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O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII) – SÁ (VH)
SÁ, Isabel dos Guimarães. O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais – ICS, 2018. 331 p. DILLMANN, Mauro. A Misericórdia do Porto e seus doadores dos espaços dos mundos transoceânicos Ibéricos. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 69, Set./ Dez. 2019.
(Re)conhecida na/pela historiografia brasileira, a historiadora portuguesa Isabel dos Guimarães Sá, professora no departamento de História da Universidade do Minho (Portugal), desenvolve pesquisas sobre misericórdias portuguesas ao menos desde a década de 1990,fn1 sendo uma das grandes expoentes na temática.fn2 O livro “O Regresso dos Mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVIII)”, publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é uma continuidade das suas investigações, decorrente da compilação de textos e resultados da pesquisa da autora desenvolvida na última década junto ao Arquivo histórico da Santa Casa de Misericórdia do Porto. De primorosa abordagem teórico-metodológica à inegável fluidez narrativa, a obra certamente conforma sofisticação e sutileza tanto aos leitores que compartilham e prezam pelas regras do ofício (de historiador) quanto àqueles que buscam conhecimento do passado.
O livro apresenta 10 capítulos divididos em dois eixos: o primeiro fornece um quadro contextual do papel das Misericórdias no agenciamento das heranças deixadas em testamento, especialmente aquelas relativas à instituição da mercantil cidade do Porto, bem como a identificação coletiva dos seus doadores nos territórios ultramarinos; o segundo, inicia com um breve capítulo intitulado “A reconstituição de trajetórias de doadores: fontes e métodos”, que introduz e problematiza os demais, dedicados à análise das particularidades da vida, das posses, das relações familiares e das doações de sujeitos que viviam nos séculos XVI e XVII nas duas grandes áreas da expansão ibérica, o Estado da Índia e a América portuguesa. Foi por meio desses territórios que emergiram, segundo a autora, as fortunas mais significativas legadas à Misericórdia do Porto, que provinham de homens, mulheres e membros do clero (p.66). Ao final de cada subcapítulo em que analisa indivíduos e famílias, Guimarães Sá organizou uma cronologia das dinâmicas testamentárias no que tange às doações e, ao final do livro – vale mencionar – trouxe interessante “índice remissivo” (p.309-331).
Ao reunir diferentes casos de doadores – dezesseis ao todo, embora se desdobre em muitos outros ao considerar ascendentes e descendentes dos quadros genealógicos – Guimarães Sá tenciona identificar repetições que constituam “padrões de comportamento” relativamente homogêneos, buscando também compreender esses sujeitos “enquanto pessoas” e seus motivos para a realização de doações à Misericórdia do Porto, entre eles, o de cuidar da salvação eterna da própria alma. Pode-se identificar uma proximidade com os trabalhos de história social desenvolvidos por pesquisadores que se valem de metodologias prosopográficas,fn3 embora a autora não faça qualquer menção ao método.fn4
A obra propõe uma abordagem micro-histórica para tratar das singularidades dos sujeitos, da vida mercantil ultramarina, das religiosidades, dos valores, dos consumos e das relações familiares. São tecidas considerações sobre a interpretação dos bens/materialidades e suas conversões em dinheiro para pagamento dos benefícios espirituais. Na dinâmica que vinculava o doador e a instituição receptora dos recursos, em período da história moderna marcado pelo entusiasmo português na expansão oceânica, as relações familiares tornar-se-iam fragmentadas e a vida material dos portuenses aberta a novos produtos e mercadorias.
