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Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba – SILVA (V-RIF)
SILVA, Wallace Lopes (Org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis/Fundação Biblioteca Nacional, 2015. Resenha de: SÁVIO, Nilton José Sales. É possível pensar o samba por meio da filosofia? Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.10, set, p.261-264, 2019.
E se pensássemos o samba por meio da filosofia? Uma análise possível? Bom, talvez estranharíamos um pouco, na medida em que parece não ser algo da alçada do pensamento filosófico como o conhecemos. Ora, provavelmente nunca diríamos algo desse gênero, se no lugar do samba estivesse a música erudita, por quê? Existiria um limite do que podemos ou não pensar filosoficamente? Alguns até argumentarão que seria possível, pouco provável, mas possível, estudar o samba, desde que fosse por meio da estética. E se quiséssemos mais? Ir mais longe? Pensar a ética pelo/no samba? Com certeza, isso não seria possível se ficássemos restritos a formação que a academia nos proporciona, aos sistemas que nos apresentam. Devemos nos questionar sobre esses sistemas: por que o grupo de autores não poderia ser expandido? Por que os temas não são ampliados? Por que temos dificuldade em encontrar uma filosofia legitimamente brasileira?
A obra organizada por Silva é precisamente uma resposta a esse modo de se fazer filosofia, que propõe considerar inclusive a forma como são construídos os sistemas, como as regras são dadas e de onde elas vêm. Ao longo dos seus onze capítulos, compostos por artigos de diversos autores, a filosofia afroperspectivista é apresentada, de forma dinâmica, séria e muito original, mesmo incômoda. Um projeto de alta magnitude como este é incômodo, não tem saída, por quê? Porque propõe repensar a forma como fazemos filosofia, indo até as origens: a filosofia é mesmo grega? A história é recomposta, o universal torna-se pluriverso, “o reconhecimento de várias possibilidades, de muitas perspectivas”1, não somente europeus, soma-se africanos, indígenas e povos ameríndios.
Por consequência, olhar o mundo por meio do afroperspectivismo, nos permite falar do samba, porque reivindica que todo o jogo seja revisto: o europeu dominava as regras, o árbitro, o campo e toda a torcida estava ao seu favor. Desse modo, continuaríamos blasfemando se cogitássemos uma filosofia brasileira, se olhássemos nossas particularidades e quiséssemos refletir sobre elas, não haveria espaço: o Brasil também é negro e indígena. Quando esquecemos isso nunca seremos originais, o jogo naquele universo é deles, entramos em campo derrotados, sem direito a questionarmos as instâncias superiores. Não obstante, e se buscássemos encontrar quem somos? Não com a intenção de que eles nos aprovassem – o que não mudaria o quadro, seria o mesmo jogo, as mesmas regras. Segundo esta compreensão, aparentemente acredita-se que a filosofia tradicional é excluída, pelo contrário, o pluriverso não a despreza, ele busca evidenciar a multiplicidade de perspectivas, de atores, de lugares de fala, isso inclui o pensamento europeu. Como demonstração é interessante observar as referências dos capítulos da obra: Nietzsche, Deleuze, Guattari, Lacan, dentre outros. A diferença é que nessa roda também são convidados: Molefi Asanti, Théophile Obenga, Mogobe Ramose, Maulana Karenga, dentre muitos outros. A partir desse panorama, seria enganoso crer que é procurada a supremacia desta filosofia, o mesmo quadro, apenas com regras novas, outro árbitro, campo e torcida. Não existe a intenção de centralização cultural, o próprio uso de uma bibliografia que inclui autores tradicionais serve como início da defesa.
Fatalmente, em torno dessa construção indenitária realizada pelo afroperspectivismo, as suspeitas são enormes, dado a dimensão dos preconceitos, as acusações serão variadas: falta de rigor e critérios, racismo às avessas, pseudofilosofia etc. Seria improfícuo responder a essas acusações, quando partem, na maioria das vezes, de um senso comum transvestido de ciência, critica-se antes de estudar, é um criticismo a priori. Por outro lado, muito proveitoso seria a dedicação à leitura da obra, pois o “rigor e critério” passam pela análise do contraditório, algo bem esquecido pelos “críticos a priori”: se embasam em informações gerais, no “ouvir falar”, sem sequer darem ao trabalho da leitura, do conhecimento da proposta, de seu estudo. O próprio receio – ou a acusação – acima referido, do estabelecimento de uma supremacia afroperspectivista, seria facilmente distanciado com a simples leitura.
Um dos primeiros aspectos que saltam aos olhos analisando a obra, consiste no enraizamento dos temas às vidas dos pesquisadores e pesquisadoras, sem que isso seja fator preponderante para suposta falta de “rigor e critério”. Todos e todas têm suas experiências com o samba, seja porque são frequentadores assíduos dos espaços onde ele é feito, seja ainda por uma vinculação afetiva. Ao contrário de ser um problema, indubitavelmente é uma virtude do trabalho.
Os onze capítulos da obra, em nossa concepção, podem ser divididos em dois grupos: I) fundamentos afroperspectivistas e do samba (capítulos de 1 a 4): nessa primeira parte os assuntos são mais extensos, abordam aspectos mais pluriversais da temática, procuram falar de origens, expondo ainda os fundamentos conceituais de toda a obra, a afroperspectividade; II) Rostos e vozes do samba (capítulos de 5 a 11): esta parte é mais restrita, na medida em que trata, em cada capítulo, de um/uma grande sambista, no qual procura-se aplicar, em análises muito originais, os conceitos e fundamentos expostos na primeira parte.
O primeiro capítulo intitulado Praças negras: territórios, rizomas e multiplicidade nas margens da Pequena África de Tia Ciata (Wallace Lopes Silva e Renato Noguera) considera o enraizamento do samba no sentido espacial (Pequena África e outras localidades), bem como seus limites originários, a saber, as relações entre o espaço, as pessoas e o samba; Sambando para não sambar, afroperspectivas filosóficas sobre musicidade do samba e a origem da filosofia é de Renato Noguera é um verdadeiro manifesto da afroperspectividade, expondo suas origens, suas múltiplas possibilidades e princípios fundadores; em Arqueologia do samba enquanto arqueologia do poder, Filipi Gradim, com referencial nietzschiano, pensa a distinção entre começo e princípio em face do advento do samba, com o escopo de entender “de onde vem o samba? Ou melhor: o que é o samba desde que o samba é o que é?”2, posteriormente analisa variáveis que compunham as manifestações na casa de Tia Ciata; no último capítulo da primeira parte, Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba: um território de anunciação, Sylvia Helena de Carvalho Arcuri propõe que olhemos as rodas de samba em seu potencial espacial, simbólico e criativo, não somente no que diz respeito à arte, contudo, no plano geral da cultura, e além, no próprio pensamento: filosofar na roda de samba, com ela e sobre ela.
