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História da educação católica: produção e circulação de saberes pedagógicos / Revista História da Educação / 2017
Este dossiê apresenta parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto Igreja Católica e circulação de saberes pedagógicos: intelectuais, impressos e práticas educativas (1916-1970) [1]. Embora a ação de intelectuais leigos católicos de destaque tenha história de pesquisa em nosso país, veja-se, por exemplo, os estudos sobre Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima [2], para além, contudo da Revista A Ordem e do Centro Dom Vital, lócus privilegiado da intelectualidade católica leiga e combativa, a partir de 1922 há outros espaços em que intelectuais leigos, mais ou menos brilhantes, com maior ou menor visibilidade, atuaram fazendo circular saberes, representações, defendendo valores e divulgando uma moral. A ampliação dos estudos sobre outros espaços de circulação desta intelectualidade visa a contribuir para a compreensão das várias formas assumidas pelo catolicismo (como prática e como conjunto de ideias) em nosso país, intervindo na educação, seja ela entendida como escolarização ou como socialização.
Os artigos aqui apresentados versam sobre um conjunto de práticas educativas produzidas e postas em circulação por diferentes estratégias e endereçadas a públicos distintos. Todas, no entanto, se valeram do impresso – de forma mais ou menos privilegiada – para sistematizar e difundir os saberes que estavam sendo produzidos por meio dessas práticas. O proselitismo, a doutrinação e a evangelização por meio de impressos foi assunto bastante cuidado pela hierarquia da Igreja Católica, veja-se, para o final do século XIX e início do século XX, o documento resultante do I Concílio Plenário da América Latina, que orientou as ações de religiosos / religiosas e leigos / leigas na região (LEONARDI; BITTENCOURT, 2016). O alvo era a cultura e a sociedade em geral com multiplicidade de ações que buscavam dar conta de diferentes segmentos da sociedade, envolvendo adultos e crianças, leigos / leigas e religiosos / religiosas. Investigar as ações pedagógicas / evangelizadoras empreendidas por intelectuais e educadores leigos favorece a compreensão de como as determinações da Igreja católica, atravessando diversos sujeitos em situações distintas, contribuíram para a permanência do catolicismo na sociedade e no cenário educacional brasileiro ao transitarem no campo da produção, mediação e circulação dos saberes pedagógicos, influenciando a reconfiguração do campo educacional no Brasil.
Com público mais amplo ou direcionado ao campo pedagógico, os impressos colocam em evidência um conjunto de estratégias de difusão e imposição dos modelos pedagógicos ou de comportamento e de táticas de apropriação desses modelos, utilizados como importantes dispositivos pelos diferentes atores que ocupavam o campo educacional na primeira metade do século XX (CARVALHO; TOLEDO, 2007). Assim, além de difundir determinadas práticas, são, eles mesmos, uma prática.
Os impressos aparecem aqui de forma transversal ou como ponto de intersecção entre os sujeitos e suas práticas. Muitos deles produziram livros, escreveram em jornais ou, simplesmente, tiveram suas ações noticiadas por esses veículos, foram editores ou articulistas de revistas. De uma forma ou de outra, usaram a palavra impressa para difundir valores, hábitos, comportamentos que defendiam como os ideais para a sociedade brasileira e portuguesa. O uso dos impressos na conformação de um campo pedagógico ou educacional inspira o que Marta Carvalho e Maria Rita Toledo (2007) denominam de “multifacetado campo de investigações”. São essas investigações que, segundo as autoras, “dão sólido suporte a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se aproxima” (CARVALHO & TOLEDO, 2007, p. 89). Educar pelas leituras tornou-se uma estratégia eficaz e utilizada, em geral, por diferentes grupos de educadores.