A escolha dos indivíduos que mereceram atenção investigativa partiu de dois critérios: geográfico, com foco em doadores que transitavam pelo império português na Ásia e na América; e documental, privilegiando aqueles que deixaram registros (p.19). Esses doadores eram indivíduos que pertenciam à elite mercantil e possuíam experiências no trato marítimo e na circulação de pessoas e bens. Constituíam redes sociais e comerciais que legitimavam seus movimentos, seus laços de família e suas “últimas vontades” (p.197). É a atenção dispensada às figuras dos doadores e às doações, individuais e coletivamente, que, segundo a autora, justifica a pesquisa frente à produção historiográfica relativa às Misericórdias.fn5 Além disso, as reflexões propostas por Guimarães Sá (p.16), ao perceber as influências dos territórios da expansão sobre os doadores e sobre as próprias doações se inserem nos debates sobre “mundos conectados”, tal como proposto pelo historiador Serge Gruzinski (2014).
Importante destacar o conjunto de fontes privilegiadas para análise, constituído por testamentos e inventários de bens, mas também genealogias, registros paroquiais, escrituras notariais, entre outros. Há um exemplar cuidado em explicitar as possibilidades e limites dos testamentos (p.93-95) e com a esmerada análise dessas fontes (ponto forte da obra), Guimarães Sá estabelece interpretações sobre vínculos familiares, relações de valores morais e monetários e contatos culturais entre a Ibéria e a Ásia. A experiência com os testamentos permite à autora captar “impressões” (p.181) e realizar inferências pertinentes sobre vida privada (p.193), reconstituindo os laços familiares e a dimensão subjetiva de cada indivíduo. Quando a análise assume feições generalizantes, a autora justifica como sendo “pincelada larga”, a exemplo da caracterização dos doadores. Ao traçar um perfil destes – domínio da escrita, vida de caráter urbano, “elites” da cidade -, merecem destaques o manejo das fontes e a apresentação das dificuldades no fazer historiográfico, como a necessidade de presumir que muitos doadores fossem solteiros a partir da ausência de referência à cônjuges na documentação.
Em relação à metodologia, é elogiosa a preocupação demonstrada em frisar o que o livro não é ou não pretende ser: não é um estudo de longa duração, não é história econômica; não tem como objeto os irmãos, apenas os doadores (p.49); não é um estudo de quaisquer casos de doações, apenas daquelas com escritura notarial (p.50) e ligados aos territórios da expansão ibérica, que correspondiam a 20% do total de doadores (p.67, 75); não faz análise da logística e das transferências de heranças através dos oceanos (p.96).
A autora aponta para o que considera como “uma das constatações mais importantes” do livro: a forma como se processava a circulação de gêneros e bens e sua transformação. Mercadorias, dinheiro, terras, roupas, móveis poderiam se converter em “papéis de crédito” para a Misericórdia (sua riqueza preferida) e esta poderia, através de rituais, converter os bens materiais em espirituais (p.90). A Misericórdia do Porto estava longe de se limitar a cuidar apenas dos sufrágios e dos pobres, desejando lucrar com as rendas proporcionadas pelas heranças recebidas. As doações pressupunham uma dinâmica de troca entre o sujeito que doava e a instituição: aqueles que deixavam seus legados esperavam, em troca, “missas anuais”, “para sempre”, “todos os anos” ou “enquanto o mundo durar”, o que poderia gerar situações de heranças recusadas, quando os serviços requisitados fossem desproporcionais com os rendimentos atribuídos (p.80). Ao cumprir o “acordo”, ao tratar da eternidade das almas, a Misericórdia promovia o “regresso dos mortos” (referência ao título do livro), um regresso póstumo e simbólico destes doadores, que viviam em outros territórios e teriam sua memória garantida entre os vivos na sua terra natal.
Por fim, vale dizer que a obra poderá interessar a quem se volta ao período moderno português, à história das religiões, à história das instituições e à história das elites no Antigo Regime. De narrativa encadeada, ao reunir textos inéditos e reformulações/revisões de outras publicações realizadas pela própria autora a partir do ano de 2011, acaba por portar algumas recorrências explicativas, embora haja cuidadosa coesão de ideias e mereça, com certeza, forte recomendação de leitura.