A segunda parte do livro é um convite para que possamos vivenciar o samba, conhecer sua poesia e seus poetas, ou ainda, seus filósofos: Noel Rosa, Wilson Batista, Dona Ivone Lara, Bezerra da Silva, Leci Brandão, Jovelina, Zeca Padodinho e Almir Guineto. O trabalho realizado pelos autores, não é simples análise das letras, é isto e muito mais. Os sambistas são mostrados por seu discurso, poética e pensamento, sem que tenhamos somente uma análise estética, em muitos momentos emerge a ética e a própria metafísica. Noel Rosa e Wilson Batista: Intensidade e cartografia na embriaguez de um andar vadio e delirante de Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes, nos apresenta a ressignificação da figura do malandro e do próprio conceito de vagabundo; Marcelo de Mello Rangel no capítulo Dona Ivone reencanta o tempo no sonho, no amor e no samba, analisa o conceito de tempo na poética de Dona Ivone Lara, no qual permite o estabelecimento de um espaço ético que fornece ferramentas para enfrentarmos os problemas concretos da existência; Felipe Ribeiro Siqueira em Bezerra da Silva, a máquina de guerra do samba, critica o lugar subalterno da imaginação em relação à razão, abrindo caminho para pensar a obra de Bezerra da Silva, com determinante presença da política; A força de Leci Brandão de Marcelo José Derzi Moraes aduz a força da criação da sambista, que passa por um pensamento estético-político, sendo intérprete dos marginalizados e minorias; Eduardo Barbosa no seu trabalho intitulado Jovelina: pérola do espírito partideiro, realiza singela e cuidadosa homenagem à Jovelina Perola Negra; Felipe Ribeiro Cerqueira no capítulo Zeca Pagodinho e o tempo rubato, com muitos relações conceituais com o capítulo sobre Bezerra da Silva – também de sua autoria –, desenvolve o problema do tempo, segundo a poética de Zeca Pagodinho; Almir Guineto: o moralismo do samba diante dos impasses do gozo, trata do moralismo interpretado por Almir Guineto, a partir de uma análise lacaniana realizada pelo autor Guilherme Celestino.
O cuidadoso leitor e crítico poderá ter percebido que ao longo do texto, não é realizada críticas diretas nem ao afroperspectivismo, tampouco aos trabalhos contidos na obra, seria simples omissão de nossa parte? Não, ao contrário, decidimos que não as apresentaríamos, com a finalidade de que elas não tivessem mais atenção do que o convite ao estudo da obra. Afinal, para aqueles que dão de ombros para os temas aqui abordados, que estão confortáveis na forma como a filosofia é feita em geral, qualquer crítica serviria de pretexto para que ignorassem a obra, ou mesmo, argumentassem ardilosamente quanto a suposta desnecessidade de seu estudo. Nosso principal objetivo consistiu em divulgar o trabalho, fruto de inumeráveis esforços, que apresenta um caminho original para que pensemos velhos temas da filosofia tradicional. A obra também pode ser vista como excelente material para a formação de professores, visto que propõe um caminho para abordagens da disciplina na sala de aula, em ambientes no qual a “filosofia universal” pouco atinge ou não ressoa, principalmente em realidades socioeconômicas de vulnerabilidade e de risco. Os temas que esta filosofia desenvolve estão próximos dos jovens, falam diretamente do que eles vivenciam cotidianamente. Isso não nos levaria a uma proposta exclusivista de estudo da filosofia – amplamente praticada desde sempre nesses espaços, com ampla conveniência dos formadores, sem nenhum incômodo geralporém, abriria espaço mesmo para os próprios pensadores tradicionais, sem querer que o afroperspectivismo se torna apenas uma “isca”, que acabe por levar novamente aos universais.
Notas
1 SILVA, Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba, p. 16.
2 Ibidem, p.57.
Nilton José Sales Sávio – Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Bolsista CNPq. E-mail: niltonsavio@hotmail.com
[DR]Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (H-Unesp)
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015. 172p. Resenha de: BUSETTO, Áureo. Sambas e bambas sem o breque do Estado Novo. História v.37 Assis/Franca 2018.
Na década de 1980, o samba andava em baixa na indústria fonográfica, no rádio e na televisão. A mídia promovia larga e amplamente outros ritmos musicais. Muitos vaticinavam o fim do samba. Em reação a tal cantilena, Paulinho da Viola em Eu canto samba, integrado ao seu premiado disco homônimo lançado em 1989, canta que ele há muito tempo escutava “o papo furado dizendo que o samba acabou”, ao que ementa resposta irônica: “só se for quando o dia clareou”. Enfim, o sambista, com maestria e temperança, pontuava que não era porque o samba seguia preterido ou vitimado por alterações impostas pelos interesses comerciais da mídia que ele havia deixado de existir, alegar a vida e falar das coisas dos sambistas e admiradores do gênero, bem como de ser cantado e dançado nas rodas de samba em fundos de quintais.
Ainda naquela década, na historiografia era assinalado que sambistas durante o Estado Novo, então, empenhado em alçar o samba urbano carioca à tradução musical da nacionalidade, tinham submetido suas canções totalmente aos valores políticos e sociais calcados na ideologia trabalhista idealizada e difundida por aquele regime ditatorial, via o vigilante serviço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado no final de 1939 e atuante até o fim do regime, em 1945 (PEDRO, 1980; GOMES, 1982; VASCONCELLOS e SUZUKI JR., 1984).
Ainda que pretendesse revelar a censura sofrida e os esquemas de aliciamento do DIP investidos ao universo do samba, aquela historiografia caracteriza como dócil e passiva a adesão dos sambistas à ideologia estado-novista, mesmo essa se opondo radicalmente a elementos constituinte do samba urbano carioca, como, por exemplo, a malandragem e a boemia. Interpretação que, ademais, reforça a imagem de que o Estado Novo fora hegemônico, absoluto na vida cotidiana e mesmo na dimensão cultural, além de potencializar a mítica do líder máximo do trabalhismo, Getúlio Vargas.
