Uma nova história do novo cinema português – CUNHA (LH)

CUNHA, Paulo, Uma nova história do novo cinema português. Lisboa: Outro Modo Cooperativa Cultural, 2018, 254 pp. Resenha de: SAMPAIO, Sofia. Ler História, v.73, p.266-270, 2018.

1 A história do cinema português esteve, durante muitos anos, a cargo de investigadores com ligações próximas ao sector cinematográfico. A “história” que contavam era, frequentemente, parte integrante (e necessariamente selectiva) de uma história pessoal, motivada por interesses conjunturais nem sempre claros ou declarados. Talvez por se reportar a um período relativamente recente cujos principais protagonistas ocupam ainda posições públicas de relevo (no plano simbólico ou mesmo prático), o chamado “novo cinema português” é um capítulo particularmente nebuloso dessa história. O seu estudo tem repercussões que ultrapassam o âmbito de um período (ou “movimento”), fazendo-se sentir nos alicerces desse edifício em construção que é a historiografia do cinema português – ou, se quisermos ser mais rigorosos, a historiografia do cinema feito, visto e vivido em Portugal.

2 É este o importante e lúcido ponto de partida deste livro, uma versão abreviada da tese de doutoramento defendida pelo historiador Paulo Cunha, em 2014,1 que se propõe, como o título anuncia, a contar “uma nova história” desse período e, como a introdução acrescenta, a “desenvolver um novo olhar sobre a história do cinema em Portugal” (p. 11). O que enforma este “novo olhar” é a atenção a novos objectos e a novas problemáticas, tais como: géneros e formatos que têm sido desconsiderados (“o filme turístico, a publicidade, o filme industrial, o filme cultural, o jornal de actualidades, entre outros” – p. 11); relações económicas e sociais (distribuição, exibição, recepção) que o viés fílmico e textual da maior parte dos estudos tem feito ignorar; perspectivas internacionais e transnacionais, que uma preocupação excessiva com questões e temáticas nacionais, aliada a uma espécie de nacionalismo metodológico, tem empurrado para fora dos radares dos investigadores.

3 A história que aqui se conta começa por ser diferente nas balizas cronológicas (invulgarmente dilatadas) que adopta: 1949, data da saída de António Ferro do Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura, e 1980, data da remodelação da Cinemateca. A justificá-lo está o enfoque nas políticas públicas que nesses anos foram gizadas para o cinema, um enfoque que vem acompanhado da tese de que o “desinvestimento estatal no fenómeno cinematográfico” abriu caminho para “uma mudança de paradigma na produção e recepção de cinema em Portugal” (p. 13). Adoptando uma perspectiva alargada atenta a “transformações estruturais” (p. 73), o autor vê, no centro desta mudança, a instalação de um novo “modo de produção”, apresentado desde cedo como o conceito-chave (p. 11) deste trabalho.

4 O livro divide-se em três partes: na primeira, “Histórias da história do cinema português”, o autor aborda questões historiográficas e de constituição do objecto de estudo, diagnosticando problemas e sugerindo alternativas; na segunda parte, “O Estado e o cinema em Portugal: Que políticas públicas? (1949-1980)” – a mais longa do livro – mergulhamos numa análise, sustentada em várias fontes, das políticas públicas que moldaram a relação entre o Estado e o cinema no período em causa; na última parte, “O que foi o Novo cinema português?”, que conta com apenas dez páginas, o autor retoma argumentos, para concluir que os cineastas e prosélitos do “Novo cinema português” desempenharam um papel central na definição de “uma ideia de cinema português” que acabou por se traduzir numa “efectiva política cultural do Estado português” (p. 226) que permaneceu dominante até aos nossos dias.