1Informação acionada em Academia.edu. Disponível em https://uminho.academia.edu/IsabelDosguimaraessa. Acessado em 21 jun. 2019. Destaco, entre tantas, as seguintes publicações: SÁ, Isabel Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; em parceria com a historiadora Maria Antónia Lopes, publicou História Breve das Misericórdias Portuguesas, 1498-2000. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018. No Brasil, publicou As misericórdias portuguesas, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: FGV, 2013 (Coleção FGV de bolso). Nesse sentido, indico alguns trabalhos publicados no Brasil nos últimos anos, que fazem parte das reflexões que constam na obra resenhada: Entre consumos suntuários e comuns: a posse de objetos exóticos entre alguns habitantes do Porto (séculos XVI-XVIII), Anais do Museu Paulista, v. 25, n. 1, p.35-57, abr. 2017; As misericórdias e as transferências de bens: o caso dos Monteiros, entre o Porto e a Ásia (1580-1640), Tempo, v. 22, n. 39, p.88-109, abr. 2016; Conectando vivos e mortos nos territórios da expansão ibérica: religião e ritual entre os doares da Misericórdia do Porto (1500-1700). In: HERMANN, Jacqueline; MARTINS, William de Souza (Orgs.). Poderes do Sagrado: Europa católica, América Ibérica, África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p.111-138. Outros textos, inclusive com diferentes temáticas, tem atualmente mobilizado as pesquisas de Guimarães Sá: Rainhas e cultura escrita em Portugal (séculos XV-XVI). In: GANDELMAN, Luciana; GONÇALVES, Margareth de Almeida; FARIA, Patrícia Souza de (Orgs.). Religião e linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições. Seropédica: UFRRJ, 2015, p.169-180; Os rapazes do Congo: discursos em torno de uma experiência colonial (1480-1580). In: ALGRANTI, Leila; MEGIANI, Ana Paula Torres (Orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009, p.313-332.
2Em Portugal, estudos sobre os papéis, funções e atuações das Santas Casas de Misericórdias são profícuos e continuam a florescer. Ao lado da própria Isabel dos Guimarães Sá, merecem menção as pesquisas de ARAÚJO, 2018, ABREU, 2017 e LOPES, 2010.
3Sobre os significados das pesquisas com essa metodologia, VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165; BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia, Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005.
4Embora a autora não faça referência direta ao trabalho de Peter Burke (1991) sobre as mudanças e semelhanças no estilo de vida, atitudes e valores das elites de Veneza e Amsterdã no século XVII, existem dialogias entre as abordagens de ambos.
5Para a misericórdia do Porto, a autora dialoga com dois historiadores “da instituição”: Artur Magalhães Basto e Eugénio de Andrea da Cunha Freitas, além de uma vasta historiografia, especialmente portuguesa e brasileira.
Referências
ABREU, Laurinda. Misericórdias, Estado Moderno e Império. In: PAIVA, José Pedro (coord.). Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Vol. 20. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2017, p.245-277. [ Links ]
ARAÚJO, Maria Marta Lobo de (org.). As sete obras de Misericórdia corporais nas Santas Casas de Misericórdia (séculos XVI-XVIII). Braga: Santa Casa de Misericórdia de Braga, 2018. [ Links ]
BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia. Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005. [ Links ]
BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Trad. Cleonice Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG; Edusp, 2014. [ Links ]
LOPES, Maria Antónia. Protecção Social em Portugal na Idade Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. [ Links ]
VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165. [ Links ]
Mauro Dillmann – Departamento de História Universidade Federal de Pelotas Rua Alberto Rosa, 154, Pelotas, RS, 96.010-610, Brasil maurodillmann@hotmail.com.
O regresso dos mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII) – SÁ (Tempo)
SÁ, Isabel dos Guimarães. O regresso dos mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2018. 331 pp. Resenha de: FRANCO, Renato. O imenso mundo de Portugal. Tempo, v.25 n.3, set./dez. 2019.