Mas agora, com ampla e acurada pesquisa histórica, perpassada de igual sensibilidade e respeito com que Paulinho da Viola canta a gente e as coisas do mundo do samba, Adalberto Paranhos revela, em seu livro Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”, sambistas valeram-se em suas canções de “linhas de fuga” às investidas do DIP contra práticas e representações próprias do mundo do samba. Assim, o historiador assinala que bambas não foram somente sambistas que primavam pela qualidade do samba, mas, também, por saberem ou intuírem que nele apenas se podia admitir um tipo de breque, qual seja: aquela pausa do acompanhamento acentuadamente sincopado para intervenção declamatória do intérprete do samba. Enfim, se depreende da análise de Paranhos que, calcada em seu expressivo e firme conhecimento histórico e musical, as tentativas de doutrinação do trabalhismo varguista sobre o riscado do samba foram recebidas de maneira parecida à recepção dispensada a uma inautêntica baiana ao tentar entrar na roda de samba; valendo-se aqui de cena caracterizada pela letra do samba Falsa baiana, da autoria de Geraldo Pereira, lançado em 1944, na voz de Ciro Monteiro.
Na letra do seu samba, Geraldo Pereira narra que a impostura da falsa baiana se revela ao pessoal da roda de samba por ela não saber mexer, remexer e dar nó nas cadeiras. No seu livro, Paranhos evidencia que as intenções do Estado Novo em “higienizar a poética do samba”, em conformidade com a ideologia trabalhista, fora sentida e percebida por bambas como embuste em relação às coisas que nutriam e, mesmo, alegravam a vida de sambistas e do mundo a sua volta. Afinal, aquela imposição oficial era obra da elite, coisa de gente que sequer tinha patente para tirar samba – condição cultuada e defendida no meio sambista – e que imaginava, de maneira prepotente, bambas apenas dançassem conforme a música tocada. Completo desconhecimento da criatividade escapole dos que nasciam e queriam morrer com o samba, os quais em seu cotidiano tiravam de letra adversidades sociais impingidas pelos agentes do mando por meio da vigilância e força policiais. Dribles dados tanto aos apertos da subsistência, à época, amplamente pautada pelo desemprego e subemprego, quanto à ordem imposta que invariavelmente serviam de motes às letras de seus sambas, caracterizando o elo entre experiências de vida e a composição de suas canções, as quais, costumeiramente, ganhavam a aderência do seu típico público.
Na tentativa da falsa baiana entrar no samba, prossegue a letra de Geraldo Pereira, ninguém bate palmas, grita oba ou abre a roda para ela. As investidas do DIP para “higienizar” o samba, revelam as páginas de Os desafinados…, receberam por parte de bambas parecida recepção. E se eles, vez ou outra, aplaudiram, lançaram vivas ou abriram espaço em seus sambas aos valores políticos e sociais impostos pelo Estado Novo, não o fizeram por aquiescência própria e, mais ainda, não os dotaram necessariamente de igual sentido ao desejado por aquele regime. Se houve, conclui Adalberto Paranhos, a existência de uma plêiade de compositores e composições populares que se prestaram a enaltecer e exaltar o ideário estado-novista, fosse por meio de aliciamento ou de censura do DIP, o coro de sambistas descontentes com valores estado-novistas não deixou de se fazer presente no cenário musical, ainda que de maneira sútil e segundo as circunstâncias.
Não há como deixar de registar que Adalberto Paranhos lega um livro que expressa o cume da pesquisa na área de História, uma vez que enfoca tema e vale-se de fontes já tratados pela historiografia anterior, porém, fornecendo original e acurada interpretação deles por meio de abordagem inovadora. Com sua pesquisa, o historiador trata de um velho tema da história política – o poder do Estado na sociedade – e uma temática enfocada pela historiografia nas últimas décadas – o Estado Novo e a construção da nacionalidade – por um ângulo muito pouco tratado na área de História – o samba. Assim, a pesquisa e o livro de Paranhos se desenrolam com base na compreensão do entrelaçamento das dimensões da cultura, política e do social vigentes no Estado Novo, sem, contudo, desafinar quer nas notas necessárias para compreender as especificidades históricas de cada uma daquelas dimensões, quer nas dispensadas ao tratamento histórico das interseções entre elas. E como resultado final oferece novos e acurados acordes ao conhecimento historiográfico sobre as relações entre política e samba durante a ditadura varguista, os quais não poderão ser prescindidos em futuros estudos históricos sobre a política, sociedade e cultura na ditadura do Estado Novo, assim como nos voltados para história do samba, sob o risco de o pesquisador que agir ao contrário desafinar em suas conclusões.
Tomando o samba, ao mesmo tempo, como objeto e fonte de sua pesquisa, Paranhos transcende a limitada e arriscada análise centrada na letra ou partitura do documento canção. Ao valer-se de registros fonográficos gravados à época estudada, o historiador, por entender que a canção não existe em abstrato e o (re)interpretar também é compor, empreende, com grande acuidade, uma análise sobre a realização sonora da canção, englobando desde a orquestração musical à interpretação vocal, posto defender que tais expedientes são portadores de significações. É nesse diapasão que o autor revela que o emprego do breque em vários sambas da época funcionara para o intérprete se distanciar, ironizar, debochar e, mesmo, negar o que foi cantado na parte anterior da letra.
E quando da análise das letras dos sambas, Paranhos destaca palavras e expressões muito próprias às representações de criadores e cultores do gênero no período enfocado, dotando-as de historicidade, como, por exemplo, o faz com as palavras ‘batucada’ e ‘orgia’. Paranhos nos elucida que ‘batuque’ ou ‘batucada’ expressavam, ao mesmo tempo e paulatinamente a partir dos anos 1930, sinônimo ou referência de samba e elementos constituidores dele, sobremaneira quando se procurava dar ênfase na autenticidade do gênero e no seu valor como representante musical do povo brasileiro. Embora, saliente
que ambos os termos pudessem ser empregados quando se intencionava detratar o samba, segundo apreciações de lugares e comportamentos ligados ao gênero, isto é, os da população negra, mestiça e marginalizada. Em relação à ‘orgia’, nos ensina que a palavra expressava, nos sambas dos anos de 1930, o sentido de festa ou diversão pândega, logo, não se prendendo à conotação sexual que o termo pode suscitar, contudo, expressando ação oposta ao penar do mundo do trabalho, ainda que, dependendo do samba, a labuta com o trabalho pudesse oscilar entre honradez e humilhação.