Os textos apresentados neste dossiê cobrem o período 1930-1960 e dirigem seu olhar para a ação de leigos ou para a formação de leigos, por meio do estudo do bandeirantismo, da Escola de Pais, dos Focolares, da Escola Ativa católica. Todos tem o impresso como fonte e / ou como objeto. O período dos estudos cobre a ditadura Vargas, a II Guerra Mundial e o pós-guerra. No campo da educação, assistimos aos embates entre leigos e católicos no Brasil pelo Sistema Nacional de Educação, à retomada da Igreja na cena pública brasileira e à inserção de seus pontos de pauta nas Constituições e na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Os leigos forneciam a base de apoio social e combatiam nas mais diversas frentes tendo os impressos como meio.
Os três primeiros artigos abordam práticas educativas distintas e dois deles têm a marca do protagonismo feminino. É sabido o papel fundamental que as mulheres tiveram no projeto de recatolicização, fosse como religiosas ou como leigas (LANGLOIS, 1984). Na qualidade de leigas, é possível identificar suas ações nas mais diversas áreas dando visibilidade e difundindo os padrões de comportamento e valores católicos nos espaços públicos, atuando muitas vezes como mediadoras culturais (SIRINELLI, 1996) no ensino primário, secundário, profissional ou superior, na imprensa periódica ou nas associações filantrópicas (PINHEIRO, 2015).
O bandeirantismo brasileiro e suas relações com o catolicismo é perscrutado por Alexandra Lima, a partir das páginas do Correio da Manhã, marcado pela atuação de Maria José de Queiroz Austregésilo de Athayde, na década de 1950. O estudo indica que, por meio de tal movimento, as mulheres constituíram uma rede de sociabilidades, apoio e prestígio.
O movimento dos Focolares e o periódico Cidade Nova, criados pela professora italiana Chiara Lubich, durante a Segunda Guerra, são objeto de Maria José Dantas (2013). O movimento, simultaneamente eclesial, pedagógico e civil utilizava-se deste impresso que circulava no Brasil, para divulgar sua perspectiva educacional. Neste artigo, a autora atenta para o conjunto de códigos que favorece a formação educacional em tempos e espaços distintos.
O terceiro artigo chama a atenção para as práticas endereçadas às famílias, pondo em relevo não apenas os saberes produzidos e endereçados às mesmas, como também as estratégias de formação e mobilização dos pais como verdadeiros agentes da causa educacional no Brasil e em Portugal. Foi nesse escopo de atuação mais diversificado que o movimento da Escola de Pais nasceu no Brasil em 1963, liderado por um grupo de pais e intelectuais católicos. Filiado à Fédération Internacionale pour L’Éducation des Parents, com sede em Sèvres, França, estrutura sua matriz em São Paulo, desdobrando-se daí para todo o país e estendendo-se à Portugal e outros países da América Latina. Neste artigo, Evelyn Orlando e Helder Henrique Martins analisam os contornos do movimento, e os saberes produzidos e endereçados à sociedade, tanto no Brasil quanto em Portugal, apoiados na documentação de ambos os países.
Esses três primeiros textos chamam a atenção para outros movimentos relacionados à educação empreendidos pela Igreja, os quais – sem perder de vista a escola – buscaram alcançar outras instituições, ampliando com isso as frentes de ação do laicato católico no projeto de recatolicização da sociedade brasileira. Já os dois últimos artigos abordam impressos pedagógicos, de naturezas distintas, que se propuseram a servir como veículo de formação nos dois países aqui abordados.
Joaquim Pintassilgo, por dentro do regime autoritário português de Salazar, investiga o jornal dos estudantes do Colégio católico Manuel Bernardes intitulado A Nova Floresta. Encontra, aí, uma experiência de «self-government» e de «educação integral» articulada à «Escola Ativa» com um projeto católico e conservador, que contribui para reforçar a identidade institucional do Colégio.
O conjunto de textos reunidos neste dossiê busca dar visibilidade à multiplicidade de ações desenvolvidas pela hierarquia eclesiástica e o laicato católico em diferentes setores da sociedade que, por diferentes caminhos, fizeram circular ideias, saberes e práticas que configuraram o pensamento educacional católico no Brasil.
