com detalhes do Báltico sueco).
Outro erro, muito pior se levarmos em conta a credibilidade do leitor e fã da série, é a utilização da mesma imagem para diferentes cidades nórdicas. Entre as páginas 112- 113, a ilustração refere-se à“cidade mercantil de Paviken” (situada no oeste de Gotland), e na página 244, a mesma ilustração (em tamanho diminuído) é descrita como “cidade de Dublin” (capital da Irlanda). A imagem foi anteriormente utilizada também nos livros Angus: o primeiro guerreiro (p. 252) e Vikings (Universo Angus, p. 29) para representar Dublin. Para uma análise crítica dos erros da representação desta cidade viking pela equipe do livro, consultar Langer (2006a).
Desta maneira, o ponto mais fraco do livro acaba sendo mesmo as imagens. Entre as poucas ilustrações inéditas inseridas no romance, encontramos a proliferação de estereótipos criados durante o século XIX: Odin (p. 14), apresenta a divindade nórdica com uma estética advinda das óperas germânicas, com um machado de guerra imenso (o correto seria uma lança), cota de malha, um capacete com asas laterais (outra fantasia oitocentista) e pior, com os dois olhos intactos (ele perdeu um segundo as Eddas); a ilustração Jovem Seawulf (p. 36) repete a fantasia do capacete com asas, assim como a do deus Thór (p. 182). A fraca inspiração e qualidade artística da equipe de ilustradores é demonstrada pela reutilização de imagens clássicas: Guerreiros vikings (p. 50), repete fielmente a pintura de N. Wyeth The first Cargo, de 1910, mas deixando os guerreiros do primeiro plano com cabelos loiros. Trata-se de uma representação também estereotipada, principalmente pelo uso dos capacetes com chifres, algo totalmente em desuso na arte contemporânea com temática escandinava e, de maneira muito estranha, incluída em uma obra que se diz realizada após “anos de pesquisa”.[2] Em outra ilustração (Funeral de Thorsfastr, p. 44) percebemos um plágio de má qualidade da pintura The Viking funeral, do britânico Franck Dicksee, 1893. Aliás, no primeiro volume da série Angus, esta mesma imagem recebeu o título de Funeral de Wulfgar (p. 40), mostrando um reaproveitamento iconográfico também para outras ilustrações: Chegada de Seawulf em Cait (p. 27, em Angus), tornou-se Batalha contra vikings daneses (p. 83, em Sangue de gelo); Armada de Seawulf (p. 28) transforma-se em Desembarque em Öland (p. 98); Sítio de York (p. 90), torna-se Batalha contra Ivar (p. 140); Ataque a Cait (p. 30), é rebatizada de Batalha contra saxões (p. 32); Armada de Angus (p. 272) vira Rothger lidera o desembarque (p. 136). Economia de artistas gráficos? Ou um recurso para diminuir despesas e ter mais lucro?
Acreditamos que a literatura possui grande importância para a divulgação dos estudos acadêmicos: “os romances têm o poder de provocar nos leitores o interesse e a busca por uma perspectiva científica dos fatos históricos” (Campos 2005: 106). Mas esse não é o caso de Sangue de gelo e da coleção Angus [3], que procura através de uma linguagem e pesquisa medíocre atrair somente o interesse de adolescentes fãs de RPG, perpetuando estereótipos e falsas imagens sobre Idade Média. Nosso país merece a tradução de romances sobre nórdicos medievais com maior qualidade literária, como as séries do espanhol Manuel Velasco e do sueco Frans Bengtsson, além do recente O último reino, de Bernard Cornwell (publicado no Brasil pela Record), que com certeza vão ampliar muito mais o conhecimento dos interessados na fascinante Era Viking.
Notas
1. Mas as fronteiras entre história e literatura são muito nítidas, sendo a primeira uma ciência e a segunda uma forma de manifestação artística: “O historiador copia o que aconteceu; o poeta, o que poderia ter acontecido” (Teixeira 2004: 98); “Desde Aristóteles, história e ficção se avizinham, mas os compromissos de uma e outra são distintos. Da ficção, se espera o uso sistemático da imaginação, e, no caso do romance, em geral um compromisso com a verossimilhança; da história, se pretende a verdade” (Pimentel Pinto 2006: 98).
2. Para uma análise do estereótipo dos Vikings portando chifres, ver Langer (2002: 6-9, 2005: 89).
3. Para detalhes de outros erros históricos, anacronismos e estereótipos na coleção Angus, consultar Langer (2003: 67-70). Para uma análise dos referenciais de moralidade cristã do historiador Ricardo da Costa na obra paradidática Vikings (coleção Universo Angus), consultar Langer (2006a, 2006b).
Referências
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BROCHARD, Philippe & KRÄHENBÜL, Eddy. Os Vikings, senhores dos mares. São Paulo: Editora Augustus, 1996.
CAMPOS, Luciana de. Entre glórias muitas e grandes feitos de heróis. História Viva 23, 2005, p. 106.
CORNWELL, Bernard. O último reino (Primeiro volume da trilogia Crônicas Saxônicas). São Paulo: Editora Record, 2006.
GRAHAM-CAMPBELL, James. Os viquingues: origens da cultura escandinava, vol. I. Madrid: Del Prado, 1997.
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Johnni Langer – Pós-doutorando em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br
PAES FILHO, Orlando. Sangue de gelo (Coleção Angus Saga). São Paulo: Prestígio editorial, 2006. Resenha de: LANGER, Johnni. A Volta do Romance Viking à Brasileira. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 125-128, 2006. Acessar publicação original [DR]