Ademais, o livro de Adalberto Paranhos serve como dínamo a novos estudos históricos. Qual popular samba enredo após desfilar pela avenida, o conhecimento trazido pelo livro tende a ficar batucando na cabeça de atentos leitores sobre possibilidades de pesquisas ocupadas com as relações samba/política em outros períodos, bem como as de outras manifestações da cultura popular com o Estado e políticas governamentais. Batucada possível de se apossar da mente do leitor já nas páginas da introdução – intitulada sabiamente como Palavra Prima – e nas integradas ao primeiro capítulo do livro.
Com a leitura de ambas as partes, os leitores podem vislumbrar o rigor das reflexões sobre o saber historiográfico e elementos teórico-conceituais que Paranhos investiu à elaboração de sua temática de estudo, assim como o seu empenho na consecução da sua ampla e acurada pesquisa documental. Somam-se a isto férteis reflexões do historiador acerca do estatuto das variadas fontes consultadas (discos, jornais, revistas e conteúdos de programas de rádio, depoimentos), além de detalhes sobre a busca por elas, tarefa que envolveu dificuldades tanto da ordem de localização quanto de acesso. Registro que, ao mesmo tempo, facilita e estimula novas pesquisas com a documentação levantada. Louvável generosidade do autor para com a comunidade de pesquisadores interessados em estudos históricos sobre o Estado Novo e o samba.
No primeiro capítulo do livro, Paranhos apresenta um balanço reflexivo sobre as perspectivas teóricas que alicerçaram anteriores interpretações historiográficas ocupadas com a análise do Estado Novo e a dimensão do poder desse regime. Nessa direção, conceitos como hegemonia, dominação, resistência, apropriação e ressignificação, bem como questões teóricas centrais ligadas a eles, são enfocados, discutidos e refletidos pelo autor para definir e substanciar, de maneira objetiva e firme, a sua adesão à perspectiva da ‘história vista de baixo’. Capítulo que muito se distancia das partes introdutórias usualmente constantes em trabalhos acadêmicos e livros de difusão da pesquisa em História, posto que expressa diálogo ativo e reflexivo do pesquisador com referenciais teórico e historiográficos convergentes ou divergentes à perspectiva de análise e interpretação por ele compostas.
Longe de encerrar sua pesquisa sob a perspectiva de análise que tudo concede ao poder do Estado e centra-se na busca por marcar o império dos projetos de dominação estatal, Paranhos enceta uma abordagem que lhe possibilitou apreender os conflitos, as contradições, enfim, “o caráter dialético da dominação”. Para tanto, parte de elementos teóricos engendrados por Pierre Bourdieu (2002) e Michel Foucault (1977; 1979)- votados à análise de práticas e dispositivos das disputas encontráveis nas relações de poder que atravessam os diferentes domínios sociais que compõem a sociedade – e de E.P. Thompson (1998) e Raymond Willians (1992) – ocupados em conhecer e analisar forças de lutas e resistências contra-hegemônicas.
Com tal foco analítico investido à plêiade de fontes pesquisadas, Paranhos evidencia, nos dois capítulos seguintes, como sambistas conseguiam, ao mesmo tempo, desempenhar, em meio à sua afirmação social, papel decisivo na incorporação do samba à galeria de símbolos nacionais e registrarem composições e interpretações dissonantes aos valores políticos e sociais ditados pelo Estado Novo, burlando as tentativas do DIP em “regenerar” o temário do gênero, extirpando desse representações sociais de mundo tidas como inconvenientes ao trabalhismo.
Dentro desse quadro, bambas investiram aos seus sambas, não sem sucesso, uma linguagem e/ou sonoridade prenhes de sentidos ambíguos, transpondo ao seu universo musical expediente tão comum no cotidiano da malandragem, geralmente empregado para despistar pequenos ilícitos e contravenções diante dos agentes da ordem. Nessa direção, bambas, como bem estabelece Paranhos, desenrolavam “linhas de fuga em relação à palavra estatal”, incorporando seus sambas às disputas de representações sobre o trabalho e o trabalhador, as quais, consonantes às experiências dos sambistas, podem ser sintetizadas pela letra de um samba da época: “o trabalho não dá camisa ao trabalhador”.
Mas Paranhos também capta a reação de bambas às investidas do Estado Novo em regular as relações de gênero, decorrência do entendimento dos ideólogos do regime que desajustes do mundo do trabalho contribuíam à manutenção de conflitos de gênero. Acentua que sambas com motes relativos às relações de gênero repercutiam as tratativas acerca do estabelecimento do Estatuto da Família entre o final dos anos de 1930 e o início da década seguinte. Apresenta como sambistas cantavam, de um lado, as insatisfações das mulheres no desempenho da função de provedoras do lar, em decorrência de seus maridos ou companheiros não assumirem ou negligenciarem aquele compromisso social – o que, aliás, como destacada o historiador, sambas que “não deixavam de retratar a sobrevivência de figuras masculinas que voltavam as costas ao trabalho”-, e, de outro, entoavam os lamentos de homens por conta de suas mulheres não se submeterem ao esperado papel social de dona de casa, preferindo elas a diversão. Assim, enfatiza o historiador, sambistas mesmo que admitissem a intromissão oficial na moral conjugal, mantiveram brechas em seus sambas para discordar e, mesmo, desprezar o ideário das relações de gênero difundido pelo regime estado-novista.
Há ainda que se considerar que os dois últimos capítulos iluminam ainda mais o que se conhece sobre a estrutura e dinâmica da indústria fonográfica e do rádio nos tempos do Estado Novo (CABRAL,1990; LAGO,1977), enfatizando ou revelando práticas e representações próprias de agentes integrados naquelas mídias, fossem em termos da programação musical de maneira geral, fossem em relação ao samba. Sem deixar de demarcar precisamente as interseções entre aquelas duas mídias eletrônicas e a imprensa no tratamento tanto das manifestações culturais populares/samba quanto das populações identificadas com elas.