As pesquisas no campo da História da Educação já vêm atentando para a importância de pensar a circulação de saberes e modelos pedagógicos como caminhos de compreensão dos processos educacionais, de escolarização, da formação e da profissão docente. Nessa relação direta com Portugal, alguns colegas pesquisadores buscam aprofundar a discussão sobre as estratégias mobilizadas por diferentes sujeitos, atentando para as relações que estes atores estabelecem no cenário internacional, e consideram, em alguns casos, uma compreensão a partir da perspectiva comparada. Este dossiê visa a ser mais uma contribuição nessa direção, trazendo como foco privilegiado a relação entre Igreja e Sociedade nos projetos educacionais desses dois países em relevo [3]. O leitor poderá identificar inúmeros pontos de contato, estratégias similares, repertórios que se aproximam – sobretudo, pela circulação dos sujeitos e suas produções pondo em relevo a formação e a experiência dos diferentes atores que estiveram envolvidos, de diversos modos, nos processos de produção dos saberes que conformaram o campo pedagógico no Brasil e em Portugal, especialmente ao longo do século XX.
Notas
1. Apoio CNPq [2014]
2. Há inúmeros estudos a respeito, dentre os quais: PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). Tese de doutorado em Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007; CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Estado, igreja e educação no Brasil nas primeiras décadas da República: intelectuais, religiosos e missionários na reconquista da fé católica. Acta Scientiarum. Education, v. 32, n. 1, p. 83-92, 2010; ARDUINI, Guilherme Ramalho. O Centro Dom Vital: estudo de caso de um grupo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: Intelectuais e militância católica no Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2012; ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945). São Paulo: Edusp, 2014; RODRIGUES, Candido M. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Fapesp, Autêntica, 2005; RODRIGUES, Candido M. Aproximações e conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos anos 1928-1946, São Paulo: Alameda, 2013.
3. Os livros organizados por Pintassilgo et al (2006), Araújo (2009), Carvalho & Pintassilgo (2011), Cardoso (2014), Xavier (2013) e os artigos publicados em co-autoria por Xavier & Mogarro (2011) Mogarro & Orlando (2015), Mogarro & Magaldi (2015), dentre outros, vêm dando conta de ressaltar essas questões. Os livros organizados por Rodrigues & Zanotto (2013) e Pintassilgo (2013) reúnem diferentes pesquisadores que vêm atentando para essa questão da laicidade e religiosidades nas escolas públicas, considerando suas práticas de circulação.
Referências
ARAÚJO, Marta Maria de (Org.). História(s) Comparada(s) da Educação. Brasília: Líber Livro / UFRN, 2009.
ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945). São Paulo: Edusp, 2014.
_____. O Centro Dom Vital: estudo de caso de um grupo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: Intelectuais e militância católica no Brasil. Cuibá: EdUFMT, 2012.
CARDOSO, Teresa Fachada Levy (Org.). História da Profissão docente no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Mauad X / FAPERJ, 2014.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de; PINTASSILGO, Joaquim. Modelos Culturais saberes pedagógicos, instituições educacionais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / FAPESP, 2011.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de; TOLEDO, Maria Rita de Almeida. Os sentidos da forma: análise material das coleções de Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. In: OLIVEIRA, Marcos Aurélio Taborda de (Org.). Cinco estudos em História e Historiografia da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 89-110.
CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Estado, igreja e educação no Brasil nas primeiras décadas da República: intelectuais, religiosos e missionários na reconquista da fé católica. Acta Scientiarum. Education, Maringá, v. 32, n. 1, p. 83-92, 2010.
LANGLOIS, Claude. Le catholicisme au féminin. Les congrégations françaises à supérieure générale au XIXe siècle. Paris: Les Editions du Cerf, 1984.
LEONARDI, Paula; BITTENCOURT, Agueda. De documento religioso à fonte histórica: as Atas do I Concílio Plenário da América Latina. Revista Educação e Filosofia, v. 30, n. 59, p. 135-158, jan. / jun. 2016.
MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello; MOGARRO, Maria João. Mulheres de letras e educação feminina no espaço luso-brasileiro: lições em torno da infância nos escritos de Julia Lopes de Almeida e Emília de Sousa Costa. In: SILVA, Alexandra Lima; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José. Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015, p. 81-107.