5 Talvez não seja de surpreender que uma parte importante deste estudo se dedique à análise da “construção crítica” (p. 30) do novo cinema português, ocorrida antes, durante e depois dos ‘factos’, à qual se vêm juntar discursos institucionais, jornalísticos e memorialísticos. É-nos mapeado um campo de posições que disputam o significado do “novo cinema” em torno de noções como alteridadejuventuderenovação e oposição (política e/ou estética). Parte da contenda diz respeito à escolha do nome, sobressaindo duas opções: novo cinema português, considerado “mais geral” (p. 49), e cinema novo português, que o procura alinhar com movimentos cinematográficos coevos, como o Cinema Novo brasileiro. A preferência do autor recai sobre a primeira designação, ainda que com uma grafia pouco usual (“Novo cinema português”), que nunca é justificada. A importância desta discussão reside não tanto nos argumentos esgrimidos para cada opção (que caem por terra quando constatamos que, na prática, as duas expressões tendem a confundir-se), como no facto de conseguir dar relevo ao carácter essencialmente construído deste objecto, que nos chega sob a forma de uma “grande narrativa” (p. 73) “oficial” (pp. 12, 38, 50) que as instituições-chave do cinema em Portugal – a Cinemateca, o Instituto Português do Cinema, a Rádio Televisão Portuguesa (RTP) e a Escola Superior de Cinema – lograram tecer e consolidar, tendo como principal objectivo a consagração de um determinado cinema (português) nos meios cinematográficos internacionais mais prestigiados.

6 É neste ponto que nos deparamos com uma contradição fulcral e de difícil resolução. Se, por um lado, o autor se procura afastar de um conceito unitário de “novo cinema português”, nisso convergindo com cineastas que viram nessa etiqueta “uma unidade que nunca existiu” (p. 43), por outro lado, o uso reificado que faz da designação “Novo cinema português” ameaça contaminar a proposta teórico-metodológica que nos está a oferecer. São vários os momentos em que o autor insiste numa definição de “Novo cinema português” mais ampla (de cariz temporal), colando-a a realidades plurais e heterogéneas cujo denominador comum é a “renovação” (ex. pp. 58; 59; 228). No entanto, as dificuldades são manifestas: como escapar, como o autor pretende (p. 58), a um corpus de filmes e a um cânone de autores associados ao “Novo cinema português” se o objecto de análise continua a ter esse nome? Como tratar o novo cinema português simultaneamente como um discurso dominante e uma entidade histórica plural e difusa?

7 Esta contradição é reveladora do curto-circuito que, na prática, se faz ainda sentir – apesar das intenções do autor e dos seus esforços em contrário – entre uma abordagem que se pretende ultrapassar, devedora da história da arte e assente na periodização e identificação de movimentos estéticos, e o tipo de abordagem histórica e materialista que se pretende promover e aprofundar. Trata-se, de certo modo, de uma contradição típica de um estudo de transição, que escolhe enveredar por caminhos novos sem uma rede de apoio de trabalhos teóricos e empíricos consistentes, pela simples razão de que não existem (pelo menos, em Portugal).2 Como o autor reconhece, “a petite histoire do cinema português ainda está por fazer” (p. 61). Esta ausência faz-se sentir ao longo do livro – por exemplo, para corroborar a tese de que a narrativa sobre o “Novo cinema Português” foi “imposta”, uma vez que o autor não deixa de chamar a atenção para as incoerências que marcaram a relação entre os profissionais de cinema e o Estado (pp. 153-159), em parte proporcionadas pelo tipo de “relações pessoais e institucionais” intrincadas que existiam (pp. 158, 232). A ausência da pequena história também se faz sentir a um nível mais geral, já que só ela permite contrariar a apetência pelas grandes narrativas que tem dominado a historiografia do cinema português, e da qual esta obra não parece estar completamente isenta.

8 É certo que o autor faz um trabalho notável de desconstrução da “narrativa-mestra” (p. 12) do novo cinema português, sublinhando a forma como ignorou factos (como a produção de curtas metragens no chamado “ano zero”), produziu dogmas (como a comparação dos anos 50 a uma espécie de “idade das trevas” – p. 87) e subestimou influências (como o neo-realismo italiano – pp. 102-103). No entanto, também o autor acaba por se inserir nessa narrativa, a fim de poder tomar partido sobre questões (sem dúvida importantes) que lhe estão subjacentes. Isto é sobretudo visível na última parte do livro, na qual a questão “do que foi o Novo cinema português” se vê inesperadamente transformada na questão “do que é” (ou continua a ser) o “Novo cinema português”. É como se, depois de relatar os efeitos, na história, da “grande narrativa”, o autor não conseguisse resistir ao seu poder de atracção.