Sem dúvida, Os desafinados… se inscreve como livro original e inovador na historiografia sobre o Estado Novo e o samba, mas, também, como um ótimo guia a todos os interessados em melhor ouvir, sentir e compreender historicamente o amplo repertório dos bambas em tempos da ditadura varguista.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. [ Links ]
CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. [ Links ]
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petropólis: Vozes, 1977. [ Links ]
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]
GOMES, Angela Maria de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. [ Links ]
LAGO, Mário. Na rolança do tempo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [ Links ]
PEDRO, Antonio (Tota). Samba da legalidade. Dissertação (Mestrado em História) – USP, São Paulo, 1980. [ Links ]
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]
VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI, JR. Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira – III – O Brasil republicano (Economia e cultura: 1930-1964). 3.ed. São Paulo: Difel, 1984. [ Links ]
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. [ Links ]
Áureo Busetto. Professor Doutor. Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, UNESP. Av. Dom Antônio, 2100, Parque Universitário, Assis, 19.806-900 SP, Brasil. E-mail: aureohis@assis.unesp.br.
Marking samba: A new History of race and music in Brazil – HERTZMAN (NE-C)
HERTZMAN, Marc. A. Marking samba: A new History of race and music in Brazil Durhcham: University Press, 2015. Trad. Livre Dmitri Cerbonicine Fernandes. Resenha de: FERNANDEZ, Dmitri Cerbonicine. De “pelo telefone” a “internet”: tensões entre raça, direitos, gênero e nação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2013.
Nos últimos quinze anos, os chamados brasilianistas norte-americanos e britânicos voltaram seus olhos a temas anteriormente circunscritos aos nativos – caso geral da música popular brasileira e, em específico, do samba e do choro1. Se, por um lado, nossas obras musicais populares desde há tempos são bastante apreciadas e (re) conhecidas, chamando a atenção de vasto público, o mesmo não se poderia dizer das reflexões acadêmicas tecidas sobre essas obras e seus criadores.Os trabalhos da nova geração de brasilianistas são,por isso mesmo,um alento em diversos sentidos.A mera existência de um interesse estrangeiro por objetos de pesquisa tradicionalmente relegados a segundo plano nas ciências humanas auxilia a modificação do panorama de certo desapreço pelo assunto, forçando a universidade e demais instituições a reverem suas posições.A lastimável ausência de tradução dessas pesquisas para o português e a falta de interlocução dos estudiosos brasileiros – muitas vezes encerrados apenas na discussão em língua pátria e,quando não,em sua própria área ou subárea-talvez estejam com os dias contados; prenúncio de uma possível maturação de um campo de estudos que, embora secundário se comparado com o dos “grandes temas” – políticos, históricos, sociais -, não se iniciou ontem2.
Conquanto os resultados das análises empreendidas por esse novo grupo de brasilianistas variem bastante em termos de metodologia empregada, escopo, materiais coletados e ineditismo, são evidentes o impacto e a qualidade, se não de todas, pelo menos de algumas delas, o que as equipara ao que de melhor já foi escrito por aqui sobre a música popular em seus diversos aspectos. Dentre os livros que se destacam, um deles, sem dúvida, é Making samba: a new history of race and music in Brazil, do professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos, Marc A. Hertzman. Originalmente uma tese de doutorado em História da América Latina defendida na Universidade de Wisconsin-Madison, em 2008, o livro recebeu dois prestigiosos prêmios nos Estados Unidos3, o que o gabaritaria, por si só, à tradução imediata.
Logo de início, Marc Hertzman propõe um novo mergulho em águas passadas, quer dizer, ele se dispõe a revisitar pelo menos três eixos estruturantes de nossa música que já foram, em separado, alvos da bibliografia específica: 1) o lugar do negro e as possibilidades de ação, repressão e reconhecimento no nascente universo artístico4; 2) o aparecimento das instituições comerciais em meio ao fazer musical popular e as resistências e colaborações que essas instituições passaram a alimentar da parte de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, folcloristas etc.5; 3) os sentidos do entrelaçamento da ascendente forma musical popular brasileira no início do século XX com a ideia emergente de nação e a instauração da República6. No entanto, há em sua problematização um entrelaçamento entre esses três eixos, algo que nunca havia sido tentado antes. O resultado é um livro que traz inúmeros dados, situações, fotos e declarações que recebem nova luz interpretativa, fornecendo no conjunto um panorama inédito de questões que se pensavam solucionadas.Os que,mesmo assim,ainda imaginarem que se trata de mero exercício desnecessário e repetitivo de diletantismo rapidamente se convencerão do contrário por conta de outro motivo: a presença de um elemento que confere o tom central à obra e que, sozinho, já a justificaria de imediato. Falamos aqui da postura epistemológica adotada por Hertzman, que o diferencia do viés que predominou durante largo espaço de tempo na academia brasileira: o do ensaísmo.
Por um lado, é bem verdade, tal pendor ao ensaio conformou uma maneira toda especial, muito criativa e prolífica de interpretação em um ambiente científico inóspito e incipiente,momento em que financiamentos para a realização de surveys e a disposição de arquivos e materiais minimamente organizados eram escassos em nosso país. Em tal conjuntura, onde sobravam erudição e capacidade de síntese aos nossos intelectuais “heroicos”, a necessidade teve de se fazer virtude, e os clássicos pioneiros demarcaram o início de uma profunda autocompreensão que ensejou, por linhas tortuosas, trabalhos como os do próprio Marc Hertzman. Por outro lado, há até hoje resquícios desse modo de fazer que, desacompanhados das antigas virtudes, mais servem para escamotear resultados duvidosos, destilar arrogância, falta de empenho e de energia em vasculhar bibliotecas, museus e arquivos do que em iluminar o que quer que seja. Atêm-se ou a materiais recauchutados, apropriando-se de modo acrítico de “verdades” jornalísticas que rondam os mais diversos estudos sobre música no Brasil há tempos, ou a letras de canções e células musicais, como se a partir delas, e só delas, fosse possível, sem um objetivo claro ou um problema teoricamente orientado, reconstruir toda a história de um gênero musical ou de uma época.