Em 1581, Diogo Ferreira elaborou seu testamento em Sevilha. Não foi o maior doador da Santa Casa de Misericórdia do Porto, mas seu legado surgiu em boa hora, possibilitando à irmandade consolidar-se como uma gestora de ações de caridade, tal como vinha acontecendo em outras regiões do império português, desde fins do século XV, com a criação da primeira Misericórdia, em Lisboa. Nascido no Porto, Diogo fez fortuna em São Francisco de Quito, no Peru, e morreu em Sevilha, onde fez questão de um enterro pomposo, cujo funeral deveria ser acompanhado por ordens religiosas e confrarias, e a memória celebrada por meio de missas e esmolas; em sua cidade natal, até pelo menos 1818, era em seu nome que a Misericórdia ainda financiava o casamento de três órfãs donzelas e auxiliava pobres envergonhados.
A história é extraordinária não apenas pelo que revela, mas também pelo que omite e reinventa: autodeclarado filho legítimo em seu testamento, Diogo parece ter sido criado junto da prole legítima de Pantaleão Ferreira e Ana de Mesquita, membros da elite local, e, provavelmente, era fruto de um relacionamento fortuito do pai. Apesar de conhecerem a história por inteiro, as principais beneficiárias – as meias-irmãs e a Misericórdia do Porto – fizeram vistas grossas à fraude de Diogo, interessadas no quinhão que lhes caberia em troca da discrição sobre a origem pouco honrosa do negociante. Por sua vez, um provável filho ilegítimo de Diogo não se contentara com o que fora estabelecido no testamento do pai; sentindo-se injustiçado, publicamente – quebrando a promessa de silêncio que havia feito a Diogo – exigiu mais dinheiro, além de vestes do rico e aristocrático guarda-roupas do defunto (ver cap. 6).
Essa é uma das muitas trajetórias levantadas por Isabel dos Guimarães Sá em seu mais recente livro, O regresso dos mortos – os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII), publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa). O livro, dividido em 10 capítulos, é organizado de tal maneira que os três primeiros elaboram uma espécie de síntese sobre o ordenamento jurídico português sobre heranças e testamentos, a cidade do Porto e sua Santa Casa de Misericórdia nos séculos XVI e XVII e o perfil social dos doadores. Nesses capítulos, a autora traça um panorama que ajuda a explicar como a “economia da salvação” movimentou instituições, bens materiais e pessoas, espalhados por diferentes lugares do império, de modo a fazer cumprir as últimas vontades dos testadores (ver cap. 4).
As histórias contidas na obra são elaboradas sobretudo com base em fontes primárias sob guarda da secular Santa Casa de Misericórdia do Porto. Além de livros de receita e despesa, correspondência interna e deliberações da mesa da irmandade, o fundo mais explorado é dos testamentos e inventários, fontes fartamente utilizadas pela historiografia e que se prestam a diferentes tipos de análise – seriadas, mas também qualitativas -, dada a riqueza de informações que contém. Apesar de ser uma confraria composta exclusivamente por homens, os doadores da Misericórdia também poderiam ser mulheres; doadores de ambos os sexos ofereciam à irmandade quantias oficializadas por meio de escrituras públicas realizadas em vida, ou por meio de testamentos. Trata-se de um universo de 257 doadores de distintos estratos sociais – 139 homens, 92 mulheres, 27 casais – que compõe cerca de 20,6% do total de legatários da Misericórdia para o período. Esse corte, portanto, diz respeito tão somente aos doadores que estiveram ligados aos negócios coloniais, quantificando, de forma inédita, os impactos da expansão para o enriquecimento da Misericórdia do Porto.