9 Uma das principais características das “grandes narrativas” é a capacidade que possuem de omitir ou neutralizar elementos de difícil incorporação, frequentemente reduzidos ao estatuto de ‘excepções que confirmam a regra’. O objectivo é preservar a linearidade da narrativa, que se apresenta como completa e única. Pelo contrário, algumas das mais recentes abordagens historiográficas e materialistas ao cinema têm explorado alternativas que valorizam as contradições. Mais do que substituir uma narrativa por outra, estas abordagens pretendem rejeitar os princípios de linearidade, causalidade e unicidade que estão na base das grandes narrativas sobre o cinema, de modo a encorajar o aparecimento de histórias paralelas, descontínuas e cruzadas, que preservam (ao invés de mitigarem) o carácter multifacetado e intrinsecamente complexo do objecto ‘cinema’.3

10 Em suma, Uma nova história do novo cinema português é uma obra importante, que deve ser lida e dada a ler a vários públicos, como a escolha da editora faz, de resto, antecipar. Edições futuras poderão beneficiar de uma revisão atenta: foram detectadas gralhas, redundâncias, falhas na referenciação bibliográfica, bem como elipses e incoerências que atrapalham a leitura, provavelmente decorrentes do trabalho de reformulação de uma tese num livro. Há também hesitações entre as grafias pré- e pós-acordo ortográfico que, por serem cada vez mais frequentes na esfera editorial, já quase as tomamos como aceitáveis. São problemas de fácil correcção que não diminuem o valor deste estudo, que merece a atenção de todos os que investigam e leccionam estas matérias. Paulo Cunha é um dos investigadores mais activos nesta área e um dos exemplos mais notáveis daquilo que ele próprio designa por “produção historiográfica independente” (p. 60), que urge desenvolver e impulsionar no nosso país.

11 Na base deste tipo de produção está um conjunto de reorientações teóricas e metodológicas importantes, que incluem: a revisitação de fontes directas conhecidas (escritas e orais); a incorporação de objectos negligenciados; a valorização de arquivos privados e de âmbito local; a compilação e interpretação de indicadores económicos dispersos; o resgate do cinema de domínios puramente discursivos, textuais, estilísticos e estéticos; a abertura a outras disciplinas, no sentido de uma história social do cinema (p. 18); a integração de perspectivas internacionais; a valorização de micro- e meso-análises (mormente, através da pequena história), cuja ausência ou fragilidade compromete a elaboração, também ela importante, de macro-análises. Acrescentaria que, para singrar, este impulso de renovação terá que se fazer acompanhar de um esforço de teorização e reconceptualização, em linha com o que de melhor se tem feito lá fora. Como o estudo aqui recenseado demonstra, as possibilidades de pesquisa nesta área sob estas orientações são inesgotáveis e verdadeiramente estimulantes.

Notas

1 Paulo Cunha, O Novo Cinema Português: Políticas Públicas e Modos de Produção (1949-1980). Coimbra: (…)

2 Os poucos que existem são referidos, tal como o trabalho de José Filipe Costa sobre as políticas de (…)

3 Veja-se, por exemplo, Thomas Elseasser, Film History as Media Archaeology. Amesterdam: Amsterdam Un (…)

Sofia Sampaio – CRIA, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Email: psrss@iscte-iul.pt.

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O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985 – MARTINS (LH)

MARTINS, Paulo Miguel, O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985. [Lisboa]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011. 318 pp. Resenha de: SAMPAIO, Sofia. Ler História, n.62, p. 199-206, 2012.

1 O documentário industrial tem suscitado pouco interesse como objeto de estudo académico. É conhecida a tendência, nos estudos de cinema, para privilegiar o filme de ficção – e, consequentemente, a longa-metragem – a par de modelos de análise autorais assentes na ideia do realizador como génio criador e do filme como obra de arte. Os resultados dessa tendência têm sido, por um lado, a constituição de um cânone de filmes e autores e, por outro, a bifurcação disciplinar (que, no mundo anglo-saxónico, se traduz na divisão entre film studies e film history) entre abordagens textuais, que sob a influência dos estudos literários sublinham as propriedades internas dos filmes, e abordagens contextuais, que procuram produzir uma história do cinema entendida quer como história das tecnologias e das técnicas cinematográficas quer como história dos autores e dos movimentos artísticos. De fora ou nas margens, ficam os filmes de não ficção, de curta e média metragem que, paradoxalmente, representam a maior fatia da produção cinematográfica mundial.