Nesse sentido, Hertzman desdobrou-se como poucos haviam feito nos estudos históricos sobre o samba; correu atrás de comprovações documentais, muitas delas localizadas em acervos pessoais de difícil acesso ou em museus que, geralmente, sofrem e sofreram durante décadas com o descaso governamental, a falta de verbas, incêndios, desfalques, perdas, desorganização. O resultado dessa tarefa árdua e minuciosa de levantamento de informações não o tornou mero coletor nem fez de seu trabalho uma descrição insossa de materiais repertoriados,o que costuma ocorrer quando tamanha energia tem de ser gasta tão somente no serviço de garimpagem. Pelo contrário, ele logrou conectar a criatividade intelectual e a audácia interpretativa de nossos antigos ensaístas com o emprego de uma empiria embasada em recolhimento e análise de dados, descortinando de maneira surpreendente, aos nativos e aos gringos, um novo universo em torno de um domínio que, à primeira vista, nada mais ou muito pouco ainda tinha a render. Dito isso, não se trata, assim, de qualquer “revisita” às três questões apontadas; antes, de uma pesquisa de fôlego que tenta fornecer, se não a última palavra sobre o assunto, ao menos uma palavra muito mais balizada, material e metodologicamente bem orientada do que as que tínhamos à mão até o presente momento.
O livro percorre um largo período cronológico ao longo de seus nove capítulos: passa-se desde a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,até meados da década de 1970,quando se dá a instauração definitiva das modernas leis de proteção aos direitos autorais – embora as análises mais consistentes do livro, com fartura de materiais inéditos, estejam concentradas nas quatro primeiras décadas do século XX. Apenas o último capítulo se dedica ao escrutínio da conjuntura musical da década de 1960 em diante, o que, no conjunto da obra, representa mais elemento de verificação das teses defendidas sobre a “época de ouro” do que uma parte autônoma. O acompanhamento da noção de autoria, em termos legais e materiais, e seu correlato simbólico, qual seja, a individuação dos artistas, bem como o desenvolvimento das instituições que lidavam com essas questões e a legislação pertinente serviram como o fio de Ariadne de toda a estruturação do argumento de Hertzman; ele empregou uma embocadura até então menosprezada pelos demais estudiosos no intento de penetrar, de modo inovador, por veredas já caminhadas: “Embora estudiosos de muitas disciplinas venham se fascinando com a construção da autoria, poucos se interessaram pela relação entre propriedade intelectual e constituição nacional pós-colonial – sobretudo nas Américas – ou as histórias imbricadas entre raça, propriedade intelectual e nação” (p. 3)7.Em outras palavras,os marcos legislativos e as instituições que regulamentavam o fazer musical, a distribuição monetária e o papel desempenhado pelo Estado na garantia,manutenção e modernização de todo o engenho assomado no espaço de tempo compreendido pela pesquisa fizeram render uma nova visão sobre processos há muito mal compreendidos, pois faltavam materiais pertinentes ao demais autores,conforme argumentado,a fim de que pudessem chegar a conclusões mais robustas e precisas, que ultrapassassem o acolhimento acrítico dos depoimentos de quem viveu os acontecimentos em tela – referenciais fartamente empregados até então por alguns estudiosos.E é justamente a esta tarefa que Marc Hertzman se propõe:buscar no emaranhado que se formou entre as questões que envolvem raça, propriedade intelectual e nação o sentido da constituição do samba e, em uma via de mão dupla, a partir da problematização que parte da constituição do samba enquanto gênero musical negro, comercial e nacional, enxergar de modo mais exato e minucioso a imbricação de todo o processo cultural,econômico e político que conformou o Brasil.
No primeiro capítulo, Hertzman procura traçar uma espécie de pré-história das formas musicais populares que desaguariam no samba, bem como dos condicionantes sociais que assomavam ao final do século XIX com elas, isto é, os lugares de raça, de autoria e do vínculo possível dessas formas artísticas e seus produtores correspondentes com a ideia de nação em uma sociedade escravocrata. Hertzman, no entanto, passa longe de um denuncismo vazio ou de tomar um parti pris tão comum nos estudos atuais sobre raça e nação. O autor deixa claro desde o início que não guarda o propósito de esposar asserções como as que essencializam o samba como puro produto de uma “resistência negra” em abstrato nem as que retiram a agência dos negros, outorgando aos intelectuais brancos ou ao Estado varguista a proeminência na conformação dos traços das expressões culturais brasileiras. Hertzman tampouco se vincula seja à visão que adula a intermediação efetuada pelos meios de reprodução comercial da música popular,seja à que a rechaça apriori,pois considerada maléfica ou deturpadora de uma imagem “pura” e “autêntica”.Pelo contrário,colocar todas essas cosmovisões nativas abraçadas pela academia em perspectiva, fazê-las confrontarem-se umas com as outras para que, ao fim e ao cabo, venha à tona um panorama mais complexo do que aquele com o qual a literatura específica se habituou: este sim é um dos propósitos centrais de Hertzman, alcançado justamente por meio do que anunciamos como o grande feito de seu trabalho, quer dizer, a confrontação com materiais inéditos, que auxiliam a desvendar mitos até então inquestionáveis e uma visão que não se detém em fronteiras específicas do saber.
Um desses mitos que fundamentaram o memorialismo da música popular brasileira é o do que o autor denomina de “paradigma da punição” (p. 31). A ação supostamente praticada por parte do Estado de maneira sistemática,que penalizava os praticantes do samba com a prisão, de acordo com declarações à imprensa de sambistas que viveram a “época gloriosa dos primórdios”,é posta em suspenso no segundo capítulo. Hertzman, por meio de pioneiro mergulho nos arquivos penais das primeiras décadas do século XX,descobre que jamais houve uma única punição estatal por conta da prática do samba,ao contrário do que é alardeado em quase todos os trabalhos acadêmicos que lidam com a época. Tal relato mais servia como estratégia discursiva – um tanto exagerada para antigos sambistas firmarem-se como mártires de uma época ou para construírem a autenticidade requerida do gênero samba e, de lambujem, de si mesmos, dentro do circuito de valores que aos poucos foi se estabelecendo naquele gênero – do que refletia fielmente os processos históricos, entremeados na realidade de alianças e colaborações entre a polícia, o Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas e os órgãos representativos dos músicos.Isso não quer dizer, por outro lado, que Hertzman pinte um ambiente de igualdade e liberalidade generalizados para a prática musical popular no início do século XX, conforme veremos a seguir.