No entanto, as contribuições desse livro não estão apenas na natureza das fontes ou mesmo na história da Santa Casa. Um mérito a se destacar é a forma como, a partir de escolhas aparentemente triviais, a autora produz uma narrativa original sobre uma média localidade portuguesa que foi convulsionada por novos padrões de riqueza advindos da expansão oceânica. O cenário é a cidade do Porto, entre os séculos XVI e XVII, e a instituição em foco é a Santa Casa de Misericórdia, mas o que se revela são trajetórias de pessoas espalhadas pelo império que, por meio das fortunas produzidas nos espaços coloniais, forjaram novas formas de experimentar o mundo, relativizando, recriando e produzindo outras sensibilidades a partir de um ecúmeno mais vasto e heterogêneo. Nessa direção, a perspectiva do livro é globalista, afinada com os trabalhos de Sanjay Subrahmanyam (2012) e de Serge Gruzinski (2014) que, ao conectarem experiências, têm reivindicado a “modernidade” da expansão ibérica. No entanto, tal como demonstra Isabel dos Guimarães Sá, aquele mundo posto em contato não recriou apenas sensibilidades, mas experimentou, de modo inédito, uma circulação de bens que alterou os padrões de posse e de consumo material. Esse é um aspecto caro ao livro, tratado com minúcia e erudição por uma das mais consistentes historiadoras de sua geração.
Em boa medida, compreende-se melhor o livro pela trajetória profissional da autora: profunda conhecedora da história das Santas Casas de Misericórdia – e, de modo particular, a irmandade do Porto -, sua perspectiva jamais foi a de uma historiadora regional. A despeito da onda globalista que oportunamente tem proposto experimentações metodológicas ante a banalidade, o exotismo e o fôlego curto de muitos estudos de caso, os trabalhos de Isabel dos Guimarães Sá sempre se caracterizaram pela análise conectada, pela leitura sincrônica dos processos históricos, pelo dimensionamento do espaço geográfico para além das fronteiras nacionais. Foi essa capacidade de relacionar fontes e bibliografias de ponta, aliada ao grande talento analítico, que rendeu, desde os anos 1990, pesquisas incontornáveis sobre o abandono de recém-nascidos, a pobreza, as instituições de assistência e a cultura material no império, tendo sempre como pano de fundo a história das Santas Casas ao longo da época moderna (ver Sá, 1995, 1997).
Desde o século XVI, as Misericórdias foram instituições de grande popularidade, exaltadas por memorialistas como um paradigma do espírito caritativo dos portugueses, mas até boa parte do século XX permaneceram um assunto secundário, frequentemente circunscrito à historiografia laudatória das próprias instituições. Isabel faz parte da geração que, nos anos 1980, em Portugal, começou a redimensionar o papel das Santas Casas, inserindo-as em uma perspectiva ampliada, de modo a examiná-las como um laboratório relevante para compreensão dos mecanismos de exercício do poder local e de sedimentação da identidade portuguesa pelos quatro cantos do império.
Nos anos 1990, a vigorosa historiografia que florescia nas universidades portuguesas reivindicou a chancela intelectual de ninguém menos que Charles Boxer (2002) e Russell-Wood (1981) que, ainda nos anos 1960, chamaram atenção para a faceta imperial e eminentemente política das Misericórdias, ponto de apoio relevante para a construção da soberania portuguesa, tanto no continente quanto nas conquistas ultramarinas. Dos trabalhos surgidos a partir da renovação historiográfica dos anos 1980-1990, a obra Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800 (Sá, 1997) foi seguramente a que mais se valeu da dimensão imperial das Misericórdias, beneficiando-se de trabalhos monográficos de fôlego para construir uma imagem mais verossímil do quadro geral intuído por Boxer, ou mesmo Russell-Wood.
Por isso, é a partir das Santas Casas que as histórias de Diogo Ferreira e de tantos outros personagens podem ser compreendidas. Embora as trajetórias sejam dadas a conhecer em seus pormenores, saltam aos olhos os mecanismos postos em ação pela rede de Misericórdias que, valendo-se de estruturas institucionais consideravelmente homogêneas, orquestravam um repertório comum de auxílio de modo a fazer cumprir o ideal de caridade que orientava seus estatutos. As Santas Casas eram estabelecimentos independentes entre si, atuando de forma solidária, mas autônoma, por meio do repasse de verbas. Era por meio dessa rede de confrarias que, sobretudo na iminência da morte, muitos doadores partilhavam seus bens, dividindo-os entre parentes, amigos e instituições, e distribuindo legados para execução de missas e obras pias. As Misericórdias, atuando como “procuradoras dos defuntos”, tratavam de gerir as fortunas dos testadores espalhados pelo mundo português, promovendo uma verdadeira circulação de bens materiais e imateriais.