2 A partir de finais da década de 80, este cenário começou a mudar. A problematização do conceito de cânone e das conceções exclusivamente autorais do cinema (em parte, sob o impulso dos estudos culturais), veio permitir que uma série de filmes de «utilidade» – entre os quais os filmes industriais – fossem resgatados ao esquecimento. Igualmente importante foi o trabalho de preservação de filmes e organização de arquivos, que encontrou em tecnologias como a digitalização e a internet um renovado impulso. Na década de 90, cresceu o interesse pelos filmes «efémeros» (publicitários, educativos, industriais e amadores) e «órfãos» (i.e. filmes de arquivo não identificados ou negligenciados), dando origem a uma área de investigação que começou por ser marginal, mas que hoje é amplamente reconhecida: a título de exemplo, o congresso de 2012 da revista Screen foi dedicado aos «outros filmes» (um termo que não deixa de evocar a importância que o cânone continua a ter). Entre nós, a Cinemateca Portuguesa tem incluído na sua programação documentários não-ficcionais de curta e média duração, nomeadamente na rubrica regular «Abrir os Cofres».

3 É neste contexto que o livro de Paulo Miguel Martins deve ser lido. De cariz essencialmente informativo, o volume reúne, pela primeira vez, alguns dos dados mais importantes sobre os filmes industriais produzidos em Portugal entre o período de 1933 a 1985 – i.e. entre o início do Estado Novo (que coincidiu com a criação da Tobis Portuguesa) e a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Como fontes primárias, Martins recorreu ao Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), aos arquivos da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional, bem como ao testemunho oral de realizadores e técnicos envolvidos na produção de alguns destes filmes.

4 O estudo divide-se em cinco secções ou capítulos, não numerados, mas que passo a enumerar por motivos de clareza. São eles: (1) «o filme como fonte histórica», em que o autor defende a importância dos filmes industriais como documentos históricos; (2) «traços gerais da história do cinema português», cujo propósito é «situar e contextualizar em traços gerais os documentários realizados em Portugal no conjunto da produção cinematográfica do País» (p. 47); (3) «o cinema documentário em Portugal», que faz uma introdução geral à história do documentário (não apenas em Portugal, como o título indica, mas no contexto internacional), terminando com uma subsecção sobre o documentário industrial; (4) «o documentário industrial português nas palavras dos próprios autores», em que o filme industrial português é analisado a partir dos dados compilados (alguns já referidos) e das entrevistas que o autor realizou a técnicos e realizadores; (5) por fim, «os filmes em análise», onde são discutidos cinco filmes industriais, nomeadamente: Bodas de Ouro da Empresa Fabril do Norte (1957); O Pão (1959/ 1964); Trabalho de um Povo (1959-1960); As Palavras e os Fios (1962); e Um Homem – Uma Obra (1971).

5 O ponto de partida desta investigação é uma conceção do cinema como «fonte de conhecimento» da realidade social (p. 9) e, consequentemente, «fonte de acesso ao passado» (pp. 14, 32, 34). Martins afirma em vários momentos que este acesso é sempre um acesso mediado (pp. 20, 30, 33, 186), mas isso não o impede de descrever o documentário, em geral, como um «retrato da realidade» (pp. 14, 17) e o documentário industrial, em particular, como um «retrato económico, sociológico e cultural das empresas» (p. 15) e, por extensão, da realidade socioeconómica do país numa determinada época (p. 9). Do mesmo modo, apesar de reconhecer que o passado é sempre apreendido através do presente (p. 21), o autor atribui aos filmes (e aos documentários industriais em particular) um valor histórico intrínseco, que os coloca ao nível de outros documentos históricos e que lhes confere um papel central no processo de formação de uma memória coletiva.