ORLANDO, E. A.; MOGARRO, J. M. Estratégias católicas de formação de professores e circulação de modelos culturais e pedagógicos no Brasil e em Portugal. Rev. Diálogo Educacional, Curitiba, v. 15, n. 46, set. / dez. 2015, p. 749-769.
ORLANDO, Evelyn de Almeida. Educar-se para Educar: o projeto pedagógico do Monsenhor Álvaro Negromonte dirigido a professoras e famílias través de impressos (1936-1964). 2013. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). 2007. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
PINHEIRO, Ana Regina. Instrução do povo sob a proteção do catolicismo – militância docente e a expansão da escolarização em São Paulo. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v. 15, n. 2 (38), maio / ago. 2015, p. 193-219.
PINTASSILGO, Joaquim et al. (Org.). História da escola em Portugal e no Brasil: circulação e apropriação de modelos culturais. Lisboa: Colibri, 2006.
RODRIGUES, Candido M. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Fapesp, Autêntica, 2005
_____. Aproximações e conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos anos 1928-1946. São Paulo: Alameda, 2013.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.) Por uma História política. Rio de Janeiro: UFRJ; Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 231-269.
XAVIER, L. N.; MOGARRO, M. J. Itinerários profissionais de professores no Brasil e em Portugal: redes de intercâmbio no contexto de expansão do movimento da Escola Nova. História da Educação, v. 15, p. 117-136, 2011.
XAVIER, L. N. Associativismo docente e construção democrática: Brasil-Portugal (1950- 1980). 1. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ – FAPERJ, 2013.
Evelyn de Almeida Orlando – Professora adjunta da Escola de Educação e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013), com período de estágio sanduíche na Universidade de Lisboa 20 (financiamento Capes). E-mail: evelynorlando@gmail.com
Paula Leonardi – Professora adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Educação pela área História da Educação e Historiografia da Faculdade de Educação USP (2008), com período de estágio no exterior na École des Hautes Études en Sciences Sociales (financiamento Capes); Pós-doutora em História da Educação e Historiografia pela Faculdade de Educação USP (2011), com financiamento Fapesp. E-mail: leonardi.paula@gmail.com
ORLANDO, Evelyn de Almeida; LEONARDI, Paula. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 52, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
Lugares de poder, produção e circulação de saberes pedagógicos / Revista História da Educação / 2013
Este dossiê apresenta alguns resultados da investigação de um grupo de pesquisa sobre história cultural da escola e dos saberes pedagógicos, cujo objetivo geral é compreender as práticas e os processos educativos, em seus regimes de historicidade, como produtos de uma construção cultural em articulação com sua dimensão social.
Nessas investigações, conceitos como representações, práticas, apropriações e materialidade dos objetos culturais são fundamentais porque sublinham a importância das operações de atribuição de sentido coletivas e, ao mesmo tempo, a liberdade relativa dos agentes, cujas práticas contribuem para a construção do mundo social e permitem a historicização da linguagem das fontes e dos lugares de produção das mesmas.
Os trabalhos reunidos se reportam a um dos eixos articuladores das referidas investigações e objetivam determinar estratégias de produção, de difusão e imposição de saberes pedagógicos e de modelização das práticas escolares. Para essa análise, toma-se a noção de lugares de poder isoláveis, proposta por Michel de Certeau.
Para o início do século 20, a investigação de Rogéria Isobe aborda o serviço de inspeção técnica do ensino como estratégia de produção de um modelo escolar em Minas Gerais, no âmbito da Reforma João Pinheiro. A autora discute o modo como o inspetor técnico atuava sobre a prática docente, a partir de um lugar de poder determinado, o lugar de um intérprete autorizado cuja ação visava a aproximar as práticas dos professores das regras estabelecidas na conformação de um determinado modelo escolar de educação em Minas Gerais.