De fato, não resta dúvida de que a história dos legados das Misericórdias não pode ser analisada apenas em escala local: no norte de Portugal, a expansão oceânica provocara não somente um alargamento na amplitude geográfica dos doadores, mas também alterara material e esteticamente a vida dos habitantes. Da Índia ou da América, poderiam vir avultados legados e/ou produtos exóticos que funcionavam como um atestado de sucesso da empreitada realizada por famílias aristocráticas e populares. Independentemente da origem social, a preocupação em vincar uma memória benevolente entre os vivos e em salvaguardar a salvação além-túmulo movimentou uma soma fabulosa de riquezas, em sua esmagadora maioria produzida nas áreas coloniais e transferida para a cidade do Porto, conforme aponta o estudo em tela.
Essas muitas histórias fragmentadas criavam uma unidade impressionista do império, conectando diferentes atores – individuais e institucionais – com base em apropriações partilhadas do catolicismo e colocando em cena aquilo que, para certa historiografia, situa a expansão ibérica na ponta de lança da globalização. Os testamentos e inventários de portugueses dispersos pelo mundo – em um primeiro momento na Ásia e, a partir de meados do século XVII, também na América – revelam a engenhosa engrenagem de movimentação de fortunas que abriu espaço para fraudes genealógicas, novos arranjos sociais, relativização de valores e alargamento dos sentidos de pertencimento ao mundo, cuja fronteira agora era dada pelos circuitos mercantis que se espalhavam pelo globo. Essa verdadeira revolução foi viabilizada pelo comércio e, tal como demonstra Isabel, tem nas Misericórdias um formidável ângulo de análise. Não apenas porque eram estabelecimentos disseminados geograficamente, mas porque poderiam se valer de um conjunto de privilégios e isenções que lhes garantia legitimidade para cobrar dívidas de poderosos, transferir bens apoiando-se em uma ampla rede, fazendo cumprir, do modo mais seguro possível, as últimas vontades dos testadores.
Como pontuado, as muitas histórias desse livro ganham outra dimensão se conectadas e postas em perspectiva, dando a ver o quadro mais amplo de reflexões proposto pela autora ao fazer emergir in acto o repertório de estratégias que redimensionou a percepção de mundo dos portugueses (e – por que não? – dos habitantes do globo). Trata-se de uma obra repleta de tramas familiares e disputas espalhadas em uma variedade impressionante de referências que cruzavam parentescos, falseavam dados que poderiam confundir o pesquisador menos experimentado. Para facilitar a compreensão, o emaranhado de informações é organizado por meio de cronologias construídas para cada personagem analisado. Todo esse cuidado é acompanhado ainda do reconhecimento dos limites de certas interpretações, construídas a partir de fontes fragmentárias e incompletas. Ao longo dos capítulos, outro quadro da expansão é dado a ver de forma inovadora e brilhante. É o talento de Isabel, mais uma vez, mostrando que o jogo de escalas é uma perspectiva primordial de análise.
AGRADECIMENTO:
O autor agradece a leitura e as sugestões de Maria Fernanda Bicalho.
REFERÊNCIAS
BOXER, Charles. Conselheiros municipais e irmãos de caridade. In: BOXER, Charles.O império marítimo português, 1415-1825. [1969]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286-308. [ Links ]
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. [2004]. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Edusp, 2014. [ Links ]
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. [1968]. Brasília: Ed. UnB, 1981. [ Links ]
SÁ, Isabel dos Guimarães . A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: JNICT, 1995. [ Links ]
SÁ, Isabel dos Guimarães . Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. [ Links ]
SUBRAHMANYAM, Sanjai. Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2012. [ Links ]