6 Na segunda secção, Martins elabora um panorama geral da história do cinema em Portugal, década a década, desde as suas origens até 1985. Num registo predominantemente descritivo, são-nos oferecidos elementos sobre a formação e evolução do campo cinematográfico português: a rápida ascensão e falência de empresas de produção e distribuição (o que revela a extrema volatilidade do meio); a natureza e o número das salas de exibição; as revistas de divulgação especializadas; os jornais de atualidades; os principais realizadores e os seus filmes; a criação de legislação e de instituições de apoio (estatais e privadas); os prémios e os festivais de cinema. São muitas e preciosas as informações recolhidas e apresentadas; no entanto, o pendor generalista e a proliferação de pormenores (que não distingue entre o que é e o que não é diretamente pertinente para o tema) impedem o aprofundamento das questões relativas ao documentário industrial, que aparecem dispersas, sem o destaque e o tratamento que merecem. A título de exemplo, a análise comparativa do número de salas em Lisboa, Porto, Madrid e Milão, nas décadas de 1910, 1920 e 1930 (pp. 62-64) apresenta dados que são interessantes por si só, mas cujo contributo para o tópico da investigação não é claro. Por outro lado, temas como a relação do documentário com a Campanha Nacional de Educação de Adultos, a organização de festivais temáticos (pp. 95-96), os dois Planos de Fomento e o II Congresso dos Economistas e da Indústria Portuguesa (pp. 81-82) justificariam maior desenvolvimento. Dizer que os dois últimos se mostraram favoráveis ao documentário industrial, sem uma análise mais detalhada, parece-me simultaneamente óbvio e pouco elucidativo. No geral, a secção cumpre a função de contextualização; no entanto, a síntese que apresenta acaba por reproduzir uma série de ideias feitas que carecem de adequada fundamentação empírica, bibliográfica e/ou teórica (é o caso da ideia de «divórcio» entre o cinema português e o público, ou da noção de que os fundos europeus para o cinema «nem sempre foram aproveitados», p. 104).

7 O capítulo seguinte prossegue no mesmo registo, repetindo muito do que foi dito, agora a propósito do género documentário, que o autor insiste ser uma «fonte de conhecimento e informação» (pp. 107, 119). Na última parte, a subsecção intitulada «documentários industriais», é finalmente definido o âmbito da investigação, nomeadamente: os documentários industriais do período sonoro (entre 1933 e 1985) com uma duração de 6 a 20 minutos, incluindo filmes sobre artesanato, mas excluindo filmes sobre o contexto colonial, tendo sido identificados um total de trezentos e dez filmes (pp. 120-121). Munindo-se de elementos predominantemente quantitativos, Martins discute os anos de maior produção de filmes industriais, as empresas cinematográficas e os realizadores mais prolíferos, assim como as indústrias mais retratadas (classificadas por atividade económica). A quantidade de informação reunida e disponibilizada impressiona pela positiva. A análise, porém, fica aquém das expectativas, sendo notória a inclinação para se estabelecerem correspondências diretas entre tendências económicas e os filmes produzidos – como quando se conclui que «há uma forte relação entre as empresas mais representadas em determinada década e o género de atividade económica sobre a qual mais se investia nessa altura» (p. 140). Um dos exemplos que o autor dá – a incidência de documentários sobre as indústrias vidreiras e cimenteiras na década de 40, uma época de grandes obras públicas (p. 134) – não convence. Este número corresponde apenas a cinco filmes em dez anos, tendo sido largamente ultrapassado na década de 60. Para além do desenvolvimento económico setorial, haveria que considerar outros fatores, tais como a dinâmica das próprias empresas e desenvolvimentos ao nível do campo cinematográfico.

8 Estes aspetos acabam por emergir nas duas últimas secções que constituem (juntamente com a subsecção que as precede) a parte mais importante e original deste estudo. Com a entrevista a doze realizadores e técnicos e a análise de cinco filmes, o autor acede a um nível de análise que lhe permite, por exemplo, corrigir afirmações generalizantes (p. 179). Entramos no domínio das relações entre cineastas (produtores e realizadores), as entidades estatais e privadas que encomendavam os filmes e os organismos supervisores, e eventualmente controladores, como o SNI. Baseando-se nas entrevistas que realizou (cujo guião nos é fornecido, em anexo), Martins caracteriza os diferentes processos de encomenda, os objetivos das empresas/instituições contratantes, os modos de produção (duração do processo, margem de manobra criativa, seleção da equipa e acesso ao equipamento) e algumas questões de foro laboral (contratação, orçamentos, carreiras profissionais). O último capítulo retoma e, nalguns casos aprofunda, esta caracterização. Com o auxílio de uma grelha de análise (que consta do anexo) e recorrendo pontualmente às entrevistas para ilustrar um ou outro pormenor, o autor discute cinco documentários industriais em relação a cada um dos seguintes parâmetros: recursos estéticos e técnicos mobilizados; contexto; objetivos; significado e impacto causado (p. 188). Este nível de análise consegue colocar em evidência a variedade que caracteriza o documentário industrial (designadamente, no que diz respeito a objetivos, estética, circuitos de distribuição e exibição). Um dos estudos de casos – o documentário Trabalho de um Povo (1959-60), uma encomenda do SNI e da Inspeção Superior do Plano de Fomento que visava a divulgação do II Plano de Fomento Nacional – vem demonstrar a importância de fazer acompanhar as análises de conteúdo dos filmes com outros documentos históricos. Através do material consultado (disponibilizado nos anexos) – que inclui o contrato firmado entre o SNI e o produtor, a correspondência oficial entre os principais intervenientes, o guião anotado por um dos inspetores do Plano de Fomento, e o registo do percurso de exibição do filme – o autor consegue retirar conclusões mais sustentadas e, consequentemente, mais convincentes. A análise comparativa entre o guião do filme e os comentários do responsável pela encomenda revela-se particularmente útil na difícil tarefa que é compreender de que forma fatores como a entidade contratante e os constrangimentos orçamentais interferem na composição final de um filme.