Já o artigo de Ana Clara Nery analisa o processo de constituição da Biblioteca da Escola Normal de Piracicaba (1896-1950). A biblioteca é tomada como lugar de poder no importante processo de constituição de repertórios culturais, pedagógicos ou não, dos docentes formados nessa instituição. Para tanto, a autora analisa as formas pelas quais se organiza e se dissemina uma determinada cultura pedagógica ao selecionar, ordenar e disponibilizar um conjunto de saberes, próprios da profissão docente numa biblioteca escolar.
Os artigos de Marta Carvalho e Maria Rita Toledo tomam coleções de livros destinadas à formação de professores como lugares de poder que organizam e conformam modelos de leitura e formação docente. A primeira investiga os dispositivos textuais e editoriais de territorialização do livro Educação moral e educação econômica, de Sampaio Dória, integrante da coleção Biblioteca de Educação, organizada por Lourenço Filho como estratégia de configuração do campo dos saberes pedagógicos no final da década de 1920. A autora sustenta que, ao enquadrarem Dória como pedagogista social, esses dispositivos situam-no no que o editor entendia como periferia do programa de renovação da escola brasileira que a coleção buscava promover.
Maria Rita Toledo aborda as quatro edições da tradução de Como pensamos, de John Dewey, na coleção Atualidades Pedagógicas, e os sentidos atribuídos a esse texto, ao longo do século 20, pelos sucessivos editores da coleção. Para tanto, toma por objeto os dispositivos editoriais e tipográficos de apoio à leitura – orelhas, prefácios, notas de rodapé do tradutor – acrescidos a cada uma das versões, e destaca os deslocamentos que os editores produzem nas representações sobre a obra de Dewey e do próprio autor.
O artigo de Daniel Revah focaliza a editora Abril como lugar de produção de representações sobre a educação escolar nas décadas de 1970 e 1980, nos periódicos ESCOLA e Nova Escola. Ao comparar as edições inaugurais, o trabalho analisa o modo como cada periódico busca situar-se diante de seus leitores, mas também em face de conjunturas políticas diversas (ditadura versus democracia). São analisados os editoriais de apresentação e as capas das primeiras edições, junto com as reportagens correspondentes e outros elementos dessas edições inaugurais.
O último artigo, de Alexandre Godoy, analisa o periódico Escola Municipal (1968- 1985) como dispositivo de difusão e implantação de um novo modelo escolar produzido pela Secretaria de Educação do Município de São Paulo, na transição entre a sociedade disciplinar e a sociedade de controle. Além de desvendar os caminhos da produção e circulação da materialidade do impresso em suas diferentes fases, estabelece relações entre o modelo escolar paulistano, o tipo de leitor desejado pela publicação e as políticas municipais de educação do período.
Daniel Revah
Maria Rita de Almeida Toledo
Organizadores do dossiê.
REVAH, Daniel; TOLEDO, Maria Rita de Almeida. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 17, n. 39, Jan / abr, 2013. Acessar publicação original [DR]
Saberes históricos e pedagógicos / Revista Brasileira de História / 2004
A presente edição da RBH, mais uma vez, comporta um dossiê a propósito de saberes históricos e pedagógicos. No número 46, de 2003, fizemos um comentário que merece aqui reprodução: “Apenas considerando o início dos anos 90 e os dias atuais, isto é, 32 números editados, a RBH publicou principalmente dossiês de teoria de história ou historiografia, cerca de 25% do total — o que atesta vivamente que o ofício do historiador, seus métodos e dificuldades, apresentam-se como a preocupação mais constante da comunidade”.
É possível que tal preocupação com as questões teóricas decorra da tentativa de administrar a mais recôndita aspiração do historiador: a de lidar positivamente com a imprevisibilidade do conhecimento. O futuro não está compreendido pelo passado, e essa indeterminação angustia aquele a quem, por profissão, cabe confrontar o conhecimento adquirido com o devir. Toda e qualquer comunidade humana toma decisões sobre o seu futuro, e não o faz optativamente. Somos todos obrigados, para o bem e para o mal, a optar. Daí o lugar especial destinado à imaginação nos estudos históricos. É pelo trabalho simultâneo da imaginação e da razão que o historiador encontra motivos para a refutação de sua instabilidade de princípio.