O olhar atento do historiador,que busca em uma miríade de eventos nem sempre vinculados imediatamente ao fenômeno a ser explicado os desenvolvimentos possíveis dos caminhos da história, evidencia-se no terceiro capítulo, em meio à interpretação de uma ilustração de um jornal da década de 1910 trazida à baila por Hertzman. O desenho tentava retratar uma tragédia: um dos primeiros artistas populares de relativo sucesso à época, um negro de apelido “Moreno”, havia sido supostamente traído por sua esposa,uma branca portuguesa.Ele resolveu matá-la a facadas e, em seguida, se matar. A representação da situação congregava todas as chaves necessárias para o desvendamento da figuração que ascendia na primeira década do século XX, para os temores que suscitava, para as apreensões que fazia refulgir: um novo universo estava se abrindo,com possibilidade de fama e sucesso àqueles que sempre foram apartados da ribalta da vida nacional, embora prenhe de todas as contradições que tão bem expressam a nossa formação. Que se atentasse para o “perigo” de permitir que essas figuras tão fascinantes quanto temerárias, aos olhos dos brancos, prosseguissem por uma via de acesso a patamares que já tinham dono: as mulheres brancas, o dinheiro, a fama. Isso é o que argumentavam os jornalistas que comentaram a mencionada cena de “Moreno”:o negro não tinha estruturas psicológicas nem sociais para angariar sucesso, para se manter na independência econômica, para se casar com uma mulher branca, em suma, para deixar de ser negro naquela sociedade dominada pelos brancos (p. 87). A igualdade democrática, o reino do direito abstrato e universal, a possibilidade de uma vida econômica e socialmente digna em seu próprio país não passavam de quimeras. Afinal, “quem eles pensavam que eram?”. Em contrapartida, alguns conseguiam escalar parcialmente as trilhas abertas pelo desenrolar da individuação artística e pelo novo comércio, por mais que tivessem que forjar por meio de suas mãos,do sangue de “Moreno”,ou de oportunidades ímpares, por um lado, ou apoiados em trajetórias distintas e caminhos compartilhados com os dominantes, por outro.
O que importa até aqui é que não cabem mais,de acordo com a proposta do autor,a aceitação pura e simples de quaisquer generalizações de categorias, como as de “o samba”, “a raça”, “a nação”, “a autoria” ou “o comércio”: há nas entrelinhas dos processos constitutivos de cada um dos fatores assinalados minúcias geralmente ignoradas, tensões e conflitos constitutivos dos próprios conceitos e processos que, se vistos desvinculados dos artífices que lhes deram viço,de seus tempos históricos, das funções que cumpriram e das atuações concretas dos atores que as encarnavam, mais borram a compreensão historiográfica do que a auxiliam em sua missão de reconstituição da figuração em pauta. Assim, Hertzman dá à mostra que existiram projetos autorais, intelectuais mesmo, por trás de cada grupo e personagens distintos que ocupavam posições díspares na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Figuras que, ao mesmo tempo que se confrontavam, teciam por vezes alianças e podiam ainda manter certo grau de cumplicidade, de animosidade, de distanciamento ou de proximidade, a depender de coordenadas e de conjunturas específicas.
Uma das mais expressivas comprovações diz respeito ao escrutínio dos que rodeavam a famosa casa de Tia Ciata, figuras centrais que participaram do que se convencionou denominar de “a nossa música” (p. 95): Hertzman demonstra no quarto e no quinto capítulos que jamais eles poderiam ser equiparados sem mediação a outros artistas que não tivessem nem a inserção socioeconômica deles, nem o conhecimento formal de música, nem o trânsito com jornalistas, industriais da arte e figurões da política e da intelectualidade nacional, nem a decorrente capacidade de mediação, seja artística ou intelectual. Igualar um Pixinguinha a um Baiaco ou a um Brancura, ou até mesmo a um Ismael Silva, pelo simples fato de serem negros esconde um abismo muito revelador do próprio modo pelo qual o racismo à brasileira se constituiu: por meio de reentrâncias e sutilezas, ou, mais especificamente, por meio de um engenhoso dégradé. Se é verdade que em determinado momento de suas trajetórias artísticas todos os citados enfrentaram alguma face do racismo, não se pode dizer que tenha sido da mesma maneira: as margens de manobra variavam muito, bem como o grau de sofrimento que os acometia,a depender da posição social que ocupavam. No caso de Pixinguinha e dos seus, tratou-se de notícias jornalísticas denominando-os de “negroides pardavascos”, incapazes de representar o Brasil,ou de pretendentes a um patamar mais elevado, como Catulo da Paixão Cearense, a desatiná-los (p. 113); no caso de Brancura, Baiaco e Ismael, tratou-se de uma vida tortuosa e de pobreza, de marginalidade, eivada de prisões, brigas e outros eventos manifestos de violência. Embora todos eles, de alguma forma, tenham contribuído para a criação e sustentação de símbolos guindados à condição de “nacional”, Hertzman chama a atenção para o fato de que cumpre visualizar com cuidado os modos pelos quais quando e cada um deles pôde – e se pôde – e por meio de quais contextos e estratégias ser alçado e se alçar ao panteão do samba e, por que não e por consequência, ao panteão nacional. A luta que envolveu a imposição de certa visão que concedia às suas criações a imagem de autêntica, única, sofisticada e respeitável toma, assim, lugar de destaque na análise (p. 115).
Transparecem, destarte, por meio de diversos exemplos, elementos intrínsecos à formação da nação, caracterizada sobretudo pelo tipo de estrutura social herdada da escravidão. Pela primeira vez tal situação é sistematicamente levada em consideração em conjunto com os efeitos simbólicos e econômicos que incidiram nas atividades artísticas populares. Hertzman demonstra no capítulo sexto como até mesmo intelectuais e artistas do porte de Villa-Lobos,Mário de Andrade e Luciano Gallet compartilhavam com maior ou menor ênfase de visões de época, segundo as quais se deveriam abrir alas à construção de um desejado Brasil “civilizado” e seu pressuposto, as correntes da modernidade, o que incorria em algum tipo de rebaixamento do que era apreendido como hierarquicamente inferior em uma escala artística de sensibilidade e racionalidade. Nesses casos, iniciavam-se discussões sobre o que podia ser aproveitável ou não para se entabular o concerto da nação,e aquilo que identificassem como “africano” era posto na berlinda.O mesmo se passava entre os intelectuais nativos do samba, como Tio Faustino, Vagalume ou China, irmão de Pixinguinha,que buscavam enfatizar a autenticidade de certa herança da África contra o que viria a ser uma África corrompida (p.156).Nesse cenário, alguns podiam tanto desempenhar o papel de dominantes em meio aos dominados como podiam ser defenestrados e ter as portas fechadas em diversos âmbitos. Em outros momentos, conforme frisado por Hertzman no capítulo sétimo, alguns podiam até mesmo se reportar diretamente ao presidente da República, como ocorreu em 1930 com os mencionados Pixinguinha e Donga, que clamavam a Getúlio Vargas,em meio a uma procissão de músicos,o auxílio do “pai dos pobres” à música nacional (p. 170). Já dentre os diversos artistas negros, sobretudo os semidesconhecidos resgatados pelo autor na intenção de iluminar comparativamente as possíveis trajetórias artísticas e seus liames com suas posições sociais, a situação era distinta: torna-se claro como os empecilhos enfrentados por eles dificultavam não só suas condições simbólicas naquelas instituições como ainda a simples manutenção econômica de suas vidas. A vinculação desses e de vários estorvos com outros fatores, como o de gênero, foi realizada no trabalho também de modo pioneiro.