9 O Cinema em Portugal é um estudo de cariz essencialmente informativo que tem o mérito de reunir, pela primeira vez e num único volume, dados sobre o documentário industrial que, para além de escassos, têm estado dispersos e fora do alcance dos investigadores. É de louvar o esforço, inédito no nosso país, de levantamento e inventariação do filme industrial, que faz desta obra uma referência obrigatória para investigações futuras. Porém, a tendência para pormenores irrelevantes, para a repetição (frequentemente sinalizada pelo autor – cf. p. 114, p. 115) e, em menor grau, para a duplicação de dados (o quadro nº 17 é repetido no anexo B.1. – pp. 148 e 250), sugere que o texto teria beneficiado de uma revisão mais atenta. Do ponto de vista analítico, teria sido mais frutífero (para a investigação) e estimulante (para a leitura) um envolvimento mais direto, desde as primeiras páginas, com o tópico de análise. É dececionante verificar que as partes mais importantes do livro – a subsecção sobre o documentário industrial e as duas últimas secções – representam apenas um terço (pp. 120-221) da totalidade das páginas. Do mesmo modo, o nivelamento de diferentes camadas de informação faz com que alguns dos contributos mais valiosos não tenham a força e o destaque que mereciam.

10 Se o livro é forte em conteúdo informativo, é consideravelmente mais fraco em termos teóricos e analíticos. A escolha dos cinco documentários a analisar reflete problemas deste tipo. O corpus de análise, que inclui filmes posteriores a 1957 e anteriores a 1971, deixa de fora grande parte do período em estudo. A justificação do autor – que os autores destes filmes eram vivos à data, podendo ser entrevistados – é pouco convincente, até porque, não obstante o título da penúltima secção, são poucas «as palavras dos próprios autores» a que temos acesso (e quando temos, pouco acrescentam ao que vem sendo dito). Não há dúvida que o critério decisivo foi um critério artístico, e não histórico: todos os filmes foram escolhidos por serem «documentários indicados pelos próprios cineastas e críticos do cinema como os mais representativos de diferentes décadas e de diferentes realizadores» (p. 185). Daí a exclusão do trabalho de Maria Luísa Bívar, a realizadora que mais documentários industriais produziu, mas que Martins não considera um caso paradigmático (p. 149). Daí, também, outros enfoques analíticos: o papel que os documentários industriais desempenharam como terreno de experimentação para os cineastas do «novo cinema»; a importância atribuída (sobretudo na primeira parte) às salas de cinema convencionais, em detrimento de outros públicos e circuitos de exibição (ex. Casas do Povo, cineclubes, escolas, sanatórios, igrejas, as próprias empresas, que Martins, de resto, refere, mas não desenvolve – pp. 89-90, 126, 206); e a sobrevalorização de dois dos muitos usos a que o filme industrial se prestava, nomeadamente, o prestígio e a construção de uma memória coletiva, cujas ramificações e implicações sociais não são suficientemente exploradas.