Procedendo dessa forma, isto é, publicando sucessivos dossiês sobre questões teóricas da disciplina, a RBH tem aberto freqüentemente espaço para a aventura do saber, lidando sempre com o entender e o ensinar a história. Neste número, como em outros precedentes, contamos com a parceria de eficientes e inspirados autores para discutir aspectos teórico-metodológicos da historiografia contemporânea, que se constituem, muitas vezes, em impasses da nossa ciência. Os três primeiros artigos do presente número da RBH, a seu modo, avaliam os ditos impasses. Norberto Guarinello abre o volume discutindo conceitos como tempo histórico, estrutura e ação, a partir da perspectiva do tempo cotidiano. Numa leitura que pode se constituir em diálogo e contraponto ao artigo anterior, Carlos Zacarias, em “A dialética em questão”, busca demonstrar que uma determinada tradição marxista nunca deixou de promover sínteses essenciais ao método dialético. Em “Testemunho, juízo político e história”, Fernando Kolleritz analisa as propriedades características do gênero testemunhal, descrevendo as situações ideológicas que presidiram a recepção de depoimentos sobre os campos de concentração nazistas e comunistas.
Ocupando um espaço privilegiado, seguem-se sete artigos nos quais o tema do ensino de história constitui a preocupação primordial. Claudefranklin Santos e Terezinha Alves de Oliva recuperam e analisam um livro de leitura, o Através do Brasil, que, procurando fortalecer a identidade nacional, sintetizou um ideal pedagógico brasileiro do início do século XX. Cuidando de tema semelhante, Sonia Miranda e Tania de Luca, em “O livro didático de história hoje”, constroem uma breve radiografia do livro didático contemporâneo e apontam algumas temáticas centrais que têm ocupado o cenário relativo ao saber histórico escolar. Lucia Guimarães aborda o IV Congresso de História Nacional, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1949, com o intuito de avaliar a sua contribuição à historiografia nacional. Laerthe Abreu Jr. analisa o caderno de recortes sobre educação do Diario Official do Estado de São Paulo, nos anos 30 e 40 do século XX. Sua intenção é mostrar indícios das práticas escolares que aparecem e se destacam em meio aos textos sobre aspectos legais da educação. A tentativa de construção de um Código disciplinar para a História no Brasil é o assunto privilegiado por Maria A. Schmidt, em artigo que põe em foco a obra didática de Jonathas Serrano (1855-1944), professor de História do Colégio Pedro II. Luiz Cerri, em “Saberes históricos diante da avaliação do ensino”, trata da influência que o ENEM exerceu, como prática avaliativa privilegiada durante o anterior governo federal, na organização do currículo do Ensino Médio. E, ainda dentro da seção destinada ao conhecimento pedagógico, Paulo Martinez estuda questões ambientais presentes no conhecimento histórico escolar.
Além desses, mais três artigos, versando sobre temáticas externas ao dossiê, completam a presente edição. São eles: “Almas em busca da salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII)”, de Eliane Fleck; “Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa de Lavradio”, de Fabiano V. dos Santos; e “O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX”, de João Carlos de Souza.
Fiel à sua tradição, portanto, a RBH abre espaço para uma aliança entre a imaginação e a razão histórica. Mas o faz esquivando-se do perigo de tomar por real o que é produto da imaginação. O caminho para o desfazimento da aludida confusão parece estar contido na separação entre duas formas de imaginação, e na escolha daquela que, procedendo por hipóteses as quais ela se esforça para validar, afasta imediatamente as conclusões em diametral oposição à experiência vivida.
Assim, a atividade científica em história — para a qual a RBH pretende se constituir em veículo de divulgação — é o protótipo da imaginação cotidianamente confrontada pela experiência. E, em nosso caso, essa experiência nos vem pelo profícuo relacionamento entre nossos autores e nossos leitores.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004. Acessar publicação original [DR]