A ascensão do samba em sua concretude pôde ser vislumbrada por meio de representações monetárias de quanto ganhava um grande artista – um cantor branco como Francisco Alves, por exemplo – em comparação com um compositor negro à margem dos estabelecimentos comerciais da música, como Ismael Silva (p. 129); de outro lado,a partir da constatação de uma tal pista micro,quer dizer, da assimetria econômica existente entre figuras de um mesmo universo, passa-se ao escrutínio do modo pelo qual se organizavam as instituições políticas e culturais, e como os elementos “raça”, “classe” e “gênero” se vinculavam de forma intrínseca ao funcionamento dessas instituições. É o que se vê com nitidez nos capítulos sétimo e oitavo. No caso das que lidavam com a música popular, como a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT, fundada em 1917), a primeira que tomou para si a função de arrecadação e distribuição monetária dos proventos das atividades artísticas em geral no Brasil, percebia-se em suas entranhas a reprodução de todas as desigualdades de nossa sociedade em termos econômicos e simbólicos. O mesmo ocorrendo com os produtos de seus cismas ao longo do tempo,casos da União Brasileira dos Compositores (UBC),a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM) etc., todas as que deram origem ao moderno sistema de arrecadação e distribuição de direitos ainda hoje vigente.Seus dirigentes,em maioria homens brancos vinculados a atividades consideradas “nobres” à época – como o teatro ou a “grande” música, em meados dos anos 1910 e 1920,ou os mais bem-sucedidos em termos econômicos com a ascensão do universo musical popular, a partir dos anos 1930 -, não se fizeram de rogados para eternizar a posição subalterna que os artífices negros, sobretudo os socialmente mais desprivilegiados, ocupavam em meio às estruturas das instituições à primeira vista “universais” que dirigiam, o que sublinha o caráter racial e economicamente assimétrico que perpassou a constituição de todas as nossas instituições democráticas, quando vistas de mais perto.
Emerge, assim, uma verdadeira história “materialista” do samba – e, por que não, do choro -, na melhor acepção do termo: em primeiro lugar, pelo fato de Hertzman lidar com estimativas sistematizadas de vendas de discos, com cifras relativas aos direitos autorais de canções, de lucros de gravadoras e de estações de rádio, de execuções de canções e de várias operações econômicas que dão à mostra a real dimensão das transformações estruturais ocorridas em meio à atividade musical popular. Em segundo lugar, o aspecto eminentemente “materialista” de sua proposta também se revela por conta do método: a visada totalizante, que pressupõe uma aguçada capacidade comparativa entre fatos, personagens e momentos aparentemente despidos de qualquer relação ou pertinência a fim de iluminar, a partir de distintos vieses, uma mesma questão específica. Hertzman arrisca, destarte, uma espécie de história total, onde condicionantes institucionais, geográficos, raciais, econômicos e culturais são movimentados para dar vida à agência dos atores (p. 11). Modificando seu foco a todo instante,passando de uma interpretação de um fato micro a uma correlação estrutural macro,e vice-versa,um verdadeiro mosaico das relações que davam viço àquela figuração nascente vem à tona. Embora a incursão na justificativa teórica de seu trabalho seja deveras enxuta,haja vista Hertzman nomear,e muito de relance,apenas Homi Bhabha, Michel Foucault e Peter Wade como inspiradores da empreitada (p. 10), é notória a contribuição tácita de autores como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, E. P. Thompson, Raymond Williams,dentre outros grandes nomes das ciências humanas,em seu modo de reconstituir a urdidura da história em voga. Mas essa explicitação, enfim, é o que menos importa, pois o primordial foi efetuado, quer dizer, o manejo teoricamente orientado do material levantado para além das fronteiras disciplinares artificialmente demarcadas.
Notas
1 Ver, por exemplo, DAVIS, DARIÉN J. White face, black mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. East Lansing: Michigan State University Press, 2009; Livinsgton-Isenhour, Tamara E. e Garcia, Thomas G. C. Choro: a social history of a Brazilian popular music. Bloomington: Indiana University Press, 2005; McCann, Bryan. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press,2004;Stroud,Sean.The defence of tradition in Brazilian popular music: politics, culture and creation of Música Popular Brasileira. Aldershot: Ashgate, 2008; Shaw, Lisa. The social history of the Brazilian samba. Aldershot: Ashgate, 1999.
2 Ressalte-se a ausência de obras dedicadas à reflexão sobre música popular nos principais centros brasileiros produtores de conhecimento até meados da década de 1970, que vê, muito timidamente em sua segunda metade, o início de estudos regulares e sistematizados sobre o assunto. Balanços críticos de publicações na área podem ser encontrados em Béhague, Gerard. “Perspectivas atuais na pesquisa musical e estratégias analíticas da Música Popular Brasileira”. Latin American Music Review. Austin: University of Texas Press, v. 27, no 1, 2006; Napolitano, Marcos. “A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”. In: IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, Nicarágua. Atas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, mimeo; Naves, Santuza C. et alli. “Levantamento e comentário crítico de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais — BIB. São Paulo: ANPOCS, no 51, 2001.
3 Trata-se do prêmio de melhor tese de doutorado da New England Council of Latin American Studies (NECLAS) e de uma menção honrosa do Bryce Wood Book Award pelo livro, comenda concedida anualmente pela Latin American Studies Association ao melhor livro que verse sobre a América Latina.
4 Como, por exemplo, RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Hucitec, 1984.
5 Como, por exemplo, FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso: samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. São Paulo: Annablume, 2003.
6 Como, por exemplo, WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:Brasiliense,2a ed.,1983.
7 Tradução livre realizada pelo autor da resenha.
Dmitri Cerboncini – Fernandes– Professor de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.