11 Apesar de proclamar o filme industrial como uma fonte histórica e de acesso à realidade, Martins acaba por abraçar uma visão estetizante do filme industrial, que radica na noção (tendencialmente a-histórica) do cinema como arte. Esta é, aliás, a surpreendente conclusão que o autor retira no final da quarta secção – que «o cinema é uma arte» (p. 183) – uma secção que, pelo contrário, colocara em evidência as densas relações sociais – pessoais e profissionais; materiais e simbólicas; formais e informais – que tornaram possível a produção destes filmes. Contrariando a tendência teórica dos estudos mais recentes sobre o filme industrial, o autor acaba por convergir com perspetivas autorais que tendem a valorizar o documentário industrial pelo seu contributo, sobretudo ao nível formal, para o cânone ficcional, ou a ver em alguns destes filmes os contornos de um novo cânone (em ambos os casos, a grande referência de Martins é, sem dúvida, o «novo cinema» dos anos 50 e 60).

12 Na base destas opções e confusões teóricas está também um entendimento pouco sofisticado da relação entre cinema e história, arte e realidade – um tema complexo que tem feito correr rios de tinta. A defesa do valor histórico dos filmes não é nenhuma novidade (esteve, por exemplo, na base da formação de instituições como as cinematecas e os arquivos de imagem), e é relativamente consensual. Mais difícil é aferir como é que este valor histórico se manifesta nos filmes: leituras simplistas, que procuram estabelecer correspondências diretas ou relações de causa-efeito entre os filmes e a realidade/ história, têm hoje pouca credibilidade. No entanto, Martins facilmente resvala para este tipo de leitura, por exemplo, quando pretende ver nos filmes analisados reflexos das políticas económicas vigentes (p. 192) ou, de forma mais geral, retratos de uma época. Não podemos esquecer que, para além de submetidos a uma ordem ficcional e narrativa (como qualquer filme), os documentários industriais são moldados por fins, se não abertamente publicitários, pelo menos manifestamente promocionais (daí o descrédito a que gerações de historiadores os tinham votado). Uma das formas mais interessantes de contornar este problema é através da atenção ao que não é incluído – as ausências e lacunas do filme, que Martins, a dada altura, também refere (p. 221), mas às quais não dá a devida importância nas suas análises.

13 Por fim, ao fazer coincidir «realidade» e «passado» (incorrendo num certo essencialismo), Martins tende para uma conceção do documentário industrial como um «lugar de memória» (p. 30). O que o documentário industrial foi, na sua época, confunde-se com o que o documentário industrial é, na nossa – segundo o autor, um garante de acesso, a cada visionamento, a um passado que ficou preservado em filme (p. 19). De um ponto de vista teórico, teria sido útil separar estes dois momentos de receção, a fim de preservar uma das características mais importantes do filme industrial: o seu profundo enraizamento no «presente». Como vários autores têm vindo a demonstrar (veja-se o trabalho de Vinzenz Hediger, Patrick Vonderau e Thomas Elsaesser), os filmes industriais foram produzidos para responder a necessidades específicas e imediatas, encontrando-se presos a determinada ocasião, objetivo e destinatário – a tríade AuftragAnlassAddressat1, que se sobrepõe ao autor, e que cabe ao investigador recuperar, identificar e teorizar. O Cinema em Portugal toca em muitos destes aspetos (o livro de Hediger e Vonderau é citado), mas não de forma aprofundada, sistemática e teoricamente consequente.

14 A questão do que estes filmes representam hoje, para nós, fica igualmente por equacionar. Martins concentra os seus esforços numa discussão relativamente longa (pp. 22- 30) sobre o cinema e a memória coletiva (estranhamente explicada à luz da memória individual), deixando de fora um problema, a meu ver, mais interessante: como compreender que, numa época como a nossa, descrita como pós-industrial, o filme industrial venha a despertar a atenção de críticos e espectadores? Ou seja, como compreender que, no contexto atual de pós-industrialização, a memória coletiva se venha a congregar em torno de uma memória industrial? Ao lançar as bases para a cartografia do que tem sido, até agora, um vasto «território não cartografado»2, não há dúvida de que o livro de Paulo Miguel Martins representa um bom ponto de partida para a resolução destas e de outras questões, sendo a sua leitura, também por esta razão, de recomendar

Notas

1 O termo é de Thomas Elsaesser, em ‘Archives and Archeologies: The Place of Non-Fiction Film in Cont (…)

2 A expressão é de Vinzenz Hediger e Patrick Vonderau, na introdução a Films that Work, p. 10.

Sofia SampaioInvestigadora de pós doutoramento do CRIA, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Pesquisa sobre a indústria cultural, o cinema, com enfoque nas questões do turismo. E-mail: psrss@iscte.pt

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